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Ano: 1999  Vol. 3   Num. 4  - Out/Dez Print:
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Epistaxe associada a síndrome de Rendu-Osler-Weber (telangiectasia hemorrágica hereditária)
Author(s):
1Regina Helena Garcia Martins, 2Victor Nakajima, 3Norimar Hernandes Dias, 4Júlio Claudio Sousa
Palavras-chave:
INTRODUÇÃO

Pacientes com epistaxe são atendidos diariamente nos consultórios otorrinolaringológicos e pronto-socorros. Aqueles que apresentam constantes recidivas são submetidos a sucessivas cauterizações químicas de pequenos vasos da mucosa septal e orientados a retornarem, caso o sangramento se repita. Entretanto, esses pacientes podem ser atendidos por médicos diferentes a cada retorno, como ocorre freqüentemente nos hospitais universitários, o que impede o seguimento do caso pelo mesmo profissional. Nesses casos, se a história clínica não for detalhada a cada retorno, muitas patologias hemorrágicas sistêmicas podem não ser diagnosticadas, como é o caso da telangiectasia hemorrágica familiar (THH).

Conhecida como Síndrome de Rendu-Osler-Weber, por receber o nome dos primeiros autores que a descreveram, trata-se de uma angiodisplasia (displasia fibro-vascular) sistêmica, envolvendo os vasos da face e mucosas. A transmissão é autossômica dominante, com freqüência de aparecimento de 1 para cada 100.000 habitantes, sem predileção pelo sexo. Nos casos em que não há relato de história familiar, trata-se, provavelmente, de mutação nova1.

O quadro clínico clássico é representado pela tríade: telangiectasias, epistaxes recidivantes e história familiar de quadros hemorrágicos. Os primeiros sintomas aparecem na segunda década de vida (raramente iniciam-se na infância) com quadros de epistaxes recidivantes e progressivas, presentes em 90% dos pacientes. As telangiectasias comprometem principalmente a mucosa do septo nasal cartilaginoso, podendo apresentar aspecto linear ou em formato de "aranha". Além da mucosa septal, podem também comprometer a mucosa dos cornetos, rinofaringe, hipofaringe, palato e restante do trato digestivo. A cavidade oral é freqüentemente atingida, em particular a mucosa dos lábios inferiores, região jugal e língua1.

Pauchu et al2 avaliaram 324 pacientes portadores da THH e constataram que 97% dos pacientes apresentavam epistaxes recidivantes entre os primeiros sintomas da doença. O comprometimento visceral ocorreu em 25% dos pacientes, com envolvimento hepático, pulmonar e do sistema nervoso central. Essa condição pode tornar o quadro clínico bastante grave, com hemorragia de difícil controle2,3.

Pela alta freqüência do atendimento otorrinolaringo­lógico aos pacientes portadores de THH, consideramos interessante ilustrar tal patologia com a apresentação dos casos clínicos que se seguem.

CASO 1

S.A., 21 anos, procurou o pronto-socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP), com quadros repetidos de sangramentos nasais, com melhora temporária após algumas cauterizações químicas, realizadas nos últimos meses. Afirmava que o pai apresentava quadro semelhante, porém os sangra­mentos eram diários, ao simples toque do nariz. O jovem negava qualquer indício de hemorragia em outros órgãos. Encontrava-se em bom estado geral, corado e hidratado.

Ao exame ORL observava-se que a mucosa de revestimento de ambas as fossas nasais, era "desenhada" por múltiplas telangiectasias em formato de "aranha", envolvendo septo e cornetos (Figura 1). Lesões isoladas com o mesmo aspecto estavam também presentes em lábio inferior, mucosa da região jugal, palato mole e rinofaringe (Figura 2). Apresentava raras lesões telangiectásicas isoladas em região anterior do tórax.

O paciente foi avaliado pelo setor de genética e de hematologia, não sendo detectado nenhuma alteração no hemograma ou no coagulograma. A terapia com estrógeno foi iniciada .

CASO 2

B.A, 49 anos (pai do paciente anterior), referia episódios diários de sangramento nasal ao simples toque do nariz, desde os 15 anos de idade, com piora nos últimos 5 anos. Negava episódios de hemorragias em outros órgãos e afirmava ter sido submetido a várias cauteri­zações químicas. Havia realizado exame de sangue no qual foi diagnosticado anemia, necessitando tomar medicamentos a base de ferro.

O exame otorrinolaringológico revelava a existência de perfuração septal, envolvendo toda a porção do septo cartilaginoso, coberta por crostas hemáticas, facilmente sangrantes. A mucosa do restante das fossas nasais apresentava dezenas de telangiectasias, bem como a região da rinofaringe e hipofaringe. Na região posterior da cartilagem aritenóide direita observava-se área de hemangioma azulado, de 1 cm de diâmetro (Figura 3). A mucosa do lábio inferior apresentava grande quantidade de lesões puntiformes vinhosas (Figura 4). O paciente recebeu avaliação genética e hematológia, sendo detectado anemia ferropriva . Será submetido a arteriografia e embolização dos principais vasos responsáveis pelas epistaxes.


Figura 1. Mucosa do septo nasal e dos cornetos com várias telangiectasias (caso 1).


Figura 2. Lesão telangiectásica em região de rinofaringe (caso 1).


Figura 3. Hemangioma em região posterior da cartilagem aritenóide direita (caso 2)


Figura 4. Lábio inferior com várias lesões telangiectásicas (caso 2)


DISCUSSÃO

Os pacientes portadores de telangiectasia hemor­rá­gica familiar apresentam, como primeiro sintoma, epistaxes recorrentes. Os quadros iniciais são geralmente leves e não provocam alterações hemodinâmicas ou hematológicas. Ao longo dos anos, os episódios tornam-se mais freqüentes, como ocorreu no paciente descrito no caso 2, podendo-se observar anemia importante, sendo necessário suplementação de ferro, ou mesmo transfusões sangüíneas4.

Plauchu et al.2, ao analisarem 324 pacientes portadores de telangiectasia hemorrágica familiar, observaram comprometimento visceral em 25% dos pacientes, sendo os principais órgãos comprometidos o trato gastrointes­tinal (esôfago e fígado), pulmões, rins e sistema nervoso central. Os principais sintomas observados foram epistaxe, hemoptise, hematêmese e melena. Com o envolvimento do trato gastrointestinal pode-se observar também varizes esofágicas, hepatomegalia, colestase, shunts arteriovenosos, hipertensão portal e fibrose nodular hepática3,4,5.

O comprometimento pulmonar pode ocorrer pelo desenvolvimento de fístulas arteriovenosas, levando a quadros de dispnéia, cianose e hipóxia 3,4,5,6. A suspeita do envolvimento pulmonar pode ser confirmado pela tomografia computadorizada e cintilografia pulmonar6,7.

O sistema nervoso central também pode ser sede das malformações vasculares, podendo-se observar hemorragia intracraniana, déficits motores e sensitivos e abscessos cerebrais, decorrentes de êmbolos sépticos originados de focos bacterianos à distância (dentários, sinusais ou amigdalianos)3. Sintomas menos freqüentes são hematúria e sangramento vaginal.

As medidas terapêuticas são, muitas vezes, apenas de suporte, como a suplementação de ferro e as transfusões sangüíneas. As cauterizações químicas sucessivas podem provocar perfuração septal a longo prazo, como pudemos observar no paciente do caso 2. A cauterização com laser parece ser mais eficaz, por não lesar os tecidos adjacentes aos vasos, diminuindo os episódios dos sangramentos8,9. Outras modalidades terapêuticas também têm sido descritas, como a criocauterização, injeção de soluções esclerosantes e dermoplastia 1,4,5,10. Entretanto, no segundo caso apresentado, observamos extensa perfuração septal envolvendo toda a porção cartilaginosa, dificultando a correção local, daí a escolha da arteriografia com embolização, a qual tem-se mostrado eficaz na diminuição dos episódios de epistaxes11,12. Neste caso, pela grande quantidade de lesões vasculares observadas em toda a mucosa das vias aerodigestivas, medidas terapêuticas defenitivas são praticamente impossíveis.

A estrogenoterapia é preconizada por alguns autores, baseado no fato de que os episódios de epistaxes diminuem durante a gravidez e aumentam na menopausa13,14. Para esses autores, o estrógeno parece provocar metaplasia das camadas endoteliais tornando-as mais resistentes. A validade desse tratamento é questionada por outros autores15. No primeiro paciente apresentado neste trabalho, os quadros de epistaxes eram leves, sem repercussões sistêmicas, daí a possibilidade de obtermos sucesso com a terapia hormonal, porém sabemos que, ao longo dos anos, outras medidas terapêuticas serão necessárias, como as cauterizações com laser.

Os pacientes apresentados neste trabalho não relatavam sintomas de manifestações hemorrágicas viscerais da patologia. Entretanto essa possibilidade deve ser informada e esclarecida para que esses pacientes possam correlacioná-las às possíveis manifestações sistêmicas da doença que poderão apresentar durante a vida. Todos os pacientes portadores de THH devem receber avaliação hematológica (para o diagnóstico diferencial das demais patologias hemorrágicas sistê­micas) e genética (para complementação diag­nóstica e orientação familiar).

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Trabalho realizado pela Disciplina de ORL e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - Departamento de OFT,ORL e CCP - UNESP- São Paulo.
Endereço para correspondência: Regina Helena Garcia Martins - Faculdade de Medicina de Botucatu - Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Fone: (0xx14) 8206256.
E-mail: rmartins@laser.com.br UNESP - 18618-000 - Botucatu - SP.

1- Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.

2- Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.

3- Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.

4- Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
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