INTRODUÇÃO
A cirurgia da laringe teve um grande impulso nas últimas décadas com a introdução das técnicas cirúrgicas endoscópicas, propiciando diminuição do tempo cirúrgico e de internação, com redução significativa da morbidade pós-operatória. Entretanto, as potenciais complicações tornaram-se mais importantes, pois facilmente pode-se alcançar estruturas profundas inadvertidamente.
O conhecimento da anatomia laríngea é fundamental para o adequado resultado cirúrgico. Mais do que isso, situar-se na estrutura laríngea como um todo a partir da sua visão endoscópica é de fundamental importância na prática cirúrgica. Dessa forma, o bom cirurgião consegue reconstruir em sua mente, durante a operação, toda a estrutura tridimensional da laringe. Assim, sabe exatamente qual estrutura está localizada por baixo da mucosa que está manipulando, além de poder determinar a projeção de uma articulação a partir da luz laríngea e inferir a posição da inserção de um determinado músculo junto à cartilagem que ali se articula.
Essa habilidade somente é desenvolvida após exaustivo estudo e dissecção de peças anatômicas e de insistente observação e treinamento cirúrgico. A limitação do acesso a peças anatômicas dificulta esse treinamento. Por outro lado, embora exista abundante divulgação dos sistemas ópticos com documentação e divulgação das imagens anatômicas e cirúrgicas, há uma limitação importante dessas imagens com relação ao efeito tridimensional. Isso porque os sistemas ópticos convencionais baseiam-se na observação através de uma óptica única, perdendo-se a visão binocular, que permite a idéia tridimensional. Essa imagem é obtida ao microscópio cirúrgico, mas se a laringe for observada, por exemplo, com óticas rígidas introduzidas dentro do laringoscópio de suspensão, esse efeito se perde.
A visão tridimensional que permite a real apreciação da profundidade é denominada de visão estereoscópica e requer a observação concomitante do elemento visualizado a partir de dois pontos de vista distintos. É ela que nos permite a precisa orientação e interação no espaço que nos cerca.
O recente e contínuo avanço nas técnicas fotográficas e de informática permitiram a modernização dos métodos de desenvolvimento de imagens estere oscópicas. A partir de 1997, a Disciplina de Topografia Estrutural Humana e a Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo começaram a produzir material didático estereoscópico com o objetivo de aprimorar o ensino médico, uma vez que a visão tridimensional estereoscópica permite a real apreciação da profundidade dos objetos1.
Assim, o ensino da anatomia da laringe em três dimensões permite que o aluno tenha maior facilidade no aprendizado das relações espaciais das estruturas aí presentes. Portanto, o objetivo deste estudo é exemplificar a utilidade da técnica de reproduções de imagens tridimensionais estereoscópicas no estudo da anatomia da laringe.
MATERIAL E MÉTODOS
Para a realização deste trabalho, uma laringe excisada de cadáver adulto e masculino foi dissecada e preparada para ser fotografada de acordo com a técnica para reprodução de imagens tridimensionais estereoscópicas desenvolvida em nosso serviço e descrita em detalhes em artigo anterior1.
RESULTADOS
O efeito tridimensional estereoscópico na laringe excisada pode ser visto nas figuras 1 a 5, usando-se o par de óculos especiais que acompanham esta edição da revista.
A Figura 1 mostra uma visão anterior da laringe que, em condições usuais, situa-se na região cervical e é envolvida por músculos, vasos e nervos. Está recoberta pelos músculos omohioideos, esternohioideos, esternotireoideos e tireohioideos, que se originam e se inserem nas estruturas que constituem seus nomes. Faz parte das vias aerodigestivas superiores, desenvolvendo a função fundamental de proteger as vias aéreas inferiores da penetração de secreções e alimentos que estejam sendo deglutidos. Estrategicamente abre-se na hipofaringe, interpondo-se entre esta e a traquéia. Sua estrutura é basicamente formada pelas cartilagens tireóide e cricóide, que se unem e se articulam pela membrana e articulações cricotireóideas, respectivamente. Nessas cartilagens também se inserem os músculos cricotireóideos, que são responsáveis pela aproximação anterior dessas cartilagens com tensionamento das pregas vocais, tornando a emissão vocal mais aguda. Todo esse conjunto está suspenso e fixo ao osso hióide superiormente, através dos ligamentos e membrana tireohioidea. Inferiormente, esse conjunto se continua com a traquéia, que se conecta ao bordo inferior da cricóide. Sobre a traquéia, entre o 1o e 3o anel, localiza-se a glândula tireóide, que possui dois lobos (direito e esquerdo), unidos por um istmo que cruza anteriormente a traquéia.
Lateralmente à laringe, temos o feixe vásculo-nervoso do pescoço, constituído pela veia jugular, artéria carótida e nervo vago. Todas essas estruturas têm relação com a laringe, seja na sua irrigação (através das artérias e veias tireoideas superiores e inferiores) ou na sua inervação. De especial interesse é o nervo laringeo recorrente, que emerge do nervo vago, contorna o tronco braquiocefálico à direita e aorta à esquerda, passando a ter um percurso superior no sulco tráqueo-esofágico de grande relação com o pólo inferior da glândula tireóide, até penetrar na laringe. É responsável pela inervação de toda musculatura intrínseca da laringe, exceto o cricotireoideo, que é inervado pelo ramo laringeo superior do vago (Figura 1).
A Figura 2 mostra uma visão lateral da laringe, mostrando a borda posterior da cartilagem tireóidea onde se insere o músculo constritor inferior da faringe. Mais inferiormente, observamos o lobo da glândula tireóide rebatido anteriormente juntamente com a artéria carótida, facilitando a visualização da emergência do nervo laríngeo recorrente a partir do nervo vago, que assume, então, um trajeto ascendente no sulco traqueo-esofágico passando muito próximo ao pólo inferior do lobo tireoideano e penetrando na laringe próximo ao corno inferior da cartilagem tireóide e ao músculo cricoaritenoideo posterior.
A Figura 3 mostra uma visão superior da laringe, podendo-se observar as estruturas do tubo laringofaríngeo, que representa a região de separação entre as vias aéreas e digestivas. O ar inspirado deve penetrar o vestíbulo laríngeo enquanto as secreções e alimentos devem seguir pelos seios piriformes em direção ao esôfago, posteriormente à laringe. O vestíbulo laríngeo é limitado anteriormente pela epiglote e posteriormente pelas aritenóides. Unindo essas estruturas, temos as pregas ariepiglóticas no sentido anteroposterior. Lateralmente a essas pregas situam-se os seios piriformes, que se comunicam anteriormente à epiglote com as valéculas. Dessa forma, as estruturas supraglóticas da laringe se projetam como um cilindro no interior da hipofaringe. A cada deglutição existe elevação da laringe e constrição do vestíbulo laríngeo, atuando como um mecanismo esfincteriano. Na profundidade do vestíbulo laríngeo podemos observar as bandas ventriculares e pregas vocais, que também contribuem para a oclusão laríngea durante a deglutição, protegendo a via aérea inferior, que é sua função mais primordial.
A Figura 4 mostra uma visão superior da laringe após a remoção das estruturas supraglóticas, exceto as bandas ventriculares. Com essa preparação, é possível observar em maior detalhe a relação entre as cartilagens tireóide e aritenóides, que se articulam na face superior e posterior da cricóide. As aritenóides se conectam à tireóide através dos ligamentos e pregas ventriculares e vocais. Enquanto as bandas ventriculares se fixam na face anterior do corpo da aritenóide, as pregas vocais se fixam no processo vocal dessas cartilagens. Junto à cartilagem tireóide, as pregas vocais fundem-se no ligamento da comissura anterior. Posteriormente, as aritenóides unem-se através dos músculos interaritenoideos (ou somente aritenoideos), formando a comissura posterior (Figura 4). Ainda se pode observar a relação dessas estruturas com o seio piriforme, que corresponde ao espaço entre as cartilagens tireóide e cricóide e localiza-se lateralmente às aritenóides, continuando-se na região retrocricóidea com o esôfago.
A Figura 5 é uma preparação em que foi realizada a remoção unilateral da banda ventricular e da porção superior da lâmina tireóidea. Pode ser observada a relação entre a banda ventricular e prega vocal, notando-se que estas estruturas não se unem, existindo um espaço entre elas denominado ventrículo laríngeo, que se prolonga até próximo à cartilagem tireóide. Se a banda ventricular for removida, abre-se o ventrículo expondo toda superfície superior da prega vocal. Retirando-se a mucosa que recobre a prega vocal (Figura 5), pode ser visualizado o músculo tireoaritenóideo, que é o músculo que forma a prega vocal. Sua porção lateral insere-se na face interna da lâmina tireoidea, enquanto sua porção medial, próxima ao ligamento vocal (denominada de músculo vocal) insere-se anteriormente na tireóide, imediatamente lateral ao tendão da comissura anterior.
Figura 1. Visão anterior da laringe.
Figura 2.Visão lateral da laringe.
Figura 3. Visão superior da laringe
Figura 4. Visão superior da laringe após remoção das estruturas supraglóticas, exceto bandas ventriculares.
Figura 5. Visão superior da laringe após remoção unilateral da banda ventricular e da porção superior da lâmina tireoidea.
DISCUSSÃO
O preciso conhecimento da anatomia laringea é uma condição imprescindível para o otorrinolaringologista. Com o avanço das técnicas e equipamentos cirúrgicos, cada vez mais indicações e procedimentos endoscópicos são incluídos no tratamento das afecções laríngeas. O exemplo mais marcante é a técnica endoscópica para o tratamento dos tumores laríngeos. Nessas condições, o cirurgião precisa ter uma perfeita noção tridimensional da lesão, para remover o tumor com margem cirúrgica adequada. Mais do que nunca, é preciso uma orientação exata com relação às projeções das diversas estruturas da profundidade da laringe, uma vez que o cirurgião tem que planejar e guiar sua ressecção baseando-se somente na lesão visualizada na mucosa da laringe.
As técnicas de ensino e de documentação de imagens baseiam-se, em sua grande maioria, no uso da linguagem oral e escrita e em reproduções bidimensionais. Por outro lado, o conhecimento e a familiaridade com os elementos exigem a noção clara e segura da sua tridimensionalidade, o que permite que a sua abstração mental seja feita de maneira imediata e variada.
Nesse sentido, o desenvolvimento recente de técnicas fotográficas e de informática que permitiram a melhora da qualidade das imagens estereoscópicas e a viabilização de sua produção em maior escala, estão proporcionando um avanço revolucionário também na área do ensino.
As imagens estereoscópicas facilitaram o ensino da anatomia laríngea, enfatizando sua tridimensionalidade, criando maior aproximação da experiência de dissecção do órgão. Embora não substitua o treinamento em dissecção de peças anatômicas, onde existe dificuldade desse treinamento prático, essas imagens podem ser um forte aliado no aprendizado. O domínio dessa técnica de documentação também está permitindo a produção de vídeos em 3D, que complementam esse material didático. Num futuro breve, esperamos que esta técnica possa ser mais difundida, permitindo seu uso em maior escala no ensino brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Ribas, G. C.; Bento, R. F.; Rodrigues Jr, A. J. - Reproduções impressas de imagens tridimensionais estereoscópicas para ensino, demonstrações e documentações. Arquivos da Fundação Otorrinolaringologia 4(2): 48-54, 2000
Trabalho desenvolvido na Disciplina de Otorrinolaringologia e na Disciplina de Topografia Estrutural Humana da Faculdade de Medicina da USP Endereço para correspondência: Luiz Ubirajara Sennes - Rua Pedroso Alvarenga, 1255 - cj. 27 São Paulo - SP - CEP: 04531-012 - Telefone: (0xx11)3167-6556 - Fax: (0xx11)3079-6769 E-mail: sennes@attglobal.net
1- Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
2- Médico Assistente Doutor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
3- Doutoranda do curso de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina da USP.
4- Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
5- Professor Assistente Doutor da Disciplina de Topografia Estrutural Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.