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Ano: 2003  Vol. 7   Num. 2  - Abr/Jun Print:
Original Article
Mecanismos Imunológicos da Mucosa das Vias Aéreas Superiores e Fisiopatologia do Anel Linfático de Waldeyer: Conceitos Atuais
Immune Mechanisms of the Upper Airways Mucosa and Pathophysiology of Lymphatic Waldeyer.s Ring: Current Concepts
Author(s):
Mônica Aidar Menon Miyake*, Cecil Cordeiro Ramos*, Alessandra Ramos Venosa*, Adriana Silva Lima*, Silvio Antonio Monteiro Marone**.
Palavras-chave:
tonsila, adenóides, sistema imune, imunoglobulina A, amigdalectomia.
Resumo:

Introdução: As vias aéreas superiores (VAS) são a principal porta de entrada do organismo. Apresentam uma ampla cobertura mucosa como barreira física aos agentes infecciosos, irritantes ambientais, etc. Há importantes mecanismos imunes específicos e inespecíficos nesta área. Objetivo: Apresentar o conhecimento atual sobre os mecanismos imunológicos atuantes nas mucosas de VAS, incluindo uma revisão sobre as funções do tecido linfóide do Anel Linfático de Waldeyer (ALW) e sobre os efeitos da adenotonsilectomia na função imunológica. Métodos: Foram analisados artigos catalogados nas bases Medline e Lilacs. Conclusões: Mecanismos imunológicos inespecíficos (enzimas do muco, transporte mucociliar, reflexo da tosse, etc) contribuem para a defesa das VAS já nos lactentes. Os mecanismos específicos envolvem mediadores inflamatórios e implicam em memória antigênica. As tonsilas, apresentam importantes diferenças anatômicas e funcionais com relação aos demais órgãos linfóides. A produção de anticorpos nessa estruturas, incluindo IgA secretória, é fundamental para a competência imunológica do indivíduo. O número de adenotonsilectomias diminuiu drasticamente desde a década de 60, à luz dos avanços da Imunologia. Frente à persistente controvérsia na indicação de faringotonsilites, recomenda-se a avaliação imunológica no pré-operatório e bom senso no acompanhamento de cada paciente.

INTRODUÇÃO

As vias aéreas superiores (VAS) são revestidas por uma cobertura mucosa de aproximadamente 400 m2, que constitui uma importante barreira física aos agressores do organismo (1). Nesta área estratégica, vários mecanismos imunológicos são evidenciados a partir da captação de antígenos, tais como partículas ambientais, agentes infecciosos, carcinógenos, alérgenos, irritantes, etc. Apesar do grande avanço da Imunologia nos últimos anos, a alta complexidade na interação dos vários mecanismos de defesa das mucosas não está totalmente esclarecida. A princípio, tais mecanismos podem ser inatos ou adquiridos e podem ser classificados como específicos ou inespecíficos.

Por exemplo, um lactente hígido já apresenta uma satisfatória resistência (inata) inespecífica a microrganismos, proteínas estranhas e agentes químicos. Isto se dá por fatores anatômicos, pelo transporte mucociliar, pelo mecanismo de tosse, etc. Além disto, o lactente apresenta IgG materna circulante e um aporte de anticorpos adquiridos do leite materno. Contudo, só depois de meses a imunidade secretora das mucosas estará completamente desenvolvida, com anticorpos IgA secretória (IgAs) e IgMs específicos (2). Para designar todo o sistema imune relacionado às mucosas e melhor entender sua organização, tem sido utilizada a denominação “mucosa-associated lymphoid tissue” (MALT), que recebe um nome específico conforme sua localização.

A maior parte do MALT consiste de “gut-associated lymphoid tissue” (GALT), relacionado ao sistema digestivo, e que é o modelo experimental mais utilizado. O MALT do trato respiratório subdivide-se em “nasal-associated lymphoid tissue” (NALT) e “bronchialassociated lymphoid tissue” (BALT).

Esta divisão considera não apenas a localização anatômica dos folículos linfóides, mas principalmente as diferentes especificidades antigênicas predominantes nas diversas áreas (3, 4). No MALT, linfócitos B são inicialmente estimulados, levando à migração das células pelo sangue e linfa até a mucosa, onde ocorrerá a diferenciação dos plasmócitos produtores de imunoglobulinas. Por sua vez, compõem o NALT: as células linfóides da mucosa orofaríngea, os linfonodos cervicais e os agrupamentos organizados de tecido linfóide que representam o Anel Linfático de Waldeyer (ALW). São eles as tonsilas faríngeas (TF), ou adenóides, conforme a nomina antiga, as tonsilas tubáreas (TT), as tonsilas palatinas (TP) ou amígdalas, e a tonsila lingual (TL). Assumem, da rinofaringe até a hipofaringe, a conformação de um anel preenchido por pequenas coleções de tecido linfóide subepitelial. Esta estrutura foi descrita por WALDEYER em 1884 (5).

Morfologia das Tonsilas

As tonsilas são órgãos linfóides secundários que contêm no subepitélio numerosos folículos linfóides secund ários (área das células B), cercados por regiões interfoliculares (área de células T).

Em relação a outros órgãos linfóides, possuem várias características diferenciais: 1) não são completamente encapsuladas, ao contrário do baço e dos linfonodos, 2) não possuem aferentes linfáticos, 3) são estruturas linfoepiteliais, enquanto o baço e os linfonodos são linforeticulados, 4) o epitélio tonsilar invagina-se e recobre também as criptas (5). As TF (adenóides) têm epitélio respiratório ciliado na superfície, enquanto as TP (amígdalas) apresentam epitélio escamoso não queratinizado.

Nestas últimas, as criptas são bastante ramificadas, o que aumenta muito a área de contato direto com os antígenos, e com o aprofundamento, elas se intercomunicam, conforme os modelos em três dimensões de ABBEY e KAWABATA.

O epitélio do interior das criptas não é tão regular como na superfície e exibe placas de epitélio reticulado infiltrado por células não epiteliais, especialmente linfócitos.

Este linfoepitélio é de grande importância funcional e imunológica (5). O epitélio que recobre cavidades normalmente não é penetrado por vasos sanguíneos. Só em alguns locais, como na estria vascular da cóclea, há capilares intraepiteliais verdadeiros. No linfoepitélio, há uma rede de vasos intraepiteliais; na TF e nas TP há capilares arranjados em alça que penetram perpendicularmente à superfície da cripta e também veias endoteliais altas (“high endothelial venules” – HEV) na periferia das placas reticuladas.

Esta vascularização contribui para a maior interação com células endoteliais e leucócitos, para o transporte de imunoglobulinas e outras substâncias através da parede dos vasos (5). Outra caracterísitca da cobertura dos tecidos linfóides é a presença de células epiteliais envolvidas ativamente no processo imunológico.

Nos intestinos, são descritas células especializadas com microvilos e pequenas dobras na superf ície, conhecidas como células M. Tais células têm em seu citoplasma microvesículas com capacidade de pinocitose para muitas partículas e materiais solúveis facilmente degradáveis. As células M não foram identificadas no tecido das tonsilas, mas as áreas de epitélio reticulado são funcionalmente similares, transportando antígenos processados (5).

Mecanismos Inespecíficos de Defesa do Trato Respiratório Superior

A primeira linha de defesa das VAS está na sua configuração anatômica, que leva ao bloqueio e retenção de partículas nas vibrissas, na mucosa da cavidade do nariz em toda a sua extensão, nas anfractuosidades estruturais das conchas e irregularidades do septo nasal, onde o turbilhonamento da corrente aérea propicia tal mecanismo. Auxiliam nesta defesa das VAS a tosse e o transporte mucociliar.

A tosse contribui para proteger as vias aéreas dos efeitos adversos de substâncias nocivas e propicia a drenagem de secreções retidas (6). O tapete mucoso é composto basicamente por mucinas, um grupo de glicoproteínas com características reológicas (de viscoelasticidade) e bioquímicas (pH e pressão parcial de O2). Estes mecanismos controlam os microorganismos da região com o favorecimento da flora bacteriana normal, que inibe a colonização de bactérias patogênicas, seja pela competição por nutrientes, pela produção de substâncias com efeito bacteriostático ou pela dificuldade de aderência das bactérias às células epiteliais. Dissolvidas neste tapete mucoso, existem ainda várias substâncias com ação antimicrobiana inespecífica como: lactoferrina, lisozima e interferon.

Em suma, a maior freq üência de infecções bacterianas nas vias aéreas pode ser resultado de alterações das qualidades reológicas do muco nasofaríngeo, levando à colonização de microrganismos patogênicos por alteração primária ou não do transporte mucociliar (3, 7). No âmbito da imunopatologia, o transporte mucociliar está alterado em doenças congênitas ou adquiridas.

Na discinesia ciliar primária, o transporte mucociliar está prejudicado por falta de coordenação do batimento ciliar. A discinesia ciliar secundária é um processo bem mais freq üente, piorado por inflamação ou infecção, e leva à disfunção ciliar temporária e localizada (8). A defesa imune inespecífica é realizada por meio de polimorfonucleares, com sua ação de fagocitose, e pelo sistema complemento, aumentando a atividade microbicida dos anticorpos presentes nas secreções.

Certos quadros sistêmicos favorecem o aparecimento de infecções, em especial as oportunistas, como a doença granulomatosa crônica, imunodeficiências que alteram a adesão leucocitária ou a quimiotaxia de macrófagos. Outros mediadores inflamatórios podem se alterar como os mais importantes em determinados processos.

O resfriado comum, causado por rinovírus, seguramente a infecção humana mais freqüente, é caracterizado por sintomas nasais leves e transitórios. Neste caso, o rinovírus induz a formação de interleucina-8 (IL-8) e a ativação dos neutrófilos. Observa-se recrutamento de neutrófilos e aumento na concentração de mediadores, citoquinas e quimoquinas, que organizam a quimiotaxia, transmigração e ativação das células inflamatórias imunocompetentes (9). Nas últimas décadas, os diversos poluentes ambientais destacam-se como fatores desencadeantes ou coadjuvantes de doenças respiratórias.

Sintomas como irritação nasal, obstrução, sensação de ressecamento, secundários à polui- ção podem levar a rinossinusites de repetição, bem como à piora das alergias respiratórias.

Substâncias irritantes, decorrentes de combustão presentes no ar das grandes cidades (poluição outdoors), como também os poluentes dos ambientes internos, dentre eles a fumaça de cigarros (poluição indoors) podem induzir a hiperplasia epitelial, metaplasia ou transformação maligna (10).

Mecanismos Específicos de Defesa do Trato Respiratório Superior

Os antígenos provenientes do meio externo alcan- çam a mucosa e entram em contato com “células apresentadoras de antígenos”, como os macrófagos.

Estes, por sua vez, apresentam o antígeno a linfócitos T auxiliares (T helper, Th), liberando mediadores como a interleucina 1 (IL-1) e provocando uma interação celular. Na dependência do tipo de antígeno e também do código genético, o indivíduo poderá desenvolver diferentes clones de células Th.

Por exemplo, quando uma bactéria desencadear o processo, será ativado o padrão de resposta Th1, mediada por IL-2 e interferon, e que privilegia ao final a ação de polimorfonucleares.

Quando houver propensão a atopia, poderá ser ativado o clone Th2, mediado principalmente por IL-4, IL-5, IL-13 e outras, com produção de linfócitos B, plasmócitos e finalmente IgE específica.

Esta, quando acolada à parede dos mastócitos, poderá reconhecer o antígeno e reagir em uma próxima exposição (caso se forme uma ponte entre duas moléculas de IgE) com a degranulação do mastócito, liberando diversos mediadores inflamatórios, inclusive a histamina. Está configurada a reação alérgica ou hipersensibilidade do tipo I (11, 4).

Outros mediadores iniciam sua formação após a degranulação, dependentes do metabolismo de cálcio na membrana do mastócito, resultando numa série de substâncias inflamatórias que podem cronificar o processo alérgico. Os macrófagos presentes nas criptas amigdalianas ativam linfócitos B nas TP, que iniciam a produção, primeiramente de IgM. Através de mecanismos de diferenciação celular inicia-se também a produção de IgA e IgG. Pequenas quantidades dessas imunoglobulinas escapam por espaços intercelulares para o meio externo.

A existência de processo inflamatório concomitante facilita esse processo de exsudação das imunoglobulinas. As células produtoras de IgA podem seguir 3 caminhos: permanecer no tecido das tonsilas palatinas produzindo anticorpos, diferenciar-se em células de memória ou, através das vias eferentes, colonizar outras áreas linfóides, como por exemplo as tonsilas faríngeas.

Uma vez nessa região, a IgA dimérica sintetizada combina-se com o componente secretório presente na superfície do tecido epitelial, originando uma secreção ativa através das células epiteliais para o meio externo (12). A análise desse mecanismo permite concluir que as tonsilas palatinas têm um importante papel no processamento de antígenos externos que ali chegam, enviando células para outros sítios de produção de anticorpos, o que explica os achados histológicos que demonstram apenas a presença de vasos linfáticos eferentes, sugerindo que sejam estruturas projetadas para processar antígenos presentes em sua superfície. Muitos mediadores das reações imunológicas, como novas interleucinas e quimiocinas, têm sido descobertos e sua função vem sendo gradualmente elucidada.

No entanto, tais achados ambiguamente elucidam mecanismos imunes e, ao mesmo tempo, criam fractualmente novas hipóteses e fatos a serem confirmados. Este fator multiplicador é marcante, principalmente se considerarmos que a imunologia das mucosas tem sido estudada apenas recentemente.

Histórico

No início do século XX, Besredka realizou as primeiras investigações sobre o papel imunológico protetor das mucosas no organismo humano (13).

Em 1922, foi detectada a presença de anticorpos nas fezes de pacientes infectados com o Bacillus desenteriae antes de seu aparecimento no soro (14), uma das primeiras pistas para a identificação de alguma substância que tivesse papel de proteção especificamente nas secreções orgânicas. Uma pausa de cerca de 40 anos aconteceu até que novas descobertas importantes ocorressem.

Na década de 60, Tomasi observou a transudação de proteínas plasmáticas para o lume do trato gastrointestinal, identificando diversos tipos de gamaglobulinas. Utilizando o anti-soro de IgA, demonstrou que esta estava presente na saliva e em outros fluidos biológicos, sendo o tipo de imunoglobulina predominante nas mucosas e secreções (15). Mais tarde, graças à investigação conjunta com Tan, Solomon e Prendergast, a estrutura da molécula de IgA foi desvendada.

Além da descrição de suas cadeias e da porção secretória, também foram observadas as diferenças entre a IgA presente no sangue e aquela presente nas mucosas (16). Ainda nessa pesquisa, a IgA marcada radioativamente foi injetada na corrente sanguínea e pesquisada na saliva, onde não aparecia em quantidades significativas.

Dessa forma confirmou- se que a IgA e sua porção secretora eram produzidas localmente, dependendo das células epiteliais das mucosas que estão em contato com o meio externo. Posteriormente, foi descrita a função da cadeia J, com grande afinidade pela porção secretória e provável elo entre as duas cadeias monoméricas de IgA para a formação do dímero encontrado nas mucosas e secreções (17).

Em 1980, além da demonstração da presença da IgA secretória em diversos sítios, também foi descrito tecido linfóide presente nos brônquios e a migração de células para outros sítios no organismo (18), atualmente conhecido como MALT.

Produção de Imunoglobulinas no Anel Linfático de Waldeyer

A imunoglobulina mais abundante no soro humano é a IgG (83%), seguida pela IgA (13%) e pela IgM (6%). A IgE e a IgD correspondem conjuntamente a menos de 1% da concentração sérica de imunoglobulinas (13).

Estudos realizados com tecidos linfóides revelaram que as TP e TF têm grande quantidade de células produtoras de IgA e IgG, mas também são capazes de produzir as outras classes de imunoglobulinas (19). A IgA aparece basicamente sob duas formas: a sérica e a secretória. É sintetizada em glândulas e mucosas por plasmócitos. A IgA sérica, seja ela intra ou extracelular, é um monômero e não se apresenta ligada à cadeia J. Já a IgA secretória é encontrada em mucosas e secreções, tem a forma de um dímero e a cadeia J une as duas porções FC das moléculas de IgA.

Esse dímero combinase com a porção secretória, sintetizada por células epiteliais que participam ativamente na secreção desse tipo de imunoglobulina. O componente secretório liga-se à por- ção FC e necessita da presença da cadeia J, com a qual tem grande afinidade. A presença da porção secretória confere à IgA uma grande resistência à ação de enzimas proteolíticas presente em secreções.

A IgA secretória está presente em quantidades significativas em todo o trato aéreo-digestivo e não é degradada pelos processos de digestão habituais. A forma monomérica da IgA não é encontrada em quantidades significativas nas secreções e, de modo semelhante, a IgA secretora não é absorvida sistemicamente. A produção de IgA no Anel Linfático de Waldeyer envolve tanto as TP como a TF.

As células epiteliais que revestem as amígdalas palatinas (epitélio do tipo escamoso estratificado), assim como as da região inferior da faringe, não sintetizam a porção secretória e, portanto, não secretam IgA de forma ativa para o meio externo.

Já o epitélio pseudoestratificado cilíndrico ciliado que reveste a adenóide é capaz de secretar IgA ativamente. Sabe-se que existem células produtoras de IgE em toda a região abrangida pelo anel linfático de Waldeyer, particularmente nas tonsilas palatinas e faríngeas, mucosa brônquica e dentro e ao redor de glândulas salivares menores (12).

A relevância clínica da produção de IgE nessa região ainda é objeto de discussão. Acredita-se que possa ocorrer um processamento local de antígenos inalados em pacientes alérgicos. Apesar de não haver síntese de IgE na mucosa nasal, esta ocorre pelo menos em parte das estruturas linfóides do anel de Waldeyer.

Em alguns indivíduos essa produção de IgE pode se processar apenas localmente e a quantidade de IgE que penetra a corrente sanguínea pode ser insuficiente para ser detectada em testes in vitro (19).

Relevância Clínica da Produção de Imunoglobulinas no Anel Linfático de Waldeyer

A produção de IgA secretória nas mucosas e sua secreção ativa para o lume possibilita a defesa contra antígenos provenientes do meio externo.

Sabe-se que a adesão epitelial e a colonização das mucosas por microorganismos são passos iniciais que possibilitam a posterior invasão para o meio interno. A presença de IgA secretória nas superfícies epiteliais e secreções, além de inibir o crescimento e otimizar a lise bacteriana, promove a opsonização das partículas estranhas, bloqueando sua capacidade de aderir aos tecidos epiteliais e, conseqüentemente, colonizar as mucosas (13). Esse mecanismo pode ser caracterizado como uma forma de exclusão imune de patógenos e macromoléculas, ou seja, a ação da IgA secretória impede que os antígenos entrem em contato com o meio interno do organismo. A presença de IgA secretória no trato digestivo, além de proteger o organismo contra a invasão de agentes infecciosos, também diminui a sensibilização por antígenos alimentares.

Indivíduos com deficiência seletiva de IgA têm aumento de incidência de anticorpos IgG contra leite de vaca (3). Também são encontradas evidências da importância da IgA nos mecanismos de atopia.

Na maioria dos indivíduos alérgicos, os níveis de IgA sérica estão diminu- ídos e não aumentam com a idade, como ocorreria em crianças não alérgicas (20). Indivíduos não atópicos respondem com produção normal de IgA frente à exposição a alérgenos ambientais, o que desencadearia o mecanismo de exclusão imune, impedindo que essas partículas sensibilizassem as células responsáveis pela produção de IgE. Em pessoas com deficiência de IgA esse mecanismo de exclusão imune deixaria de ocorrer, propiciando o contato do antígeno com plasmócitos produtores de IgE e, dessa forma, desencadeando os mecanismos de hipersensibilidade. Entretanto alguns autores demonstram que as concentra- ções de IgE não se alteram após adenotonsilectomias, questionando o papel dessas estruturas nos mecanismos de atopia (21). A presença de infecções crônicas parece interferir diretamente na produção de IgA.

Vários estudos demonstram que em indivíduos com quadros infecciosos crônicos de amígdalas ocorre diminuição de células produtoras de IgA (22), diminuição da quantidade de IgA sérica (23) e até mesmo, em alguns casos, ausência de plasmócitos produtores de IgA (24) . Fazendo parte da primeira linha de defesa do organismo, a integridade do sistema da IgA secretória é fundamental para a competência imunológica do indiví- duo.

Apesar do conhecimento já adquirido sobre a relev ância desse sistema, seu papel imunológico e nos mecanismos de atopia ainda necessita de maiores esclarecimentos.

Efeitos Locais e Sistêmicos da Resposta Imune em Pacientes Submetidos a Adenotonsilectomia

Ainda não há consenso entre os autores quanto ao real comprometimento da resposta imune, local ou sistêmica, em pacientes amigdalectomizados.

Muitos estudos procuram determinar a resposta imune, celular e humoral em três momentos diferentes: no pré-operatório de pacientes portadores de amigdalite crônica, no pós-operatório imediato de adenotonsilectomias e em seu pós-operatório tardio.

Com diferentes metodologias e desenhos de análise estatística, nossa avaliação dos resultados obtidos em revis ão bibliográfica serve apenas como uma orientação geral à análise dos diversos trabalhos. Um dos poucos resultados consensuais é a existência de um comprometimento da quimiotaxia dos neutrófilos em pacientes portadores de amigdalite crônica (25,26).

No entanto, não está claro se o defeito da resposta quimiotáxica ocorreria em função da amigdalite crônica, como ocorre em outros quadros infecciosos, ou se as amigdalites recorrentes dever-se-iam a uma deficiência prévia da resposta quimiotáxica. Já quanto ao estado da resposta imune humoral, em pacientes portadores de amigdalite crônica, os resultados são mais discrepantes.

Aproximadamente metade dos autores encontrados na literatura observa uma baixa significativa de IgG, IgA e IgAs (22, 23, 24, 27), contra aproximadamente 20% de autores que encontraram aumento dos níveis de IgG e IgA (22, 28) e 30% que obtiveram níveis normais nestes pacientes (29). No pós-operatório imediato de pacientes submetidos a adenotonsilectomia também é consensual a observa- ção de queda dos níveis de IgAs, quando comparada aos níveis pré-operatórios, bem como um comprometimento temporário da resposta quimiotáxica sistêmica, ambos normalizando-se em um prazo não superior a 10 dias (25, 29-32). Já no pós-operatório tardio, os resultados obtidos pelos diversos autores são mais discrepantes. Oitenta por cento dos autores não observaram alterações dos níveis das imunoglobulinas no pós-operatório tardio, quando comparadas ao período pré-operatório (33, 34). Por outro lado, aproximadamente 20% dos autores pesquisados observaram queda dos níveis de IgA, em especial da IgAs, com discrepância ainda maior no que se refere a outras imunoglobulinas (14). Estudos voltados principalmente ao quadro clínico são surpreendentemente mais raros, com resultados que muitas vezes demandam pesquisas mais abrangentes e prolongadas para confirmação das conclusões.

Alguns aspectos imunológicos e também relacionados ao desenvolvimento pôndero-estatural são abordados nestes estudos. Suspeita-se, em geral por pesquisas retrospectivas, que pacientes submetidos a adenotonsilectomias estariam mais sujeitos a desenvolver quadros tumorais locais como carcinoma de tireóide ou linfoma de Hodgkin (32), ou mesmo quadros sistêmicos como AIDS (31).

Em pacientes portadores de rinite alérgica ou asma, existem autores que reportam uma piora do quadro alérgico em função de uma possível maior exposição destes pacientes a antígenos após a cirurgia (14), bem como autores que referem melhora dos quadros alérgicos pela maior facilidade de controle de quadros infecciosos após a ablação cirúrgica (32, 35).

Em compensação, outros trabalhos mostram que a hipertrofia das TF e TP causa diminuição dos níveis de insulin-like growth factor I (IGF-I), por interferência no seu eixo com hormônio de crescimento (GH - IGF-I), e estes níveis aumentam significativamente após adenotonsilectomia, recomendando inclusive o procedimento como medida terapêutica nestes pacientes (36).

A hipertrofia adenotonsilar também é relatada em pacientes transplantados, marcadamente em crianças submetidas a transplante hepático, dentre vários parâmetros analisados em outro estudo (37). Em um dos trabalhos mais recentes, apresentando casuística e desenho bastante adequados, os autores descrevem que os parâmetros de imunidade celular e humoral sofrem alterações no pós-operatório imediato, mas se normalizam após 6 meses. Sugerem avaliação imunológica sistêmica (humoral e celular) antes do procedimento cirúrgico (38). Com toda propriedade, autores brasileiros já haviam feito esta recomendação, frente ao achado de pacientes com deficiência de IgA, cuja principal manifesta ção clínica eram adenotonsilites e infecções repetidas das VAS (39). Os especialistas envolvidos na indicação da adenotonsilectomia, conscientes e embasados, normalmente convergem quanto aos critérios e à importância da cirurgia (40). Dentre os artigos analisados, uma das poucas conclus ões unânimes foi a melhora da qualidade de vida dos pacientes submetidos a adenotonsilectomia após um diagn óstico preciso e de indicação cirúrgica correta.

Indicações cirúrgicas incluem tonsilas volumosas isoldas ou associadas a outras doenças como síndrome de Down, paralisia cerebral, obesidade com distúrbios respiratórios, anormalidades no crescimento crânio facial, diminuição do olfato e paladar, distúrbios da fala e alterações na qualidade de vida, além dos candidatos a transplantes de fígado com história de IVAS, bem como doenças sistêmicas agravadas por IVAS (41).

CONCLUSÕES

As VAS têm importantes mecanismos inespecíficos, que atuam desde a fase de lactação. A própria anatomia, a barreira mecânica do muco e suas enzimas, o transporte mucociliar e o reflexo da tosse têm uma função protetora à principal porta de entrada do organismo. Os mecanismos específicos envolvem células de defesa, como macrófagos e linfócitos, além de anticorpos e mediadores inflamatórios, resultando em memória antigênica. O número de estudos sobre o anel linfático de Waldeyer é surpreendentemente pequeno frente à grande prevalência de faringotonsilites na prática diária.

As tonsilas, componentes do ALW, apresentam importantes diferenças anatômicas e funcionais com relação aos demais órgãos linfóides. A produção de anticorpos nessa estruturas, incluindo IgA secretora, é fundamental para a competência imunológica do indivíduo. O real papel das tonsilas na imunologia e nos mecanismos de atopia ainda necessita de maiores esclarecimentos. O número de adenotonsilectomias diminuiu drasticamente desde a década de 60, à luz dos avanços da Imunologia.

Frente à controvérsia relacionada à conduta clínica e/ou cirúrgica nas faringotonsilites, é necessário que os otorrinolaringologistas estejam cientes e atentos a estes novos conhecimentos. Uma avaliação imunológica pré- operatória é importante antes da indicação cirúrgica. Cada paciente requer acompanhamento clínico individualizado e muito bom senso por parte do médico assistente. Apesar do grande avanço recente da imunologia, ainda há muito para ser esclarecido sobre a imunidade das mucosas e do ALW.

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* Médicos Doutorandos do Curso de Pós-graduação da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Professor Assistente Doutor do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Instituição: Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Dra. Mônica A. Menon Miyake . Rua Afonso Brás, 525 / 21 - Vila Nova Conceição . CEP 04511-011 . São Paulo - SP . Telefone:
(11) 3842-4288 . Fax: (11) 3842-0861 . E-mail: monica.menon@br2001.com.br
Artigo recebido em 25 de setembro de 2002. Artigo aceito com correções em 3 de março de 2003.
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