INTRODUÇÃO
Com os recentes avanços em antibioticoterapia, a perda de visão permanente decorrente de um quadro infeccioso sinusal tornou-se extremamente rara1,2, porém, devido às conseqüências dramáticas que traz ao paciente, este quadro deve ser conhecido e estudado para evitarmos sua ocorrência.
A perda de visão secundária às infecções sinusais pode ocorrer de 2 maneiras principais: como extensão direta de uma celulite orbitária e seus subgrupos (abscessos subperiosteais, orbitários) ou como componente da chamada síndrome do apex orbitário, em que há comprometimento dos vasos e nervos situados no forame óptico e na fissura orbitária superior7. As complicações orbitárias de sinusites foram classificadas por CHANDLER4 em 5 grupos (Tabela 1), sendo que o abcesso intraconal e a trombose de seio cavernoso são os mais associados à perda de visão. A rapidez na abordagem terapêutica adequada destas complicações é essencial para prevenir danos visuais permanentes. Apesar dos avanços diagnósticos, especialmente em relação aos métodos de imagem, ainda ocorrem complicações decorrentes de atrasos na abordagem destes pacientes, principalmente devido a achados \"duvidosos\" em tomografias e radiografias.
O objetivo deste estudo é relatar o caso de um paciente atendido em nosso serviço com sinusite aguda que evoluíra com amaurose irreversível a despeito da abordagem clínico-cirúrgica.
RELATO DE CASO
FSS, 25 anos, sexo masculino, apresentou-se ao Pronto Socorro de Otorrinolaringologia com queixas de edema, hiperemia e dor periorbitária esquerda há 48 horas associados à diminuição da acuidade visual do olho esquerdo há 5 horas de sua entrada no PS. Referia obstrução nasal à esquerda com rinorréia purulenta, tosse e febre não medida há 9 dias que não melhoravam ao tratamento com dipirona sódica.
Ao exame físico apresentava temperatura axilar de 37.4o C, freqüência cardíaca de 72 bpm, pressão arterial de 120 x 80mmHg e freqüência respiratória de 20 incursões por minuto. Na oroscopia observava-se secreção purulenta em orofaringe (\"sinal da vela\"). Na rinoscopia anterior notava-se edema e hiperemia da mucosa nasal esquerda com hipertrofia de corneto médio e secreção purulenta abundante proveniente do meato médio esquerdo. Na otoscopia não se observaram alterações.
O paciente realizou uma avaliação oftalmológica que mostrou edema bipalpebral à esquerda com proptose importante, acuidade visual 20/25 à direita e à esquerda ausência de percepção luminosa. Reflexo pupilar direto presente à direita e ausente à esquerda, e o reflexo consensual presente à esquerda e ausente à direita. Motilidade ocular extrínseca normal à direita e paralisia à esquerda. Fundoscopia do olho esquerdo com engurgitamento venoso e algumas áreas de hemorragia retiniana.
Foi realizada tomografia computadorizada de seios paranasais que mostrou uma pansinusopatia com comprometimento intraorbitário (Figuras 1 e 2).
O paciente foi internado recebendo soro de manutenção, clindamicina endovenosa 2.4g/dia e hidrocortisona 600mg/dia. Devido à alteração de acuidade visual observada ao exame de percepção luminosa, optou-se pela intervenção cirúrgica que fora realizada 9 horas após sua entrada no PS. Realizou-se uma sinusectomia endoscópica à esquerda com abordagem dos seios maxilar, etmóide anterior e posterior e esfenóide, com ressecção da lâmina papirácea à esquerda e drenagem de grande quantidade de secreção purulenta, fétida, com grumos enegrecidos e em quantidade abundante. O paciente foi tamponado com rayon em meato médio por 24 horas.
Evoluiu com regressão do edema e da hiperemia bipalpebral, porém sem recuperação da acuidade visual à esquerda. A cultura do material obtido na cirurgia foi negativa e o exame bacterioscópico revelou cocos Gram positivos isolados e aos pares, com raros bacilos gram-negativos. Sorologias para HIV-1 e HIV-2 negativas. Recebeu alta no 9o dia pós-operatório com discreta hiperemia orbitária e amaurose esquerda. No acompanhamento ambulatorial, realizou exames oftalmológicos para definir a acuidade visual após completa cura do quadro sinusal e, após 3 meses da cirurgia, sua percepção luminosa em olho esquerdo estava ausente. Recebeu alta do acompanhamento oftalmológico com diagnóstico de neurite óptica pós-infecciosa irreversível.
DISCUSSÃO
Desde 1893, a perda de visão tem sido descrita como complicação de infecções orbitárias5. Na era pré-antibióticos cerca de 20% dos pacientes com inflamações pós-septais apresentavam este tipo de complicação6. Atualmente, esta taxa gira em torno de 10%1,6,7, sendo que em 15% destes casos, esta perda será permanente2.
Apesar das complicações orbitárias por sinusites terem diminuído muito com os novos antibióticos, elas continuam causando alterações visuais, em alguns casos irreversíveis. Não podemos esquecer também do aumento na freqüência de alterações do sistema imune (AIDS, quimioterapia, imunossupressores), que podem estar contribuindo para estes quadros8. Nestes casos, há maior incidência de agentes Gram-negativos, bactérias multiresistentes e fungos9. Em nosso meio, verificamos que em um período de 15 anos, 128 pacientes foram internados para tratamento de complicações orbitárias de sinusites3. No caso relatado, o paciente era aparentemente saudável, não apresentando condições de base que explicassem a severidade do quadro.
Os possíveis mecanismos que levam à perda visual são basicamente três: neurite óptica pela infecção adjacente; isquemia por compressão da artéria central da retina e isquemia por tromboflebite das veias orbitárias5, que foi a provável causa em nosso paciente. Portanto, uma descompressão rápida da órbita em casos de abscessos orbitários ou subperiostais, associada a tratamento medicamentoso adequado (antibioticoterapia endovenosa e corticóides), é essencial para tentar reverter estes quadros. É importante lembrar também que a perda visual pode mais raramente ser causada pelo envolvimento de vasos e nervos da fissura orbitária superior e do forame óptico, na chamada síndrome do ápice orbitário superior11. Nestes casos, costuma-se encontrar menos sinais externos de acometimento ocular, como proptose, oftalmoplegia, edema palpebral e quemose4,12.
Na grande maioria dos casos, inclusive o apresentado, as complicações orbitárias decorrem de sinusites etmoidais6. Raramente, a perda de visão decorre de infecções esfenoidais, nestes casos, ela ocorre devido à íntima relação do nervo óptico com o seio esfenoidal13. A lâmina óssea que separa estas estruturas é menor que 0,5mm em 78% das pessoas e deiscente em 4%14.
A infecção sinusal se estende à órbita por duas vias principais: pelas veias orbitárias sem válvulas, que permitem uma conexão direta entre o etmóide e a órbita; ou diretamente pela lâmina óssea15. Isto é mais comum anteriormente, onde esta estrutura é mais fina8.
Quando CHANDLER publicou sua clássica classificação de compicações orbitárias de sinusites (Tabela 1), utilizou o exame físico da órbita e estruturas adjacentes associado a radiografias simples. Hoje, em dia, o principal método diagnóstico nestes casos é a tomografia computadorizada, que permite uma avaliação detalhada de estruturas ósseas e partes moles8. Baseado nisto, MORTIMER16, em 1997, propôs uma nova classificação, subdividindo as complicações pós-septais em subperiosteais e intraconais, e excluindo a trombose de seio cavernoso, por acreditar que esta é uma complicação intracraniana. Ele também classificou a síndrome do ápice orbitário superior à parte entre as celulites intraconais. O problema é que nem sempre a tomografia é eficaz para diferenciar abscessos de celulites orbitárias. Nestes casos, é importante uma avaliação cuidadosa da evolução da acuidade visual do paciente para evitar atrasos na indicação de exploração cirúrgica5.
CONCLUSÃO
A ocorrência de alterações visuais em pacientes com sinusite é uma emergência rinológica. O paciente deve ser investigado detalhadamente, receber tratamento medicamentoso adequado e acompanhamento criterioso da evolução clínica e visual. Quando a tomografia computadorizada mostrar evidências de abscesso, o paciente deve ser submetido à drenagem cirúrgica imediata. Em casos duvidosos, qualquer evidência de piora visual, ou evolução não adequada deve também levar à cirurgia, para evitar danos irreversíveis ao paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tabela 1. Classificação de Chandler.
Grupo 1 Edema inflamatório - celulite pré-septal
Grupo 2 Celulite orbitária
Grupo 3 Abscesso subperiostal
Grupo 4 Abscesso orbitário
Grupo 5 Trombose de seio cavernoso
Figura 1. Corte axial de TC evidenciando abscesso intraconal e imagem sugestiva de gás junto ao nervo óptico esquerdo.
Figura 2. Corte coronal de TC evidenciando imagem sugestiva de gás dentro da cavidade orbitária esquerda.
* Médico Estagiário da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
** Médica Residente de 3º ano da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
*** Médico Assistente Doutor da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
Trabalho apresentado como Pôster no 35º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, em Natal, 16 a 21 de outubro de 2000 e no The Nose 2.000, em Washington DC, EUA, 9 a 11 de setembro de 2000.
Endereço para correspondência: Fabrízio Ricci Romano - Divisão de Clínica Otorrinolaringológica-Hospital das Clínicas da FMUSP - Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6º andar - sala 6021 - São Paulo - SP - Telefone/Fax: (0xx11) 3088-0299.
Artigo recebido em 14 de março de 2001. Artigo aceito em 18 de julho de 2001.