INTRODUÇÃO
O deslocamento posterior do globo ocular de no mínimo dois milímetros em relação ao outro olho, ou enoftalmia, pode ser conseqüente a vários processos que acometem o assoalho orbitário. Entre eles, as neoplasias malignas, trauma, osteomielite e doenças inflamatórias sistêmicas são as mais freqüentes, enquanto a neurofibromatose, sinusite crônica e mucocele de seio maxilar são causas incomuns, geralmente concomitantes a outros sinais e sintomas (1,2). MONTGOMERY, em 1964, relatou pela primeira vez dois casos de enoftalmia decorrentes de doença sinusal maxilar, onde mucoceles assintomáticas eram responsá- veis pela destruição do assoalho orbitário determinando apenas alterações oculares (1). Desde então, outras condi- ções semelhantes decorrentes de doença sinusal crônica foram relatadas por diversos autores (2-4). WESLEY e cols (2) descreveram o primeiro caso de enoftalmia espontânea secundária a sinusite crônica, onde o assoalho orbitário se mantinha intacto, não desmineralizado. A enoftalmia espontânea, assintomática, não relacionada a traumas ou cirurgias, constitui um conjunto de achados denominado Síndrome do Seio Silencioso, uma entidade rara, com poucos casos descritos até hoje na literatura mundial.
Este termo foi utilizado pela primeira vez em 1994 por SOPARKAR e cols (3), em uma revisão multicêntrica e retrospectiva de 19 casos de enoftalmia espontânea, assintomática, secundários a doença do seio maxilar, apresentando adelgaçamento do osso maxilar e aparente hipoplasia sinusal ipsilateral. O diagnóstico desta síndrome é geralmente realizado por oftalmologistas, uma vez que os principais sinais encontrados estão relacionados primariamente com o olho. É de grande importância o conhecimento dessa entidade pelo Otorrinolaringologista, uma vez que pode ser secund ária a processos sinusais crônicos. O objetivo deste trabalho é descrever um caso de Síndrome do Seio Silencioso, discutindo prováveis mecanismos fisiopatológicos, seu diagnóstico e tratamento.
RELATO DE CASO
MNPFB, 44 anos, sexo feminino, previamente hígida, relatava que há aproximadamente 6 meses notou afundamento orbitário esquerdo progressivo, indolor, sem outros sintomas associados. Negava alterações visuais, queixas nasossinusais ou história de trauma facial.
Relatava apenas que há 20 anos tinha sido submetida à cirurgia plástica reparadora nasal. Ao exame físico oftalmológico, apresentava enoftalmia à esquerda de 3mm, sem outras alterações (Figura 1).
Foi solicitada tomografia computadorizada de órbita e seios paranasais (Figuras 2 e 3), sendo observada hipoplasia de seio maxilar esquerdo com velamento do mesmo, obstrução do complexo óstio-meatal ipsilateral, deslocamento orbitário inferior esquerdo e de parede posterior de seio maxilar, assim como adelgaçamento de parede posterior do seio maxilar à esquerda.
As demais estruturas não apresentavam alterações. Foi então solicitada avaliação otorrinolaringológica. A endoscopia nasal revelou um bloqueio do complexo óstio-meatal esquerdo por sinéquia da concha média e do processo uncinado ipsilateral (Figura 4).
A paciente foi submetida à cirurgia endoscópica endonasal, sendo realizada uncinectomia e ampliação do óstio do seio maxilar esquerdo, com drenagem de secreção mucosa hialina espessa. Não foi realizada reconstrução de assoalho orbitário neste tempo cirúrgico, estando a paciente no primeiro ano de seguimento pós-operatório, com regressão completa da enoftalmia e tomografia computadorizada de controle evidenciando boa aeração do seio maxilar esquerdo e regressão do deslocamento de suas paredes (Figuras 5 e 6).
DISCUSSÃO
A atelectasia maxilar crônica é um termo utilizado para descrever uma diminuição de volume do seio maxilar e alterações em exames de imagem demonstrando deslocamento centrípeto de suas paredes e acúmulo de muco espesso (5). Entretanto, pacientes com esta alteração nem sempre evoluem com enoftalmia e a maioria deles apresenta sintomas nasossinusais associados. A síndrome do seio silencioso corresponde a um pequeno subgrupo de pacientes com atelectasia maxilar crônica, cujas características são a ausência de sintomas, do ponto de vista nasossinusal, enoftalmia e deformidade da parede do seio maxilar, não associados a trauma (6). Há divergências quanto a procedimentos cirúrgicos prévios. Alguns autores descrevem a Síndrome com história prévia de procedimento cirúrgico ausente (6), outros associam-na à septoplastia prévia (8), enquanto SOPARKAR e cols (3) excluem apenas a cirurgia dos seios paranasais. Os seguintes critérios foram utilizados em um estudo retrospectivo recente para a seleção de casos cuja suspeita diagnóstica era síndrome do seio silencioso (6):
1. Ausência de queixa sinusal significante, especificamente ausência de sinusite aguda nos últimos 6 meses e de história de sinusite crônica.
2. Enoftalmia espontânea causada por remodelamento ou abaulamento para dentro do seio do assoalho orbitário, demonstrado em cortes coronais de tomografia computadorizada.
3. Ausência de história de trauma ou enoftalmia de outra etiologia.
4. Ausência de deformidade congênita ou anormalidade anatômica significante do seio maxilar ou cavidade nasal. A paciente relatada apresentava todos os critérios acima descritos, exceto pela sinéquia de processo uncinado e concha média na fossa nasal esquerda.
Algumas teorias foram propostas para explicar o fenômeno responsável pela síndrome, mas a fisiopatologia exata continua incerta. Uma das teorias propostas por SOPARKAR e cols (3) especulava que a hipoplasia maxilar encontrada em seus casos provavelmente seria decorrente de obstrução do óstio natural do seio maxilar durante o seu desenvolvimento, entre a primeira e a segunda década de vida. Isso provocaria parada do crescimento e reabsorção óssea, além de uma contínua produção de muco, o que elevaria a pressão naquele seio.
Foi postulado que algum tempo depois, a pressão liberada pelo seio hipoplásico resultaria em colapso de suas paredes e conseqüente enoftalmia. Entretanto, DAVIDSON e cols (7) relataram o caso de uma paciente que apresentava uma ressonância magnética normal três anos antes do desenvolvimento da doença.
Da mesma forma, GILLMAN e cols (8) citaram outros casos onde há exames de imagem prévios demonstrando seios maxilares normais, parecendo imprová- vel que esta teoria seja o único mecanismo responsável pela condição em questão. A teoria mais aceita recentemente propõe que a etiologia da síndrome seja uma hipoventilação do seio maxilar secundária à obstrução de longa data do complexo óstio-meatal (6,8).
Ocorreria, assim, o desenvolvimento de pressão negativa no seio obstruído, por reabsorção do ar, resultando em atelectasia das paredes sinusais. Tal pressão negativa já foi bem demonstrada em seios maxilares ocluídos de coelhos (9), de humanos (10) e recentemente em um caso (7) de síndrome do seio silencioso, onde antes do tratamento cirúrgico a pressão negativa aferida foi de 23mmHg negativos. Esta pressão negativa seria então responsável pelo remodelamento ósseo e pelo deslocamento inferior do assoalho orbitário.
A paciente descrita foi submetida à cirurgia plástica reparadora nasal há 20 anos, apresentando sinéquia da concha média esquerda e do processo uncinado ipsilateral, bloqueando o meato médio, o que poderia justificar a enoftalmia desenvolvida, segundo a teoria acima exposta. Determinar o fator obstrutivo exato responsável pela oclusão do óstio pode ser difícil mas diversos mecanismos são possíveis (6):
1. Oclusão por muco espesso.
2. Parede infundibular medial lateralizada ou hipermóvel, concha média lateralizada.
3. Mucocele ou pólipo nasal.
4. Mucosa inflamada na presença ou ausência de rinossinusite.
5. Seio maxilar e antro hipoplásico com óstio de diâmetro reduzido, sendo mais freqüente sua obstrução.
6. Presença de células etmoidais infraorbitais (Haller) com estreitamento do óstio.
A história típica da síndrome é a de um paciente em sua quarta década de vida que se apresenta com enoftalmia espontânea com duração de semanas ou meses e que procura uma avaliação oftalmológica. No início, a alteração pode ser interpretada como exoftalmia do olho contralateral ou apenas ptose ipsilateral (6). SOPARKAR e cols (3) observaram em estudo multicêntrico e retrospectivo com 19 pacientes com enoftalmia espontânea, que o tempo médio de progressão da enoftalmia foi de 3 meses, estendendo-se a 2 anos; 36% dos pacientes apresentavam história remota de doença sinusal na infância e a maioria dos pacientes encontrava- se na quarta década de vida.
O processo era geralmente assintomático com ausência de infiltrado inflamatório crônico denso (visto normalmente em sinusites crônicas), de elementos císticos, sugestivos de pseudocistos ou cistos de retenção.
No caso relatado, a paciente encontrava-se no início da quinta década de vida, assintomática, apresentando enoftalmia há aproximadamente 6 meses. Após serem descartadas as causas mais comuns de enoftalmia, a avaliação anatômica passa a receber mais atenção.
Este direcionamento da investigação leva a realiza ção de uma tomografia computadorizada de seios paranasais e órbita, que geralmente demonstra opacificação unilateral e colapso do seio maxilar com retração do assoalho orbitário (6).
A tomografia computadorizada de seios paranasais da paciente descrita mostrava hipoplasia de seio maxilar ipsilateral com velamento do mesmo, obstrução do complexo óstio-meatal, deslocamento orbitário inferior e de parede posterior de seio maxilar, assim como seu adelgaçamento. A ressonância magnética aparentemente não demonstra nenhum achado específico que confirme o diagn óstico em pacientes com esta síndrome.
Sua função principal é no diagnóstico diferencial, pois trata-se de um importante instrumento de investigação de outras causas de enoftalmia. O tratamento da síndrome deve ser direcionado para a doença sinusal. A retirada do fator obstrutivo, o restabelecimento da ventilação normal com equalização das pressões dentro do seio e atmosféricas são os objetivos primordiais (6,8,11). A abordagem pode ser realizada via endonasal com uncinectomia e antrostomia maxilar endoscópicos e retirada de tecido mole obstrutivo.
Diversos autores recomendam cautela extra durante esta abordagem, uma vez que a alteração anatômica do processo uncinado pode levar à penetração inadvertida da lâmina papirácea (5,11). Alguns autores acreditam que com a abertura do óstio do seio, o fluido sinusal, que inicialmente poderia sustentar o delgado assoalho da órbita, poderia drenar, permitindo uma depressão adicional do conteúdo orbitário (7,8). Assim, a exploração com reconstrução do assoalho orbitário pode ser necessária para a correção da assimetria. Alguns autores preferem esta abordagem no mesmo tempo cirúrgico do tratamento do complexo óstio-meatal (12).
Outros advogam abordagem em tempo cirúrgico posterior (8). A reconstrução é geralmente realizada utilizando uma via transconjuntival ou subciliar, sendo o assoalho reforçado com auto-enxertia de osso ou cartilagem, bancos de tecidos ou uso de materiais sintéticos à base de titânio ou polietileno (12,13).
No caso relatado, a paciente foi submetida à uncinectomia e ampliação do óstio do seio maxilar esquerdo, sem reconstrução de assoalho orbitário, que aparentemente se encontrava íntegro. O seguimento pós-operatório dos casos relatados varia de 6 a 36 meses.(3,6,8,11,12).
Não há relatos na literatura demonstrando progressão da enoftalmia após tratamento adequado da doença nasossinusal (8), dado concordante com o caso descrito, em que a enoftalmia melhorou 1mm após o procedimento cirúrgico. COMENTÁRIOS FINAIS O termo Síndrome do Seio Silencioso é usado para descrever pacientes com atelectasia maxilar crônica que evoluem com enoftalmia, apresentam-se assintomáticos do ponto de vista nasossinusal e sofrem deformação óssea orbitária.
Apesar dos pacientes tipicamente procurarem assistência oftalmológica, o otorrinolaringologista deve necessariamente estar familiarizado com esta condição, a fim de proporcionar auxílio diagnóstico e indicar o tratamento adequado. O tratamento é dirigido primariamente à altera- ção sinusal; a abordagem do assoalho orbitário é realizada posteriormente ou em associação ao ato cirúrgico inicial.
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*Médico estagiários da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**Doutor em Medicina pela Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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Artigo aceito em 12 de setembro de 2003. Artigo aceito em 29 de abril de 2004.