INTRODUÇÃO
O interesse sobre a ação das vias auditivas eferentes no sistema auditivo dos humanos vem crescendo progressivamente desde a descrição anatômica dos tratos olivococleares (1) e dos estudos funcionais em animais (2,3). Acredita-se que o sistema eferente, por meio do trato olivococlear medial, module os movimentos das células ciliadas externas (CCE) pela liberação de acetilcolina na fenda sináptica (4). Com isso, provoca uma hiperpolarização que se contrapõe à despolarização induzida pelos estímulos sonoros. Este mecanismo tem a finalidade de manter a membrana basilar em posição adequada para a transdução fiel das características do estímulo auditivo (5).
Esse efeito tem sido relatado por vários autores pela redução da amplitude das emissões otoacústicas espontâ- neas e evocadas com o uso de estimulação acústica contralateral (6-8). Outras supostas ações das vias eferentes no processamento auditivo são a melhora da discriminação auditiva, a seletividade das freqüências altas e a inteligibilidade de fala, principalmente em ambientes ruidosos (9,10). No entanto, esses achados não foram confirmados em todas as pesquisas (11,12).
Em animais, demonstrou-se que o trato olivococlear tem um papel protetor da orelha interna contra o trauma acústico (13). Em relação ao zumbido, acredita-se que a disfunção do sistema eferente provoque perda da modulação das CCE, gerando uma atividade anormal nas vias auditivas, que poderia ser erroneamente interpretada como som (14,15).
Essa alteração de modulação pode ocorrer por dois motivos:
1. por diminuição de estímulos aferentes decorrente de uma lesão coclear, levando a uma diminuição dos estímulos eferentes inibitórios (16);
2. por uma alteração intrínseca do equilíbrio entre o componente excitatório e inibitório, com o predomínio do primeiro (17). Alguns estudos mostraram que pacientes com zumbido e/ou hiperacusia apresentam redução na amplitude global de resposta das emissões otoacústicas evocadas (18- 20) e diminuição/ausência de supressão dessas emissões com uso de um estímulo acústico na orelha contralateral (21-23).
Apesar desses achados refletirem uma alteração na função das vias auditivas eferentes, não foram reproduzidos em outros estudos (20,24). Diante dessas controvérsias, o objetivo desse trabalho é analisar a amplitude das emissões otoacústicas por produto de distorção (EOAPD) com o uso de um ruído de banda larga na orelha contralateral de indivíduos com e sem zumbido.
CASUÍSTICA E METODOLOGIA
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (protocolo número 544/00). Foi realizado um estudo caso-controle, incluindo 14 pacientes com zumbido regularmente matriculados no Ambulatório de Zumbido da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP (grupo de estudo) e 14 voluntários sem zumbido (grupo controle). Os critérios de inclusão no grupo de estudo foram: presença de zumbido constante e bilateral em indivíduos com idade máxima de 60 anos, de ambos os sexos, com audiometria tonal normal bilateralmente (limiares até 25 dBNA nas freqüências de 250 a 8000Hz), imitanciometria normal, presença de EOAPD (segundo o Quadro 1) e ciência da pesquisa, com assinatura do termo de consentimento pós-informação.
O grupo controle foi formado com os mesmos critérios de inclusão, exceto a presença de zumbido, sendo pareado por sexo e idade com o grupo de estudo. Para evitar influência de lateralidade ou dominância cerebral, todos os indivíduos de ambos os grupos eram destros. A medida das EOAPD foi realizada com um analisador coclear Celesta 503 (versão 3.xx), fabricado pela Madsen Eletronics, acoplado a um computador Pentium II, utilizando- se o software NOAH, versão 2.0, dentro do Windows 98.
Para obtenção dos produtos de distorção, usaram-se dois tons puros na razão de F2/F1 = 1,22, apresentados na intensidade de 70 dBNPS, seguindo a média geométrica de F1 e F2, através do PD-gram, ou gráfico da freqüência pela amplitude. O estímulo acústico supressor foi um ruído branco, apresentado por um audiômetro Maico, modelo MA 32, via fone de ouvido TDH 39 e coxim MX 41, na intensidade de 50 dBNA.
O fone já estava acoplado à orelha contralateral à captação das emissões otoacústicas antes do início das medidas, evitando a manipulação da sonda entre as etapas do teste.
Foi realizada a verificação da sonda das EOA de forma sistemática antes de cada captação das emissões. O registro das EOAPD foi realizado da seguinte forma:
No Grupo de Estudo:
• EOAPD na orelha direita na ausência de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha direita na presença de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha esquerda na ausência de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha esquerda na presença de ruído branco contralateral.
No Grupo Controle:
• EOAPD na orelha direita na ausência de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha direita na presença de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha esquerda na ausência de ruído branco contralateral.
• EOAPD na orelha esquerda na presença de ruído branco contralateral.
Foi considerada a razão sinal ruído de 6dB em cada freqüência, sem e com a presença do ruído contralateral, ao invés da amplitude total das emissões otoacústicas. O cálculo do efeito supressor das EOAPD foi feito através da subtração da razão sinal ruído obtida sem o uso do ruído contralateral do valor da razão sinal ruído com o uso do ruído contralateral, para cada freqüência específica. Valores positivos indicaram supressão das EOAPD e valores negativos ou zero indicaram a não supressão. Foram utilizadas duas medidas de desfecho:
1. a supressão das EOAPD expressa em valores numéricos;
2. a classificação do resultado da estimulação acústica contralateral como supressão ou não supressão das EOAPD. A análise consistiu na comparação dos resultados obtidos na orelha direita dos indivíduos com e sem zumbido. Para medir a associação entre o zumbido e a não supressão das EOAPD, foi calculada a Odds Ratio (OR) (25) em cada freqüência e os respectivos intervalos de confian- ça (IC95%).
A análise levou em consideração o pareamento entre casos e controles e as associações foram testadas com o uso do teste de qui-quadrado de McNemar.
A compara- ção dos valores da supressão de indivíduos com e sem zumbido foi feita pelo teste de Mann-Whitney, uma vez que os dados não apresentavam distribuição normal (25).
RESULTADOS
Dos 28 indivíduos participantes do estudo, apenas três (21,4%) de cada grupo eram do sexo masculino. A média de idade dos indivíduos com zumbido foi 48,8 anos (desvio padrão = 7,8 anos), enquanto a dos indivíduos do grupo controle foi 48,6 anos (desvio padrão = 7,7 anos) (p = 0,96) confirmando o pareamento entre ambos os grupos. As medianas das supressões das EOAPD em cada freqüência estão apresentadas no Gráfico 1. Os resultados da proporção de supressão das EOAPD através do uso de estimulação acústica contralateral em ambos os grupos estão dispostos na Tabela 2.
DISCUSSÃO
Há na literatura muita controvérsia sobre a função das vias auditivas eferentes e seu possível papel nos mecanismos auditivos dos seres humanos.
Alguns autores acreditam que a disfunção das vias eferentes esteja implicada no desencadeamento ou na manutenção do zumbido, por alterações na modulação dos movimentos do órgão de Corti (15,16,17). Alguns estudos já haviam demonstrado diminuição da amplitude das EOA em indivíduos com zumbido sem perda auditiva, quando comparados a um grupo controle (18,19,26), sugerindo alterações nas CCE desses indivíduos ou nos seus mecanismos reguladores. Especificamente em relação à supressão das EOA, muitos dos estudos realizados incluem pessoas com zumbido unilateral e comparam a supressão do lado ipsi com o lado contralateral ao zumbido.
VEUILLET et al (27) e CHERYCROZE et al (22) afirmam que o lado ipsilateral ao zumbido apresenta menor supressão em relação ao lado contralateral. No entanto, CHERY-CROZE et al (24) relatam que o lado contralateral ao zumbido freqüentemente apresenta menor efeito supressor, sendo que esta variedade de achados pode ser reflexo das inúmeras etiologias e características psicoacústicas envolvidas nos quadros de zumbido. Entretanto, considerando a forma de organização em rede do sistema auditivo e dos diversos pontos de conexão e retro-alimentação entre o sistema auditivo aferente e o eferente ao longo do sistema nervoso central (29), pareceu-nos mais adequado realizar a comparação dos resultados com um grupo controle e não com a orelha contralateral de um mesmo paciente.
Além disso, o sistema auditivo eferente funciona de forma lateralizada, seguindo os padrões de predominância hemisférica e, portanto, não apresenta efeitos supressores iguais para as orelhas direitas e esquerdas em pessoas destras e canhotas (30).
Para controlar essa possível variável de confusão, optamos pela inclusão somente de indivíduos destros, analisando apenas os resultados das orelhas direitas nos dois grupos. Nossos resultados mostraram uma forte associação entre a ausência ou diminuição da supressão e a presença de zumbido (OR maior que 2,5 em todas as freqüências testadas).
No entanto, apenas em 4000Hz essa associação foi estatisticamente significante (p< 0.05). Provavelmente isso ocorreu em função do pequeno tamanho da amostra, refletido pelos amplos intervalos de confiança e também pela grande freqüência de não supressão no grupo controle. Esta ausência de supressão em pessoas sem queixa auditiva parece ser um achado freqüente quando se estuda a supressão pelas EOAPD (28).
Devido à dificuldade de encontrar pacientes com zumbido bilateral e audiometria normal em todas as freq üências, nossa amostra de pacientes foi reduzida.
Mesmo assim, foi possível observar uma forte tendência a uma menor supressão das EOAPD nos indivíduos com zumbido. De qualquer maneira, estudos com amostras mais relevantes e com a mesma rigidez na seleção dos participantes podem auxiliar na compreensão do papel das vias eferentes nos quadros de zumbido e de sua real participação no controle da motilidade das células ciliadas externas.
CONCLUSÕES
Nossos resultados mostraram uma forte associação entre alteração da supressão das EOAPD e o zumbido, sugerindo que alterações na modulação dos movimentos do órgão de Corti podem estar envolvidas na gênese deste sintoma.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1. Rasmussen GL. The olivary peduncle and other fibre projections of the superior olivary complex. J. Comp Neurol, 84:141-219, 1946.
2. Galambos R. Supression of auditory nerve activity by stimulation of efferent fiber to the cochlea. J. Neurophysiol, 19:424-37, 1956.
3. Fex J. Augumentation of cochlear microphonic by stimulation of efferent fiber to the cochlea. Acta Otolaryngol, 50:540-1,1959.
4. Sahley TL, Nodar RH, Musiek FE. Efferent Auditory System, structure and function. 1ª ed. San Diego: Singular publishing group; 1997, p.1-23.
5. Ludwig J, Oliver D, Frank G, Klöcker N, Gummer AW, Fakler B. Reciprocal electromechanical properties of rat prestin: The motor molecule from rat outer hair cells. PNAS, 98(7):4178-83, 2001.
6. Harrison WA, Burns EM. Effect of contralateral acoustic stimulation on spontaneous otoacoustic emissions. J Acoust Soc Am, 94:2649-58, 1993.
7. James AL, Mount RJ, Harrison RV. Contralateral suppression of DPOAE measured in real time. Clin Otolaryngol, 27(2):106-112, 2002.
8. De Ceulaer G, Yperman M, Daemers K, Van Driessche K, Somers T, Officierss FE; et al. Contralateral suppression of transient evoked otoacoustic emission: Normative data for a clinical test set-up. Otol. Neurotol, 22(3):350-355,2001.
9. Kawase T, Delgutte B, Liberman MC. Antimasking effects of the olivocochlear reflex. II. Enhancement of auditorynerve response to masked tones. J. Neurophysiol, 70:2533-49, 1993.
10. Giraud AL, Garnier S, Micheyl C, Lina G, Chays A, Chéry-Croze S. Auditory efferents involved in speech-in-noise intelligibility. Neuroreport, 8:1779-83, 1997.
11. Scharf B, Magnan J, Chays A. On the role of the olivocochlear bundle in hearing: 16 cases studies. Hear Res,103:101-22, 1997.
12. Morand-Villenneuve N, Garnier S, Grimault N, Veullet E, Collet L, Micheyl E. Medial olivocochlear bundle activation and perceived auditory intensity in human. Physiol Behav, 77(2-3):311-20, 2002.
13. Chen TJ, Chen SS, Hsieh YL. Evaluating the protective role of the olivocochlear bundle against acoustic overexposure in rats by using Fos immunohistochemistry. J. Neurol Sci, 177(2):104-13, 2000.
14. Kemp DT. Development in cochlear mechanics and techniques for noninvasive evaluation. Advances in Audiology, 5:27-45, 1988.
15. Jastreboff PJ. Phantom auditory perception (tinnitus): mechanisms of generation and perception. Neurosci. Res, 8:221-54, 1990.
16. Hazell JWP. Support for a neurophysiological model of tinnitus. Proceedings. V International Tinnitus Seminar, 1995, p. 51-57
17. Robertson D, Winter IM, Mulders WHAM. Influence of descending neural pathways on responses in the mammalian cochlear nucleus. Proceedings. VII International Tinnitus Seminar, 2002, 31-33.
18. Castello E. Distortion products in normal hearing patients with tinnitus. Boll Soc Ital Biol Sper, 76(5-6):93-100,1997.
19. Onish ET. Emissão otoacústicas por produto de distorção na avaliação do zumbido. São Paulo, 1999.(Dissertação de Mestrado-Universidade Federal de São Paulo).
20. Lind O. Transient-evoked otoacoustic emission and contralateral suppression in patients with unilateral tinnitus. Scand Audiol, 25(3):167-72, 1996.
21. Chéry-Croze S, Veuillet E, Collet L, Morgon A. Exploration Fávero ML 270 Arq Otorrinolaringol, 7 (4), 2003 du système efférent chez l´homme: résultats fondamentaux et cliniques. Rev Laringol Otol Rhinol(Bord.),114(2):113-6,1993a.
22. Chéry-Croze S, Collet L, Morgon A. Medial Olivo- cochlear System and Tinnitus. Acta Otolaryngol ( Stockh), 113:285-90, 1993b.
23. Attias J, Bresloff I, Furlan V. The influence of efferent auditory system on otoacoustic emissions in noise induced tinnitus: Clinical relevance. Acta Otolaryngol (Stockh), 116: 534-539, 1996.
24. Chéry-Croze S, Moulin A, Collet L, Morgon, A. Is the testof medial efferent system function a relevant investigation in tinnitus? British Journal of Audiology, 28:13-25, 1994.
25. Hennekens CH, Buring JE. Epidemiology in medicine. 6ªed. Boston/Toronto: Littlee Brown and Company; 1987.
26. Burguetti FAR, Peloggia AG, Carvalho RMM. Amplitude de emissões otoacústicas produto de distorção em indivíduos com queixa de zumbido. Rev.Bras. Otorrinolaringol ,68(6): 883-90, 2002.
27. Veuillet E, Collet L, Duclaux R. Effect of contralateral acoustic stimulation on active cochlear micromechanical properties in human subjects: dependence on stimulus variables. J Neurophysiology, 65(3):724-35, 1991.
28. Hood LJ, Berlin CI. Auditory Neuropathy (Auditory Dissynchrony) Disables Efferent Suppression of Otoacoustic Emissions. In: Sininger I, Starr A. Auditory Neuropathy. A New Perspective on Hearing Disorders. 1ª ed. San Diego: Singular; 2001, p. 183-202.
29. Fávero-Breuel ML, Sanchez TG, Bento RF. Vias auditivas eferentes e seu papel no sistema auditivo. Arq. Fund. Otorrinolaringol, 5(2):62-67, 2001.
30. Khalfa S, Morlet T, Micheyl C, Morgon A, Collet L. Evidence of peripheral hearing asymmetry in humans: Clinical implications. Acta Otolaryngol (Stockh) 117:192- 96, 1997.
* Médica Doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Professora Livre-Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Professora Doutora, Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Endereço para correspondência: Dra. Mariana Lopes Fávero . Rua Dr. Homem de Melo, 736 . São Paulo / SP . CEP: 05007-002 . Telefone: (11) 3865-2370 .
E-mail: lopessquare@ig.com.br
Artigo recebido em 12 de setembro de 2003. Artigo aceito em 10 de outubro de 2003.