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Ano: 2005  Vol. 9   Num. 3  - Jul/Set Print:
Case Report
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Paralisia Facial Periférica Bilateral em Paciente com HIV
Bilateral Peripheral Facial Palsy in HIV Patient
Author(s):
Felipe Sartor G. Fortes*, Ricardo Ferreira Bento**, Robson Koji Tsuji***, Arthur Menino Castilho****, Rubens Vuono de Brito Neto*****.
Palavras-chave:
paralisia facial bilateral, HIV, herpes simples, diagnóstico.
Resumo:

Introdução: A paralisa facial bilateral é um evento raro, correspondendo a cerca de 0,3 a 2% dos casos de paralisia facial. Sua incidência está ao redor de 1/5.000.000 habitantes por ano. Ao contrário da paralisia unilateral, que na maioria dos casos é devido a paralisia de Bell, o diagnóstico diferencial da paralisia bilateral é amplo e freqüentemente associada à doença sistêmica, sendo apenas 25% dos casos devido à paralisia Bell. Objetivo: Relatar o caso de um paciente com HIV e paralisia facial bilateral. Relato: Paciente de 35 anos, sexo masculino, com diagnóstico de HIV, referiu surgimento de lesões vesiculosas em cavidade oral há 8 dias, acompanhado de pródromo viral. Três dias após desenvolveu quadro de PFP bilateral simétrica grau V. Recebeu aciclovir 600mg EV 8/8 horas e dexametasona 8mg/dia. Os exames laboratoriais, as sorologias para sífilis e Lyme e a audiometria e RM estavam normais. Evoluiu com melhora completa do quadro bilateral após 6 meses. Conclusões: Ressaltamos a importância da investigação diagnóstica em todos os casos de PFP bilateral e possível associação do quadro com infecção pelo vírus herpes simples.

INTRODUÇÃO

Enquanto a paralisia facial periférica (PFP) unilateral é uma afecção relativamente comum, com uma incidência de entre 12 a 25 casos por ano para cada 100.000 habitantes, a paralisia facial bilateral simultânea é uma afecção rara, que corresponde a menos de 2% dos casos de paralisia facial (1). Sua incidência é de um caso para cada cinco milhões de habitantes ao ano (2). A recorrência ocorre em 7 a 12% dos casos de PFP unilateral, sendo mais comum no lado oposto, enquanto recorrência de PFP bilateral é bastante rara (1,2).

Ao contrário da paralisia facial unilateral, na qual a maioria dos casos não apresenta etiologia definida, com diagnóstico de paralisia idiopática de Bell em até 80% dos casos, a paralisia bilateral geralmente apresenta etiologia definida. Apenas 25% dos casos são atribuídos a paralisia de Bell. Desta forma, torna-se fundamental a investigação da PFP bilateral pelo maior risco de associação com outras doenças (3,4).

Pacientes com sorologia positiva para HIV freqüentemente apresentam manifestações otológicas e neurotológicas, sendo que a paralisia facial pode ocorrer em qualquer fase da doença, inclusive como primeira manifestação (5). A paralisia de Bell é responsável pela maioria dos casos, ocorrendo geralmente em pacientes assintomáticos (5,6).

O objetivo deste estudo é descrever o caso de um paciente com HIV que desenvolveu paralisia facial periférica bilateral severa associado a quadro de lesão herpética na cavidade oral, além de realizar uma revisão de literatura sobre o tema, discutindo os aspectos relativos à etiologia e investigação da PFP bilateral.

RELATO DE CASO

Paciente de 35 anos, sexo masculino, com diagnóstico de HIV e fazendo acompanhamento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, refere surgimento de lesões vesiculosas em lábio superior e lesões aftóides na mucosa jugal há 8 dias, acompanhado de quadro clínico de pródromo viral. Estava fazendo uso de Aciclovir tópico, sendo que já havia apresentado herpes labial no passado. Após três dias do aparecimento da lesão labial, desenvolveu quadro de paralisia facial do tipo periférica bilateral, súbita, simétrica e aparentemente sem fatores desencadeantes. O paciente negava queixas otológicas atuais e prévias, além de paralisia facial prévia.


Figura 1. Fechamento ocular incompleto bilateral com máximo esforço, ausência de movimento da musculatura mímica facial bilateral.


Como antecedente pessoal importante, o paciente refere diagnóstico de HIV desde 1990, por provável transmissão sexual, fazendo acompanhamento médico regular e sem necessidade de terapia anti-retroviral (CD4/CD8 estáveis, com baixo índice de replicação viral). Refere história de tuberculose pulmonar tratada há 4 anos. Nega história de diabetes mellitus, contato com carrapato, abaulamento parotídeo e trauma.

Ao exame físico apresentava paralisia facial periférica bilateral simétrica grau V, segundo classificação de House-Brackman (7) (Figura 1). Na oroscopia notava-se presença de lesão crostosa em lábio superior, além de lesões aftóides na mucosa jugal bilateralmente. Não apresentava lesão em pavilhão auricular, com meato acústico externo e membrana timpânica sem alterações. A palpação cervical era normal, não apresentava alteração no exame neurológico de outros pares cranianos.

O paciente foi admitido com diagnóstico de PFP bilateral, sendo internado para investigação diagnóstica e tratamento clínico, recebendo aciclovir 600mg EV 8/8 horas e dexametasona 8mg/dia.

Os exames de hemograma, testes de função hepática e eletrólitos foram normais. As sorologias para sífilis, doença de Lyme e provas reumatológicas foram negativas.

Na audiometria apresentava perda auditiva do tipo neurossensorial simétrica moderada em agudos, achado semelhante à audiometria prévia de 2000. O timpanograma era normal e apresentava ausência de reflexos bilateralmente.

Foi solicitado exame de Ressonância Magnética de crânio que mostrou nervo facial com trajeto, calibre e realce normal, com estruturas da orelha interna preservadas (Figuras 2 e 3).

Após 4 semanas de evolução, o paciente apresentava-se com melhora importante da paralisia em ambos lados, grau 3 (7), sendo que após 6 meses apresentava melhora completa da paralisia, persistindo apenas com sincinesia.


Figura 2. Corte coronal de RM em T2, mostrando trajeto do nervo facial sem alterações.



Figura 3. Corte axial de RM em T2, mostrando nervo facial e estruturas da orelha interna preservadas.


DISCUSSÃO

A PFP bilateral é uma afecção rara e que geralmente se associa a um quadro sistêmico, devendo ser investigada cuidadosamente antes de se estabelecer diagnóstico de paralisia idiopática de Bell (4).

O diagnóstico diferencial é amplo, variando desde causas idiopáticas, como a paralisia de Bell, Melkersson-Rosenthal, síndrome de Guillain-Barret, neuropatia cranial múltipla; infecciosas, como a doença de Lyme, herpes zoster, neuropatia pelo HIV, sífilis, mononucleose, citomegalovírus, otite média bilateral, meningite bacteriana; neoplásicas, como as leucoses, linfomas e tumores do ângulo ponto-cerebelar. Outras possíveis causas são as doenças metabólicas como diabetes, o traumatismo craniano, as malformações como a Síndrome de Möbius e doenças de etiologia incerta como a sarcoidose, vasculites, entre outras (1-3).


A doença de Lyme é relatada como a principal causa infecciosa de PFP bilateral, correspondendo até 39% dos casos em algumas séries, embora sua incidência seja bastante variada (1,4). No Brasil, a sua real incidência é desconhecida, embora existam casos relatados da doença na Grande São Paulo e no Litoral do estado de São Paulo, Florianópolis e Morro Branco (RN) (8), curiosamente acometendo principalmente turistas e sempre com a presença de vegetação nas proximidades. Foi relatado em Cotia o caso de um paciente com PFP bilateral associado à surdez súbita, que foi tratado com eritromicina, evoluindo com regressão completa da PFP, mas sem melhora da hipoacusia (9).

A doença é causada por uma bactéria espiroqueta, a Borrelia burgdorferi, cujo vetor mais comum é um carrapato (9). A Borreliose de Lyme é uma infecção polimorfa, com evolução e manifestações clínicas variáveis. Seu período de incubação varia de 3 a 32 dias. A primeira manifestação da doença costuma ser de rash cutâneo (classicamente o eritema crônico migrans), associado aos sintomas de pródromo viral (estágio 1). Após algumas semanas ou meses, os pacientes podem manifestar-se com quadro neurológico e cardíaco, sendo comum neste estágio a mialgia migratória (estágio 2). Os pacientes podem apresentar quadro de meningoencefalite, neuropatia cranial múltipla, e radiculoneurite. Tipicamente apresentam sintomas flutuantes de meningite, acompanhados de PFP e radiculoneurite periférica. O terceiro estágio pode ocorrer após algumas semanas ou anos do quadro inicial, manifestando-se com quadro de monoartrite (60% dos pacientes), cutâneo (acrodermatite crônico atrófico), ou neurológico (8,9).

A PFP ocorre em até 10% dos pacientes com Lyme, sendo bilateral em 30% dos casos. O prognóstico da paralisia é ótimo, com recuperação completa na maioria dos casos. Os pacientes com quadro neurológico associado e PFP bilateral apresentam pior prognóstico. Ao contrário da paralisia de Bell que é mais comum em adultos, a doença de Lyme é mais comum em crianças. O diagnóstico é sorológico, sendo que os anticorpos da classe IgM aumentam ao redor da segunda semana e tendem a regredir com tratamento, enquanto os anticorpos da classe IgG surgem tardiamente com pico ao redor do segundo ou terceiro mês, podendo permanecer positivo indefinidamente (9). O tratamento preconizado é a antibioticoterapia, sendo a tetraciclina a opção de escolha. Penicilina e eritromicina também podem ser usadas (8). Como no caso relatado o paciente apresenta sorologia negativa, e não apresenta história de contato com carrapato ou antecedente de viagens a áreas endêmicas, o diagnóstico foi descartado.

A síndrome de Guillain Barret (GBS) é uma polirradiculoneurite inflamatória pós-infecciosa de etiologia incerta. IX, X e VII são os pares cranianos mais acometidos em ordem de freqüência. A PFP bilateral pode correr em até 50% dos casos, associada ao pior prognóstico. O quadro típico é de disfagia com disartria, acompanhados de arreflexia e paralisia motora ascendente. O diagnóstico é feito através de punção lombar, que mostra dissociação líquorica: número de células normal e proteínas elevadas (1,3). No caso relatado, a GBS foi descartada pela ausência de outros sinais neurológicos.

Os pacientes com HIV podem apresentar PFP em qualquer estágio evolutivo da doença, embora seja mais freqüente em pacientes assintomáticos (10). A PFP pode inclusive preceder o aparecimento da doença. Em pacientes assintomáticos, ocorre como paralisia de Bell ou manifestação regional da Síndrome de Guillain Barret. Em imunodeprimidos, estágio mais avançado da doença, a PFP também pode correr pela infecção do herpes zoster. Nestes casos, a PFP pode ser unilateral, associada erupção cutânea, ou bilateral, como conseqüência da meningoen¬cefalite herpética. Além disto, pacientes imunodeprimidos apresentam PFP como conseqüência do próprio HIV, pela neuropatia crônica associada ao vírus, ou ainda associada a quadros de linfomas não Hodgkin, geralmente secundária a disseminação meníngea. Nestes casos, o diagnóstico é feito através do exame do líquor (5,6).

Como no caso descrito o paciente apresenta níveis altos de CD4/CD8, sem antecedente de infecção pelo zoster, não foi realizado exame do líquor. No entanto, a paralisia poderia estar associada à neuropatia pelo próprio HIV.

As neoplasias são causas raras de PFP bilateral, geralmente secundária a disseminação meníngea. Embora tumores pontinos possam manifestar-se com PFP bilateral, as leucoses e linfomas são as neoplasias mais freqüentes (1,5,11). Assim, é fundamental realização de hemograma na investigação dos casos de paralisia facial, especialmente em pacientes com HIV e crianças. O hemograma no caso relatado é normal e o exame de RNM não revelou lesões expansivas ou infiltrativas de base de crânio.

A paralisia de Bell é responsável por aproximadamente 25% dos casos de PFP bilateral (1). Sua etiologia ainda é incerta e discutida, sendo que alguns autores sugerem associação com o Herpes simples. Desta forma, a PFP poderia ocorrer como possível reativação do vírus latente no gânglio geniculado (12). O diagnóstico de Bell é de exclusão, devendo ser feito após investigação cuidadosa, especialmente na PFP bilateral. O prognóstico da paralisia de Bell bilateral, assim como na paralisia unilateral, é favorável na maioria dos casos. A recuperação da função costuma ocorrer primeiro em um lado, sendo que a recuperação do lado oposto pode ocorrer semanas ou meses após (4).

Existem relatos de pacientes com PFP bilateral associado com estomatite herpética (13) e infecção herpética genital, embora a maioria dos casos de PFP idiopática não esteja associada a lesões orais (14). No caso relatado, a manifestação de PFP bilateral ocorreu após quadro de herpes labial, reforçando sua possível associação com PFP.

Na RNM pode ser observado aumento na captação de contraste pelo nervo facial em pacientes com Bell, possivelmente secundária ao processo inflamatório local, com edema e aumento da vascularização (15). Alguns autores sugerem também que a RNM poderia ser usada como exame prognóstico, sendo que a captação de contraste na porção mastóidea do nervo seria indicativa de pior prognóstico (15). A captação de contraste também pode ser observada em pacientes com Lyme e Herpes Zoster (14). Não foi observada captação anômala de contraste no caso relatado.

Após investigação laboratorial e radiológica negativa, a paralisia de Bell e a neuropatia relacionada ao HIV não podem ser descartadas como possíveis diagnósticos diferenciais. Pela associação cronológica do aparecimento da PFP bilateral com o herpes labial, acreditamos que este possa estar relacionado com o quadro.

COMENTÁRIOS FINAIS

A PFP bilateral é um evento raro e freqüentemente associado a doenças sistêmicas. Ressaltamos a importância da investigação laboratorial e radiológica em todos os casos, especialmente em pacientes HIV positivo. Embora necessite maiores evidências, relatamos também a possível associação entre o vírus herpes simples e a paralisia facial bilateral.

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