Title
Search
All Issues
5
Ano: 2004  Vol. 8   Num. 1  - Jan/Mar Print:
Original Article
Aspectos Clínicos e Psicológicos da Glossodínea - Avaliação Preliminar
Clinical and Psychological Aspects of Glossodynia - A Preliminary Study
Author(s):
Ivan Dieb Miziara*, Bernardo Cunha Araújo Filho**, Rigoberto Oliveira***, Rosa Maria Rodrigues dos Santos****.
Palavras-chave:
glossodínea, psicologia, ardor lingual.
Resumo:

Introdução: A glossodínea é uma afecção comum, com predomínio em indivíduos do sexo feminino (7:1). Sua fisiopatologia é pobremente compreendida e o tratamento incerto. Evidências apontam para importância do fator psicológico na gênese da doença. Objetivo: Identificar os fatores epidemiológicos, clínicos e psicológicos que sejam importantes na glossodínea. Método: Foram estudados 22 pacientes atendidos no ambulatório de Estomatologia da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP, com diagnóstico clínico de glossodínea, no período de maio de 1999 a outubro de 2000. Todos foram submetidos ao exame otorrinolaringológico, exames de sangue, endoscopia e avaliação psicológica como parte do protocolo de atendimento. Os dados obtidos foram então analisados quanto a fatores epidemiológicos, clínicos, terapêuticos e psicológicos. Resultados: Dos 22 pacientes no estudo, 18 eram do sexo feminino (82%) e quatro do masculino. A idade dos pacientes atendidos variou de 31 a 79 anos, com média de 55 anos. Dezenove pacientes (86%) realizaram psicoterapia e, entre esses, 8 (67%) obtiveram melhora da queixa. Entre os três pacientes que não realizaram psicoterapia, apenas um melhorou. O desequilíbrio psicológico, acarretado pela perda de um familiar que representava um forte domínio nas relações familiares parece ser o fator preponderante na gênese da doença. Conclusões: A glossodínea foi mais prevalente em mulheres e o ardor lingual foi a queixa mais comum. A avaliação psicológica sugeriu uma estreita relação entre a glossodínea e os fatores psicológicos, sugerindo que a abordagem multidisciplinar é uma alternativa importante aos métodos convencionais de tratamento.

INTRODUÇÃO

A glossodínea é uma afecção importante, pobremente compreendida, que acomete mais de um milhão de pessoas nos EUA, com predomínio em mulheres (7:1) (1). Caracteriza-se pela sensação de ardência e dor crônica na mucosa oral, particularmente da porção anterior da língua e lábios, na presença de uma mucosa oral aparentemente normal (2). O sintoma da ardência pode surgir secundariamente a um quadro orgânico, que pode ser dividido em: fatores locais (como candidíase, patologias gengivais, orais, etc); fatores sistêmicos (distúrbios hormonais, imunológicos, uso de drogas, etc.) e fatores psicogênicos, caracterizados por vários distúrbios psicológicos.

Contudo, o relato de muitos pacientes com glossodínea sugere que o fator psicológico seja preponderante, uma vez que a sensação de dor, ardência ou queimação não tem como substrato uma etiologia orgânica (3). O tratamento da glossodínea ainda é incerto e controverso, incluindo uso de cremes dentais e orais, analgésicos e drogas à base de tiazídicos, uréia, vitamina B, benzinamida, entre outros (4).

Os resultados dos tratamentos apresentam grande variação, porém de maneira geral são pobres em grande parte dos pacientes, principalmente entre aqueles com fatores psicológicos prevalentes.

Estes pacientes estão sujeitos a um quadro de dor crônica importante, de difícil compreensão e acompanhamento, onde modelos de abordagem multidisciplinar, já há algum tempo, têm sido propostos para o controle da Síndrome da Boca que Arde (3). O conceito de dor introduzido em 1986 pela International Association of Study of Pain (IASP) trouxe uma nova perspectiva para o entendimento das vivências dolorosas e seu conseqüente tratamento.

Estas passaram a ser compreendidas como uma experiência sensorial e emocionalmente desagradável, associada ou não a um dano real ou potencial dos tecidos (5).

Assim, a dor tornase algo que transcende o âmbito exclusivo da lesão física, inscrevendo-se definitivamente como experiência subjetiva sempre real, que tem como referência o relato do sujeito.

Dessa forma, dor não é psíquica, mas um sofrimento corporal cuja origem é psíquica. Há controvérsias a respeito da origem estritamente psicossomática, existindo autores que apontam causas orgânicas possíveis (1,6).

Outros apontam a necessidade de uma intervenção multidisciplinar para o tratamento deste tipo de sofrimento, que acomete, na maioria, mulheres de meia idade (5,7). Porém, a escassa literatura sobre glossodínea traz menções explícitas à influência de características psicológicas, destacando-se a depressão, ansiedade, somatização e fobia, evidenciando, ainda, a importância de profissionais de saúde mental na realiza- ção de investigações psicológicas ou psiquiátricas nestes pacientes (5-7). A maior colaboração dos profissionais que lidam com saúde mental, observada em artigos recentes, restringe- se a resultados de escalas psicométricas, não sendo utilizados no delineamento do tratamento, sendo este um desafio para as equipes multidisciplinares que se dispõem a tratar este sofrimento específico. Este estudo tem como objetivo identificar fatores epidemiológicos, clínicos e psicológicos que sejam importantes na glossodínea, através do acompanhamento de pacientes com este diagnóstico.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foram estudados 22 pacientes atendidos no ambulat ório de Estomatologia da Divisão de Clínica Otorrinolaringol ógica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com diagnóstico clínico de glossodínea, no período entre maio de 1999 e outubro de 2000, sendo quatro pacientes do sexo masculino e dezoito do sexo feminino. Todos os pacientes foram submetidos aos seguintes exames:

• Avaliação otorrinolaringológica completa;

• Hemograma completo;

• Exames bioquímicos (dosagem de sódio, potássio, uréia e creatinina);

• Exames metabólicos (dosagem de glicemia de jejum, colesterol total e frações, triglicerídeos e ácido úrico);

• Dosagem de hormônios sexuais femininos (estrógeno e progesterona);

• Exames reumatológicos (fator reumatóide, fator antin úcleo e fator anti-Ro);

• Endoscopia digestiva alta (EDA).

Os indivíduos foram submetidos à avaliação psicol ógica como parte do protocolo de atendimento. Essa avaliação foi sempre realizada pela mesma psicóloga e consistiu de:

• Entrevistas psicológicas para diagnóstico, triagem e encaminhamento dos pacientes a atendimento grupal ou individual, assim como o delineamento de estratégias terapêuticas;

• Aplicação coletiva do Inventário Experimental “Crown Creasp”, método que avalia o estado psicológico do paciente através de escores para ansiedade, fobia, obsessão, histeria, somatização e depressão. Os dados obtidos foram então analisados quanto a fatores epidemiológicos, clínicos, terapêuticos e psicoló- gicos. RESULTADOS Foram incluídos 22 pacientes no estudo, 18 mulheres (82%) e quatro homens. A idade dos pacientes atendidos variou entre 31 e 79 anos, com média de 55 anos.

A queixa principal encontrada foi a de ardor na língua em 18 pacientes (82%), dor em pontada em dois pacientes (9%) e queimação na boca em outros dois pacientes (9%). Os principais resultados encontram-se resumidos na Tabela 1. O exame físico não demonstrou nenhuma alteração em 14 pacientes (61%), a língua fissurada foi observada em seis pacientes, língua saburrosa e língua com varizes em 1 paciente cada. Os exames subsidiários foram normais em oito (36%) pacientes, dois com diabetes (8,5%), dois com candidíase oral (teste micológico direto), sendo que um destes também apresentava diabetes.

Um indivíduo apresentou anemia (4,3%) e outro apresentou alteração de provas reumatológicas (FAN e anti Ro). A EDA demonstrou a presença de gastrite em sete casos (30,4%) e refluxo gastro-esofágico (RGE) e esofagite em um paciente cada. A avaliação psicológica foi realizada concomitante ao tratamento médico.

Dezenove pacientes (86%) realizaram psicoterapia e três não. Entre os que realizaram, oito (67%) obtiveram melhora da queixa e entre os que não realizaram, um apresentou melhora e dois ficaram inalterados. O Gráfico 1 resume a queixa principal dos pacientes e o Gráfico 2, a distribuição dos sinais observados no exame físico. No total, onze pacientes apresentaram melhora com relação à queixa principal e onze permaneceram inalterados.

As entrevistas psicológicas trouxeram importantes elementos de referência destes pacientes para o surgimento da glossodínea. Todos os sujeitos entrevistados referiram uma importante situação de perda - em especial de entes bastante relevantes, como o cônjuge - ao momento de surgimento do sintoma ou concomitante a um novo episó- dio doloroso grave.

Esta perda foi sucedida por um posicionamento depressivo diante da vida (para alguns, com importante presença de anedonia, alterações de apetite e de sono) e a exacerbação de conflitos familiares pré-existentes, porém agravados pela ausência do ente que, para quase todos os pacientes, cumpria a importante função de apaziguar tais conflitos ou até de impedir suas manifestações.

Desta maneira, todos os sujeitos deste estudo evidenciaram a existência de um sentimento de impotência diante destes problemas, assim como uma agressividade que se mostrou latente. Outro dado importante foi a co-existência de diversas outras dores em todos os pacientes.

Assim, todos foram encaminhados para atendimento psicológico grupal, sendo que apenas um não evidenciou qualquer aspecto subjetivo que pudesse colaborar na formação do sintoma. O inventário experimental Crown Creasp possibilitou a mostra de alguns aspectos subjetivos preponderantes: fobia, depressão, obsessividade e somatização, como mostra a Tabela 2, com a média e desvio-padrão dos escores. DISCUSSÃO Este estudo revelou um grande predomínio de mulheres (5:1), o que é relatado pela grande maioria dos autores (8-11).

A faixa etária, com média de 55 anos, também está dentro do encontrado em outros estudos sobre glossodínea (8-11). A presença de um exame físico normal na maioria dos pacientes (67%) é um dos fatores que dificultam o correto entendimento e tratamento deste tipo de dor crônica. Alguns autores consideram este como um problema unicamente psicogênico, enquanto outros procuram por causas orgânicas, sistêmicas ou locais para explicar a etiopatogenia da glossodínea (12). Porém, em ambas as correntes sempre há pouca ou nenhuma alteração no exame físico (12-14). A queixa mais freqüente foi o ardor em língua, como apresentado em outros estudos, sendo que os outros sintomas de glossodínea podem estar relacionados com alterações ao exame físico ou com a dificuldade do paciente em expressar o que está sentindo (8,10,12,14). Este estudo revelou um baixo índice de alterações locais ou sistêmicas que possam desencadear ou gerar as queixas da glossodínea.

Apenas 2 pacientes apresentaram alteração de fatores locais (candidíase); com relação a alterações sistêmicas, apenas 2 apresentavam diabetes, que não é considerado um fator importante na gênese da doença; um com alteração de provas reumatológicas e um com anemia.

PISANTI (1987) e BARGDAHL (1995) encontraram alterações sistêmicas relacionadas com glossodínea em um maior numero de pacientes (12,14), o que não foi observado em nossa casuística. Porém os autores que consideram a importância de alterações psicológicas mostram índices semelhantes ao deste estudo (5,12). Outro ponto observado foi a recusa do paciente em aceitar ajuda psicológica, sendo que a grande maioria iniciava psicoterapia mantendo-a por um período muito restrito.

Este fato parece estar relacionado à dificuldade do indivíduo em perceber e poder suportar que seu mal-estar esteja vinculado aos aspectos subjetivos. Assim, para que esta situação seja alterada, favorecendo a aceitação ao encaminhamento psicológico e o difícil controle desta patologia, evidencia-se a necessidade de uma relação forte e de confiança entre o médico e seu paciente, elemento fundamental para a adesão a qualquer tratamento proposto.









CONCLUSÃO

A Glossodínea foi mais prevalente em mulheres na faixa etária de 55 anos e o ardor lingual foi a queixa mais comum apresentada pelos pacientes. O entendimento da glossodínea continua difícil e cada vez mais admite-se a possibilidade de que fatores psicológicos estão envolvidos na sua etiologia.

A avaliação psicológica demonstrou que existe forte relação da sintomatologia referida com fatores psicológicos, destacando- se a depressão acarretada pela perda de um familiar que representava um forte domínio nas relações familiares. Assim, a abordagem multidisciplinar da glossodínea pode ser de grande importância, beneficiando os pobres resultados obtidos com condutas clínicas convencionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Muzyca BC, De Rossi SS. A review of burning mouth syndrome. Cutis, 64(1):29-35, 1999.
2. Pokupec-Gruden JS, Cekic-Arabasin A, Gruden V. Psychogenic factors in the aetiology of stomatopyrosis. Coll Antropol, 24 Suppl 1:119-26, 2000.
3. Nicholson M, Wilkinson G, Field E, Longman L, Fitzgerald B. A pilot study: stability of psychiatric diagnoses over 6 months in burning mouth syndrome. J Psychosom Res, 49(1):1-2, 2000.
4. Sardella A, Uglietti D, Demarosi F, Lodi G, Carrassi A. Benzydamine hydrochloride oral rinses in management of burning mouth syndrome. A clinical trial. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod, 88(6):683-6, 1999.
5. Eli I, Kleinhauz M, Baht R, Littner M. Antecedents of burning mouth syndrome (glossodynia).recent life events vs. psychopathologic aspects. J Dent Res, 73(2):567-72, 1994.
6. Wesselmann U, Reich SG. The dynias. Semin Neurol, 16(1):63-74, 1996.
7. Trikkas G, Nikolatou O, Samara C, Christodoulou GN. Glossodynia: personality characteristics and psychopathology. Psychother Psychosom, 65(3):163-8,1996.
8. Svensson P, Kaaber S. General health factors and denture function in patients with burning mouth syndrome and matched control subjects. J Oral Rehabil, 22:887-895, 1995.
9. Tammiala-Salonen T, Hiidenkari T, Parvinen T. Burning mouth in a Finnish adult population. Community Dent Oral Epidemiol, 21:67-71, 1993.
10. Van der Ploeg HM, van der Wal N, Eijkman MAJ. Psychological aspects of patients with burning mouth syndrome. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, 63:664-668, 1987.
11. Grushka M. Clinical features of burning mouth syndrome. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, 63:30-36, 1987.
12. Bergdahl J, Anneroth G, Perris H. Cognitive therapy in the treatment of patients with resistant burning mouth syndrome: A controlled study. J Oral Pathol Med, 24:213-215, 1995.
13. Bergdahl J, Anneroth G, Anneroth I. Clinical study of patients with burning mouth. Scand J Dent Res, 102:299-305, 1994.
14. Pisanti S, Rafaely B, Polishuk WZ. The effect of steroid hormones on buccal mucosa of menopausal women. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, 40:346-353, 1987.

* Médico Assistente Doutor da Divisão de Clinica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico Residente da Divisão de Clinica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Ex-Médico Residente da Divisão de Clinica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Psicóloga da Divisão de Clinica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Apresentado no II Congresso de Otorrinolaringologia da USP, realizado de 5 a 7 de agosto de 2001, em São Paulo.
Endereço para correspondência: Bernardo Cunha Araújo Filho . Rua Ovídio Pires de Campos, 171 / 617 . São Paulo / SP . CEP: 05403-010 .
Telefone: (11) 8146-5405 . E-mail: bcaf@terra.com.br
Artigo recebido em 12 de Janeiro de 2004. Artigo aceito em 20 de fevereiro de 2004.
  Print:

 

All right reserved. Prohibited the reproduction of papers
without previous authorization of FORL © 1997- 2024