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Ano: 2003  Vol. 7   Num. 4  - Out/Dez Print:
Case Report
Manifestações Otológicas do Mieloma Múltiplo. Atualização e Relato de um Caso Raro
Otologic Manifestations of Multiple Myeloma. Update and an Unusual Case Report
Author(s):
Jair Cortez Montovani*, Seizo Yamashita**, Victor Nakajima***.
Palavras-chave:
mieloma, alterações radiológicas, osso temporal.
Resumo:

Introdução: Alterações otológicas associadas ao mieloma múltiplo são raras e podem ser confundidas com otite. A tomografia computadorizada de alta resolução pode auxiliar no diagnóstico diferencial dessa doença, mostrando lesões com características inflamatórias ou neoplásicas do osso temporal. Objetivo: Descrever o caso de um paciente, do sexo masculino, 47 anos de idade, com mieloma múltiplo que apresentou envolvimento do osso temporal. Resultado: Os autores relatam o caso de um paciente com uma história longa de mieloma múltiplo e história recente de disacusia e inflamação da orelha. O diagnóstico inicial foi de otite externa maligna, porém a tomografia computadorizada de osso temporal mostrou uma massa tumoral com lise óssea envolvendo o osso temporal e tecidos moles da orelha, sugerindo a hipótese de mieloma. Conclusões: As alterações radiológicas do mieloma múltiplo na tomografia computadorizada de ossos temporais, embora não específicas, podem aumentar as possibilidades diagnósticas dessa doença.

INTRODUÇÃO

Mieloma múltiplo (MM) é uma doença neoplásica caracterizada pela proliferação de células plasmáticas da medula óssea, podendo apresentar-se clinicamente como doença óssea isolada ou sistêmica (1-9). Diferentes trabalhos mostram a heterogeneidade dessas lesões (Tabelas 1 e 2) o que, sem dúvida, dificulta a classificação, a terapêutica e o prognóstico evolutivo do mieloma (1,2,5,10,11). A doença óssea isolada, denominada mieloma solit ário ou plasmocitoma, ocorre em cerca de 5-10% dos casos, necessitando dos seguintes critérios para o seu diagnóstico:

1) lesão óssea radiológica solitária;

2) histologia por biópsia mostrando proliferação de células plasmáticas;

3) exame da medula óssea mostrando ausência de células de mieloma;

4) ausência de anemia, hipercalciúria e envolvimento renal. No mieloma múltiplo, além do desenvolvimento da medula óssea, vários ossos e órgão podem estar acometidos. Os ossos mais freqüentemente acometidos são as costelas (44%), vértebras (66%), fêmur (24%), calota craniana (41%), pélvis (28%), clavícula (10%) e escápula (10%)(8).

Outros órgãos envolvidos são: linfonodos (75%), rins (62.5%), baço (57%) e fígado (50%)(8-17). O envolvimento do osso temporal pelo mieloma é raro. No Brasil, SOUZA et al., 1993(9), descrevem dois casos de mieloma múltiplo com envolvimento dos olhos, nariz e seios paranasais, mas sem envolvimento do osso temporal. LAVINE et al., em 1979 (14), descreveram o primeiro caso de mieloma em osso temporal, com sinais e sintomas de vertigem, zumbido, hipoacusia e paralisia do nervo hipoglosso. LI et al., em 1994 (16), após extensa revisão de 639 pacientes com mieloma, entre 1970 a 1984, observaram o envolvimento do osso temporal em 8 pacientes, sendo 7 com alterações bilaterais. A idade dos pacientes variava entre 45 a 81 anos (média 62 anos) e a média de sobrevida após o diagnóstico foi de 2 anos. Os achados clínicos e histopatológicos incluíam:células de MM em 13 ossos temporais; otite média secretora em 4 casos; otite média purulenta em 9; efusão mastóidea em 13; hemorragia de mastóide e orelha média em 2, hemorragia da tuba auditiva em 1; células do MM em canal de Falópio em 1; hemorragia ventricular em 1; degeneração do órgão de Corti em 8, atrofia da estria vascular em 7; diminuição de células ganglionares em 6; hidropsia labiríntica em 2, células do MM em artéria carótida em 2. Esses dados reforçam a impressão de que o envolvimento do osso temporal pelo mieloma múltiplo tem uma expressão clínica variável com diferentes sinais e sintomas e alterações inespecíficas nas radiografias convencionais e na tomografia computadorizada (8,12-14). Além da massa tumoral, os achados mais comuns são as áreas de lise e de reabsorção óssea, simulando uma mastoidite ou mesmo um colesteatoma, que aparecem em fases evolutivas tardias do mieloma (12,16-20). O objetivo desse trabalho é relatar um caso de mieloma múltiplo com manifestação otológica tardia e discutir diferentes aspectos clínicos e radiológicos do acometimento do osso temporal.

RELATO DE CASO

Em julho de 1999, foi encaminhado ao Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu – SP, paciente do sexo masculino, 47 anos, com história pregressa de diabetes tipo II e em tratamento de mieloma múltiplo desde 1994.

Os exames laboratoriais estão nas Tabelas 3 e Gráfico 1. A manifestação inicial foi em costela, clavícula direita e ílio esquerdo, tendo feito tratamento com quimioterapia e radioterapia (Figura 1A). Foi realizada biópsia óssea da clavícula e os achados histopatológicos mostraram neoplasia constituída por células plasmocitárias de núcleos redondos, por vezes pleomóficos, hipercromáticos, periféricos e de citoplasma escasso, basofílico. Havia várias células binucleadas e outras anaplásicas, em blocos, com pouco estroma, sendo o diagnóstico de mieloma. Nessa época, o paciente queixava- se de diminuição de acuidade auditiva esquerda e dor auricular.

O exame otológico mostrava espessamento de membrana timpânica com secreção na orelha média, sem perfuração. A audiometria mostrava disacusia neurossensorial leve a moderada à direita apenas na freqüência de 4000 Hz e moderada a severa à esquerda, atingindo 65 dBNA.

A timpanometria era normal. O diagnóstico clínico foi de otite média agravada por provável imunossupressão pela doença base (mieloma) e pelo tratamento quimioterápico.

A perda auditiva neurossensorial foi atribuída à ototoxicidade da quimioterapia e ao diabetes. Três anos após o quadro inicial, houve recidiva do mieloma em clavícula direita e íleo esquerdo (Figura 1B, 1C e 1D). Novamente, o paciente voltou a ter sintomas inflamatórios otológicos e foi tratado como um quadro de otite média aguda.

Devido à ausência de remissão dos sintomas após antibioticoterapia adequada e às alterações confusionais apresentadas pelo paciente, foi solicitada tomografia computadorizada (TC) de crânio e de osso temporal que mostraram lesões inflamatórias de tecido mole e lise óssea na orelha média, envolvendo as regiões anteromedial da mastóide e petrosa do osso temporal esquerdo (Figura 1A, 1B e 1C). Essas lesões não mostravam captação significativa de contraste e foram atribuídas a um processo inflamatório necrotizante, possivelmente uma otite externa maligna (OEM). Optou-se por nova sessão de antibióticos com cefuroxime, baseada em testes de sensibilidade “in vitro” da secreção do ouvido após timpanocentese. Como o quadro do paciente continuava a se agravar, principalmente em relação à dor, após a 4ª semana da primeira TC, foi realizada nova tomografia computadorizada de osso temporal que mostrava, além da lise óssea, lesão expansiva do osso temporal com sinais intensos em T1 e T2 de captação de contraste (Figura 2D). Com esses dados radiológicos e história do paciente, foi feito o diagnóstico de mieloma de osso temporal.

Com a introdução de novo ciclo de quimioterapia para o mieloma associada a antibioticoterapia prolongada (4 semanas) com ceftazidine e vancomicina, houve remissão dos sintomas. Atualmente, após 3 anos de seguimento clínico, o paciente está sem queixas otológicas ou sistêmicas.













DISCUSSÃO

Mieloma múltiplo tem achados clínicos e patológicos diferentes de outras doenças hematopoiéticas e sua prevalência é maior em pessoas de idade média ou idosos. Caracteriza-se clinicamente por anemia, hipercalcemia, depleção da medula óssea com invasão de células plasmocitárias e na eletroforese de proteínas pela proteína de Bence-Jones (1-3,14-16).

Vários trabalhos mostraram que o prognóstico é ruim como nesse caso, pelo envolvimento de múltiplos órgãos, principalmente da medula óssea e órgãos não esqueléticos, com sobrevida média de 2 a 3 anos, dependendo das condições clínicas gerais do paciente (5-7,10,11,14,15). O que é incomum e só recentemente relatado é o comprometimento do osso temporal pelas lesões do mieloma.

Vários autores consideram que essas lesões em osso temporal e sintomas como zumbido e vertigem são consideradas fatores de mau prognóstico (6-9,14,17,18). No presente caso, os achados iniciais eram de uma doença inflamatória bacteriana, otite externa maligna (OEM), associada ao diabetes e à imunossupressão decorrente do tratamento do mieloma, o que poderia explicar as altera- ções inflamatórias dos tecidos moles da orelha e a dor do paciente (11,18,20,21). CHANDLER, em 1968 (24), descreveu- a pela primeira vez em pacientes imunocomprometidos pelo diabetes ou por quimioterapia, como uma doença de caráter progressivo e necrotizante, invadindo tecidos profundos da orelha externa e levando a complicações como osteomielite do osso temporal e abscesso cerebral (25). Essa descrição em muito se parece com os sinais e sintomas do presente caso, justificando o diagnóstico inicial de otite externa maligna.

Porém, a ausência de resolução do quadro inflamatório e a evolução atípica sugeriram a necessidade de uma nova tomografia de osso temporal, que mostrou massa tumoral em fossa posterior com áreas de lise óssea temporal e aumento de captação de contraste (massa hiperdensa) em T1 e T2, diferente de achados radiológicos de um processo inflamatório de ouvido (22,23). Com a confirmação radiológica de um processo neoplásico, foi realizado novo ciclo de quimioterapia, havendo regressão do quadro otológico, o que reforçou o diagnóstico de uma manifestação tardia do mieloma múltiplo em osso temporal. Outras queixas otológicas do paciente como zumbido, vertigem, paralisia facial poderiam ser decorrentes não apenas das lesões tumorais, mas também das lesões inflamatórias (otite, diabetes), insuficiência renal e da ototoxidade causada pelo tratamento do mieloma (6,9,14,16,17,18).

Embora esses autores citem que essas manifestações são consideradas de mau prognóstico, houve uma boa evolução no presente caso, com remissão dos sintomas. Para LI et al.(16) o mau prognóstico estaria mais relacionado às condições clínicas do paciente (como a insuficiência renal causada pela toxicidade da terapia do mieloma) do que às alterações otológicas. Essa também é a nossa opinião. Entretanto a relação dessas alterações com o mieloma múltiplo, por ainda não ser clara, necessita de futuras investigações.

CONCLUSÃO

As manifestações otológicas do mieloma são raras, podendo simular otomastoidite ou outras afecções inflamatórias. O médico, em particular o otorrinolaringologista, deve estar atento a outras hipóteses diagnósticas, inclusive de origem neoplásicas, perante um quadro otológico com evolução clínica incomum.

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* Professor Livre-Docente do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
** Professor Assistente de Radiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP
*** Professor Assistente do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP.

Endereço para correspondência: Prof. Dr. Jair Cortez Montovani . Universidade Estadual Paulista .Júlio de Mesquita Filho. - UNESP . Botucatu /SP . CEP: 18618-000
. Fax: (16) 802-6256 . E-mail: montovan@fmb.unesp.br
Artigo recebido em 10 de maio de 2003. Artigo aceito com modificações em 7 de novembro de 2003.
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