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Ano: 2003  Vol. 7   Num. 3  - Jul/Set Print:
Case Report
Manejo da Freqüência Fundamental da Voz na Hiperplasia Adrenal Congênita por meio da Tireoplastia Tipo IV de Isshiki
Management for Voice Fundamental Frequency in the Congenital Adrenal Hyperplasia trough Isshiki.s Type IV Thyroplasty
Author(s):
Domingos H. Tsuji*, Luiz Ubirajara Sennes**, Saramira C. Bohadana****, Silvia M. Rebelo Pinho****.
Palavras-chave:
prega vocal, voz, hiperplasia adrenal.
Resumo:

Introdução: Os hormônios sexuais influenciam no desenvolvimento da laringe. Quando as alterações hormonais ocorrem na puberdade, produzem alterações irreversíveis na laringe, determinando a qualidade vocal que é uma característica sexual secundária. Um exemplo é a Hiperplasia Adrenal Congênita, onde ocorre secreção aumentada dos precursores do cortisol e andrógenos pela glândula adrenal, levando a masculinização e infertilidade em pacientes do sexo feminino. O aumento dos andrógenos produz virilização da laringe e das pregas vocais. Essa doença pode ser controlada pela administração de corticosteróides, mas esse tratamento não reverte as alterações que foram produzidas na laringe. Nesses casos há necessidade de procedimentos cirúrgicos com o objetivo de aumentar a freqüência fundamental da voz. Objetivo: apresentar o caso de uma paciente que apresentava androfonia em conseqüência de hiperplasia adrenal congênita e foi submetida a tireoplastia tipo IV de Isshiki para elevar a freqüência fundamental da voz. Relato: Paciente de 16 anos, sexo feminino, apresentava voz grave secundária à hiperplasia adrenal congênita. Após a realização da tireoplastia tipo IV de Isshiki, sua voz se tornou mais aguda. A fonoterapia pós-operatória contribuiu para a adaptação da voz e ampliação da tessitura vocal. Conclusão: A tireoplastia tipo IV de Isshiki representou um método terapêutico eficaz nesse caso.

INTRODUÇÃO

A laringe é considerada um órgão hormônio-dependente, por sofrer influência dos hormônios de maneira geral, que participam de sua evolução anatômica. Enfermidades endócrinas, sobretudo da glândula tireóide e suprarenal, podem determinar modificações importantes nesse órgão. Dentre as patologias da glândula supra-renal, a hiperplasia adrenal congênita produz alterações irreversíveis na laringe (1). Esse termo engloba um grupo de distúrbios causados por defeitos na hidroxilação dos precursores do cortisol.

Os baixos níveis resultantes de cortisol induzem o aumento da secreção de corticotropina (ACTH), causando hiperplasia adrenal. A adrenal secreta sulfato de dehidroepiandrosterona (DHEAS) e pequena quantidade de androstenediona e testosterona. Nas formas mais comuns, há defeito na 21-hidroxilase e 11-hidroxilase e o efeito final é a secreção aumentada de precursores do cortisol e andrógenos pela glândula adrenal, levando ao pseudohermafroditismo em pacientes do sexo feminino.

Algumas desordens autossômicas recessivas afetam o córtex adrenal e seu desenvolvimento, ocasionando o defeito na biossíntese do cortisol (2).

Nas últimas duas décadas os genes causadores da maioria dessas desordens têm sido identificados e a terapia genética está sendo desenvolvida para ser aplicada em humanos (3,4).

O genótipo feminino nas meninas pseudo-hermafroditas pode ser confirmado pelo cariótipo de leucócitos. A terapia com hidrocortisona e prednisolona revertem o distúrbio.

Essa terapia permite a feminização em meninas, incluindo menstruação e gestações normais (1). Por outro lado, o aumento dos andrógenos produz calcificação das cartilagens da laringe incluindo o anel traqueal e acelera o processo de nutrição da laringe e das pregas vocais.

O músculo tireoaritenóideo aumenta de espessura e volume. O mesmo efeito ocorre nos músculos da respiração e, portanto, a energia fonatória é maior. A mucosa laríngea retém líquido, aumentando sua espessura (5).

Na laringoscopia não se observam alterações a princí- pio, podendo apresentar somente aspecto edematoso, posteriormente, evoluindo para hiperemia difusa.

A voz se torna grave, caracterizando a androfonia (6). A tireoplastia tipo IV de Isshiki ou aproximação cricotireóidea é uma técnica cirúrgica indicada para tornar mais aguda a voz de pacientes do sexo feminino que apresentam quadro de androfonia.

Consiste em simular a contração do músculo cricotireóideo, principal tensor das pregas vocais, pela aproximação das cartilagens cricóidea e tireóidea, por meio de suturas, envolvendo as duas cartilagens (7). O objetivo desse artigo é apresentar o caso de paciente adolescente do sexo feminino que apresentava voz grave em decorrência de Hiperplasia Adrenal Congê- nita.

Apesar de apresentar a doença totalmente controlada pelo uso de medicamentos, sua voz grave e a presença da proeminência tireóidea produziam efeitos psicológicos e sociais negativos em sua vida.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

M. A. Q., 16 anos, sexo feminino, pseudo-hermafrodita, em decorrência do quadro de hiperplasia adrenal congênita. Procurou atendimento otorrinolaringológico, pois apresentava laringe com conformação anatômica masculina, voz grave e presença de proeminência laríngea (pomo de Adão) que causavam incômodo à paciente. Aos 02 anos de idade foi submetida a tratamento cirúrgico para corrigir a alteração da genitália e fazia uso de cortisona desde a infância. À videoestroboscopia observou-se pregas vocais aparentemente normais (f0 = 160Hz), configuração glótica semelhante à masculina, freqüência fundamental grave, com vibração normal da mucosa. Foi indicado tratamento cirúrgico com o objetivo de tornar a voz mais aguda pela aproximação cricotireóidea e ressecar a proeminência da cartilagem tireóidea. A aproximação cricotireóidea foi realizada segundo a técnica de Isshiki, sob anestesia geral (Figura 1).

Em seguida foi ressecada a proeminência da cartilagem tireóidea e aproximadas as bordas da incisura tireóidea com sutura de mononylon 3.0 (Figura 2). A paciente foi avaliada 03 dias depois, apresentando voz aguda (freqüência fundamental em torno de 380 Hz) e com soprosidade.

À videoestroboscopia foi observado fechamento incompleto da glote e distensão das pregas vocais. Foi indicado fonoterapia para ajuste vocal.

A paciente foi submetida a seis sessões de terapia, com enfoque na redução da freqüência fundamental habitual, ampliação da tessitura vocal e ajuste da adução glótica. No 2º mês de pós-operatório e pós-fonoterapia, foi avaliada novamente, demonstrando satisfação com a nova voz.

À videoestroboscopia observou-se vibração normal das pregas vocais e freqüência fundamental em torno de 220Hz. Atualmente, após 2 anos de seguimento, a paciente mantém a qualidade vocal estável e está satisfeita com o tratamento realizado.





DISCUSSÃO

A freqüência vocal pode ser elevada por meio do estiramento das pregas vocais, com conseqüente aumento da tensão, pela ação do músculo cricotireóideo. À medida que as pregas vocais são estiradas, tornam-se mais delgadas, reduzindo a massa solta vibrátil, por unidade de comprimento.

Esse fenômeno é máximo no registro em falsete, quando ocorre redução da massa vibrátil, limitandose somente à borda da prega vocal (8). As alterações de massa e tensão das pregas vocais são observadas principalmente na vigência da paralisia do nervo laríngeo superior (9) e pela androfonia em pacientes do sexo feminino, que se caracteriza pelo aumento da massa das pregas vocais devido ao uso crônico de drogas anabolizantes ou hormônios masculinos e na síndrome adrenogenital, como é o caso da paciente apresentada. A tireoplastia tipo IV de Isshiki eleva a freqüência vocal simulando a contração do músculo cricotireóideo por meio de suturas.

Esta cirurgia consiste na aproximação da borda inferior da cartilagem tireóidea com a borda superior da cartilagem cricóidea, anteriormente. Isto é possível já que as pregas vocais fixam-se anteriormente na cartilagem tireóidea (comissura anterior) e posteriormente nas cartilagens aritenóideas, que por sua vez articula-se com a cricóidea (articulação cricoaritenóidea). A tireoplastia tipo IV de Isshiki estira as pregas vocais, promovendo aumento da tensão e, consequentemente, reduzindo a massa das pregas vocais por unidade de comprimento.

Durante esse processo, a freqüência vocal pode ser ajustada pelo controle da distância entre as cartilagens tireóidea e cricóidea (7), desde que a cirurgia seja realizada sob anestesia local. Entretanto, no caso apresentado, optamos pela anestesia geral.

Isshiki, em um relato pessoal, referiu que a tireoplastia tipo IV pode ser realizada sem a monitorização vocal intraoperat ória.

Pela sua experiência, após a cirurgia, ocorre uma tendência de acomodação tecidual, fazendo com que a voz se estabilize em níveis de freqüência mais elevada do que no pré-operatório e mais baixa do que no pósoperat ório imediato. Outras técnicas também podem elevar a freqüência fundamental da voz, como a decorticação das pregas vocais (10), produção de sinéquia na comissura anterior (11), a expansão ântero-posterior da lâmina tireóidea (12), o avanço da comissura anterior (13), incisões longitudinais nas pregas vocais, injeção de corticosteróide e a vaporiza- ção parcial com laser de CO2 (14). A ACT foi escolhida para esta paciente por ser uma técnica fisiológica, que ao simular a contração do músculo cricotireóideo, aumenta a tensão das pregas vocais e conseqüentemente a freqüência fundamental da voz.

Tecnicamente é fácil de ser executada tanto na laringe masculina quanto na feminina, sendo reversível. A ACT máxima tensiona as pregas vocais, diminui a massa por unidade de comprimento, eleva a freqüência fundamental e mantém os padrões vibratórios das pregas vocais, de acordo com um estudo experimental em laringes humanas realizado por BOHADANA (15).

No caso apresentado, houve diminuição da eficiência glótica no pósoperat ório imediato pelo aumento da tensão das pregas vocais. Esse é um fato esperado após essa cirurgia, pois simula a ação exclusiva do músculo cricotireóideo, com características vocais semelhantes ao que ocorre em uma emissão em falsete. Esse resultado melhorou após fonoterapia, a qual produziu a diminuição da freqüência fundamental de 380Hz (pós-operatório imediato) para 220 Hz (2 meses após a cirurgia). Ocorreu também ampliação da tessitura vocal, permitindo inflexões vocais normais e eliminação da soprosidade. Estes achados estão de acordo com as observa ções de Isshiki quanto à acomodação tecidual e funcional no pós-operatório.

CONCLUSÃO

A tireoplastia tipo IV de Isshiki é uma técnica cirúrgica que pode ser realizada em pacientes do sexo feminino que apresentam voz demasiadamente grave, como nos casos de Síndromes Adrenogenitais. Estes pacientes sofrem distúrbios psicológicos com repercussões sociais em decorrência dessa alteração. A fonoterapia pósoperat ória é extremamente importante para adaptar a voz às novas condições laríngeas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Perelló J, Miquel JAS. Foniatría Endocrinológica. In: Alteraciones de la Voz, 2ª- ed., Barcelona, Editorial Científico-Médico, pp. 1-49, 1980.
2. Berkow, R. Manual Merck de Medicina: diagnóstico e tratamento. 15ª edição, São Paulo, Rocca; pp. 2289-2290,1989.
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5. Damste PH. Voice change in adult women caused by virilizing agents. J Speech Hear Dis, 32:126-32, 1967.
6. Broonitz FS. Hormones and the human voice. Bull NY Acad Med, 47(2): 183-90,1971.
7. Isshiki N, Morita H, Okamura H, Hiramoto M. Thyroplasty as a new phonosurgical technique. Acta Otolaryngol, 78:451-7, 1974.
8. Isshiki N. Phonosurgery: theory and practice. Tokyo, Springer-Verlag, 1989.
9. Sawashima M. Laryngeal research in experimental phonetics. In: Seboek TA, ed. Current trends in linguistics. Mounton, The Hague, 1974; pp.2303-48.
10. Hirano M, Shin T, Morio M, Kasuya T, Kobayashi S. An improvement in surgical treatment for polypoid vocal cord. sucking technique. Otologia (Fukuoka), 22: 583-9, 1976.
11. Donald PJ. Voice change surgery in the transsexual. Head & Neck Surg, 4: 433-7, 1982.
12. Isshiki N. Functional surgery of the larynx. In: Kyoto University Medical School, Dept. of Otolaryngology., ed.,1977. 207p. [Special report presented at 78th Congress of Japan Otolaryngology Society, Fukuoka, 1977].
13. Le Jeune FE Jr., Guice CE, Samuels PM. Early experiences with vocal ligament tightening. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol,92: 475-7, 1983.
14. Tanabe M, Haji T, Honjo I, Isshiki N. Surgical treatment for androphonia (an experimental study). Folia Phoniatr, 37:15-21, 1985.
15. Bohadana SC. Vibração das pregas vocais pré e pós aproximação cricotireóidea: estudo experimental em laringes humanas por videoquimografia, São Paulo, 2002. (Tese de Doutoramento - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

* Professor Livre Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor do Serviço de Bucofaringologia da Divisão
de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Doutora em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo . Escola Paulista de Medicina. Chefe do Departamento de Voz do Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica e Diretora do Instituto da Voz.

Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Endereço para Correspondência: Domingos H. Tsuji . Rua Peixoto Gomide 515, conj. 145 . CEP: 01409-001 . São Paulo / SP . Telefax: (11) 251-5504 .
E-mail: dtsuji@attglobal.net
Artigo recebido em 11 de julho de 2002. Artigo aceito com correções em 3 de maio de 2003.
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