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Ano: 2003  Vol. 7   Num. 4  - Out/Dez Print:
Case Report
Achados Radiológicos de Corpo Estranho de Esôfago. Limitação da Radiografia Simples para o Diagnóstico Diferencial com Abscesso Retrofaríngeo
Radiological Findings of an Esophageal Foreign Body. Limitation of Plain Radiography for the Differential Diagnosis with Retropharyngeal Abscess
Author(s):
Ronaldo Frizzarini*, Christian Wiikmann**, Rui Imamura***, Domingos Hiroshi Tsuji****, Luiz Ubirajara Sennes*****.
Palavras-chave:
abscessos cervicais, corpo estranho, tomografia computadorizada, radiografia cervical.
Resumo:

Introdução: As infecções cervicais profundas cursam com altas taxas de morbi-mortalidade e seu diagnóstico e tratamento devem ser realizados prontamente para evitar complicações. O RX cervical lateral é um método diagnóstico amplamente realizado nas investigações dessa afecção, porém pode apresentar resultados tendenciosos que conduzem a um diagnóstico errôneo. Objetivo: Relatar um caso de corpo estranho esofágico, cujo RX induziu a um diagnóstico incorreto de abscesso cervical, enfatizando as limitações deste exame para o diagnóstico de infecções do espaço retrofaríngeo. Relato: Paciente de 76 anos, atendida no Pronto Socorro de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP com queixas de disfagia e odinofagia progressivas há 3 dias, acompanhadas de febre e incapacidade de deglutição há 1 dia. Foi submetida a um RX cervical lateral que revelou alterações sugestivas de abscesso do espaço retrofaríngeo. Entretanto, a tomografia computadorizada solicitada para confirmação diagnóstica e programação da abordagem cirúrgica mostrou apenas sinais de corpo estranho no esôfago. A paciente foi submetida à endoscopia digestiva alta, que evidenciou um pedaço de carne impactado no esôfago cervical, posteriormente retirado. Conclusão: Apesar da radiografia cervical lateral ser um método diagnóstico utilizado amplamente, apresenta resultados falso-positivos e falso-negativos que prejudicam a sua credibilidade, principalmente para afecções graves como as infecções cervicais profundas. A tomografia computadorizada revela resultados mais fidedignos, justificando sua necessidade na investigação de infecções cervicais profundas.

INTRODUÇÃO

Poucas afecções otorrinolaringológicas cursam com evolução rápida e altas taxas de morbi-mortalidade, sendo o abscesso cervical profundo uma delas. Devido à facilidade de disseminação pelas fáscias cervicais (1-4) e ao risco de evoluir rapidamente com complicações como mediastinite, pericardite, obstrução da via aérea, empiema, trombose da veia jugular interna e ruptura da artéria carótida (1-3,5), os abscessos cervicais devem ser diagnosticados e tratados prontamente. O abscesso retrofaríngeo cursa com odinofagia, disfagia, febre, dor à mobilização cervical, abaulamento da parede posterior da faringe, dispnéia e estridor (6,7).

É mais freqüente em crianças até 6 anos de idade (4,6,7), advindo geralmente de linfonodos abscedados decorrentes de infecções do trato respiratório superior. Em adultos, a incidência está aumentando (5-7), decorrente principalmente do trauma local relacionado com a ingestão de corpo estranho (7). Na investigação desses casos, a radiografia (RX) cervical lateral com penetração para partes moles é um método diagnóstico amplamente utilizado, sendo indicada sempre que há suspeita de acometimento do espaço retrofaríngeo em infecções cervicais profundas (3,4,8).

Alguns trabalhos têm questionado a real necessidade do RX cervical em serviços onde possa ser realizada a tomografia computadorizada (TC), uma vez que este exame pode trazer informações mais precisas e fidedignas que o RX (6,9-11). O objetivo deste trabalho é exemplificar a limitação do RX para o diagnóstico de abscessos cervicais profundos, relatando um caso de corpo estranho esofágico cujo RX cervical lateral apresentava sinais sugestivos de abscesso retrofaríngeo.

RELATO DE CASO

A.R.A., sexo feminino, 76 anos de idade, previamente hígida, procurou o Pronto Socorro de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em junho de 2002 com história de odinofagia e disfagia progressivas há 3 dias, após ingestão de carne bovina endurecida. Negava presença de osso na carne. Referia dor no pescoço ao deglutir, “como se tivesse cortado a garganta” e febre há 1 dia com aumento da prostração e impossibilidade de deglutição. Ao exame físico, apresentava-se desidratada 2+/4 e afebril. A oroscopia revelava trismo 1+/4; dentes em mau estado de conservação; lojas amigdalianas e paredes da orofaringe sem alterações; óstios dos ductos das glândulas parótidas e submandibulares fluindo secreção hialina à expressão das glândulas. A movimentação cervical provocava dor ao virar e estender o pescoço e ao tentar deglutir, sem conseguir realizar uma deglutição efetiva. A palpação cervical não mostrava alterações na região submandibular, parotídea e posterior ao ângulo da mandíbula.

A região visceral pré-traqueal apresentava-se dolorosa à palpação e movimentação manual da laringe, sem presença de abaulamentos ou sinais flogísticos. A laringoscopia indireta mostrava a mucosa da base de língua, epiglote, valéculas, pregas ariepiglóticas e seios piriformes sem alterações; pregas vocais móveis, simétricas e sem lesões; edema e hiperemia leves da região retrocric óidea e região interaritenóidea, com estase de secreção salivar. A paciente foi submetida a um RX cervical lateral com técnica para partes moles, que revelou o desvio da traquéia anteriormente, às custas do aumento de partes moles na região retrofaríngea e pré-vertebral, com ar em seu interior (Figura 1). Frente ao quadro clínico e radiológico, aventou-se a hipótese de abscesso retrofaríngeo provocado por uma lesão de mucosa da região ao deglutir a carne e optou-se por realizar uma tomografia computadorizada cervical e torácica alta para confirmação diagnóstica e avaliação da extensão do processo infeccioso.

Na tomografia foi observada a presença de material com atenuação de partes moles na luz do esôfago cervical, rodeado pela parede esofágica que estava bastante edemaciada, porém íntegra e sem coleções em seu interior. O espaço retrofaríngeo e pré-vertebral encontravam-se sem coleções ou outros sinais sugestivos de infecção (Figura 2). Frente aos achados da tomografia, concluiu-se pelo diagnóstico de corpo estranho esofágico.

A paciente foi encaminhada para realização de endoscopia flexível, com visualização e remoção da carne impactada no esôfago, na altura do músculo constritor inferior da faringe. Após a retirada do corpo estranho (Figura 3), observou-se edema importante da mucosa na região de impactação, com áreas friáveis pelo trauma, porém sem sinais de perfuração. A paciente permaneceu em observação por 12 horas, recebendo antibioticoterapia e corticoterapia endovenosos. Evoluiu bem, com boa aceitação da dieta líquida e recuperação total.







DISCUSSÃO

A história clínica de impactação de corpo estranho na via digestiva em adultos normalmente é característica, na qual o paciente refere claramente que “algo ficou parado na garganta” ao deglutir um alimento de formato pontiagudo ou volume aumentado, o que atrapalha as deglutições seguintes (12). Em adultos, espinha de peixe, osso de frango (12,13) e fragmentos de carne (14) são os corpos estranhos mais comuns. Pode haver dor quando o corpo estranho se fixa, principalmente quando penetra na mucosa. Porém, em pacientes com alterações dos movimentos de deglutição, o alimento pode simplesmente parar de progredir pela via aéreo-digestiva e se fixar em algum ponto de maior resistência (estreitamento da região cricofaríngea).

As deglutições subseqüentes ficam prejudicadas pela dor ou pelo fator obstrutivo do material impactado. Quando o material impactado no terço superior do esôfago é radiopaco, a radiografia cervical ântero-posterior e lateral podem evidenciá-lo, porém esses casos não costumam mostrar a presença de ar. A paciente em questão não apresentava uma histó- ria típica de impactação de corpo estranho.

A queixa de que a carne havia “cortado sua garganta”, associado com a febre, prostração e principalmente os achados à radiografia simples sugeriram a hipótese de infecção do espaço retrofaríngeo, provavelmente decorrente de uma lesão da mucosa da faringe pelo corpo estranho. Os sinais radiológicos possíveis em um RX cervical lateral de paciente com abscesso retrofaríngeo são: alargamento dos tecidos moles da área pré-vertebral maior do que 7 mm na região de C2, ou 22 mm na região retrotraqueal (C6); presença de ar no tecido pré-vertebral e perda da curvatura cervical característica (lordótica) (3,4,6,9). No caso descrito, a radiografia simples mostrava alterações compatíveis com esse diagnóstico, exceto pela curvatura cervical lordótica normal.

Porém, conforme descrito por Delap et al. (1996), não é necessário que a curvatura cervical esteja alterada para se aventar o diagnóstico de abscesso ou flegmão pré-vertebral (8). Em serviços que não possuem tomografia computadorizada de urgência, o RX cervical lateral é o método diagnóstico usado para avaliar o espaço retrofaríngeo e o pré-vertebral quando há suspeita de infecção cervical profunda. Porém, resultados falso-positivos, como no caso apresentado, podem induzir a condutas incorretas, proporcionando abordagens cirúrgicas desnecessárias (10).

Mesmo em serviços com acesso fácil à tomografia computadorizada, a radiografia cervical simples é freqüentemente realizada como “screening” em casos de suspeita de infecção do espaço retrofaríngeo. Porém, um teste de “screening” precisa apresentar altos valores de sensibilidade, o que não condiz com o observado por Nagy e Backstrom (9) que, em 1999, encontraram uma sensibilidade do RX de 83% quando comparado com a tomografia computadorizada para detectar infecções em região pré- vertebral. Marra e Hotaling (11), em 1996, encontraram valores ainda mais desanimadores: 33% de falso-negativos com o RX cervical. Além disso, principalmente em crianças, a radiografia cervical pode apresentar alterações freqüentes, o que dificulta sua interpretação.

A largura da área pré-vertebral pode variar com a posição da cabeça, o choro, a deglutição e a respiração (6,9). A tomografia computadorizada é mais precisa que a radiografia simples para identificar infecções cervicais profundas, permitindo diferenciar abscessos de flegmão, calcular o tamanho e a localização exata da região envolvida e avaliar o acometimento de grandes vasos, determinando com maior precisão qual a abordagem terapêutica necessária (15). Em serviços que possuem acesso fácil à tomografia, o uso exclusivo da radiografia cervical como “screening” em um paciente com forte suspeita de infecção cervical profunda pode ser arriscado (9,11).

A possibilidade de resultados falsos negativos do RX e as conhecidas complica ções que essa afecção pode trazer justificam a realização da tomografia, mesmo sendo um método diagnóstico bem mais caro.

CONCLUSÕES

A radiografia cervical lateral com técnica para partes moles é um método diagnóstico amplamente utilizado em investigações de infecções cervicais profundas.

Entretanto, resultados falsos positivos e, principalmente, falsos negativos tornam esse método pouco confiável, o que justifica o uso da tomografia computadorizada com contraste na investigação de casos com suspeita clínica dessas infec- ções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Sennes LU, Imamura R, Angélico Junior FV, Simoceli L, Frizzarini R, Tsuji DH. Infecções dos espaços cervicais: Estudo prospectivo de 57 casos. Rev Bras Otorrinolaringol, 68(3):388-394, 2002.
2. Sennes LU, Tsuji DH, Imamura R, Angélico Junior FV. Head and Neck Space Infections: A prospective study. Otolaryngol Head Neck Surg, 123(2):255-256, 2000.
3. El-Sayed Y, Al Dousary S. Deep-neck space abscesses. J Otolaryngol, 25(4): 227-233, 1996.
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8. Delap TG, Grant WE, Dick R, Quiney RE. Retropharyngeal abscess . an unusual complication of anorexia nervosa. J Laryngol Otol, 110:483-484, 1996.
9. Nagy M, Bacstrom J. Comparison of the sensitivity of lateral neck radiographs and computed tomography scanning in pediatric deep-neck infections. Laryngoscope, 109:775-779, 1999.
10. Brechtelsbauer PB, Garetz S, Gebarski S, Bradford C. Retropharyngeal abscess: pitfalls of plain films and computed tomography. Am J Otolaryngol, 18(4):258-262, 1997. 321
11. Marra S, Hotaling A. Deep neck infections. Am J Otolaryngol, 17(5):287-298, 1996.
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15. Sancho LMM, Minamoto H, Fernandez A, Sennes LU, Jatene FB. Descending necrotizing mediastinitis: a retrospective surgical experience. Eur J Cardio-thoracic Surg, 16: 200-205, 1999.

* Doutorando da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
** Médico Estagiário de Bucofaringolaringologia da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
*** Médico Assistente Doutor da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
**** Professor Livre Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
***** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.

Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Ronaldo Frizzarini - Rua Teodoro Sampaio, 417 sala 53 - Pinheiros . CEP 05405-000 . São Paulo / SP . Tel/Fax: (11) 3068-9855 .
E-mail: ronaldofrizzarini@bol.com.br
Artigo recebido em 2 de novembro de 2002. Artigo aceito com modificações em 7 de julho de 2003
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