INTRODUÇÃO
A anatomia do nervo facial e sua inervação são complexas. Este apresenta fibras motoras eferentes para a musculatura facial (incluindo o músculo estilohioideo, músculo estapediano e ventre posterior do digástrico), fibras parassimpáticas pré ganglionares (para as glândulas lacrimal, submaxilar, submandibular, sublingual e seromucosas nasais), fibras aferentes para o paladar (dois terços anteriores da língua, palato e fossa tonsilar), propriocepção aferente da musculatura facial e aferência cutânea do meato acústico externo e concha (1). A paralisia facial periférica tem enormes conseqüências estéticas e funcionais para o paciente.
O maior contingente de suas fibras é motora, paralisando a musculatura mímica da face. Esta paralisia afeta esteticamente pela assimetria facial e funcionalmente pelas alterações de lacrimejamento e pelo tônus da musculatura peri-bucal.
A estética é essencial na vida social e profissional das pessoas. Esta doença traz enormes conseqüências psíquicas para os indivíduos acometidos. Apesar da paralisia facial de Bell ser a causa mais comum de PFP, os tumores do ângulo pontocerebelar e as paralisias traumáticas, principalmente as por projétil de arma de fogo, são causadores de paralisias faciais graves e em uma porção proximal do nervo (2). O reparo do nervo por anastomose término-terminal ou por enxerto autólogo é técnica de melhor resultado, porém em muitos desses casos o coto proximal do nervo não pode ser obtido devido à impossibilidade de identificação do nervo frente à intensa presença de fibrose local, risco cirúrgico devido à localização na fossa posterior e próximo ao tronco cerebral e possibilidade de complicações peri e pós-operatórias como sangramentos e fístulas, impossibilitando a realização destas anastomoses. Quando isto ocorre, o nervo facial pode ser reanimado de outras maneiras (3): substituição do nervo por inervação de outro par craniano; transferências do nervo facial contralateral (cross face); transposições/transferências musculares. As transposições musculares e transferências usam grupos musculares que têm reinervação que não a do nervo facial ou grupos musculares de outros sítios do corpo juntamente com seu pedículo nervoso.
Nas técnicas de substituição nervosa, os nervos doadores eram sacrificados para que o nervo facial pudesse ser reanimado, trazendo muitas vezes seqüelas importantes (4). Técnicas de anastomose entre o nervo facial e o nervo hipoglosso são as mais descritas para substituição (3,5-7), porém os déficits motores e a atrofia da hemilíngua que podem resultar desta técnica são as principais críticas de sua realização (8,9). Desde que a primeira descrição do uso do nervo hipoglosso para reinervação do nervo facial foi proposta por Korte em 1901 (8), várias técnicas cirúrgicas de substituição têm sido publicadas (3,10).
Outros pares cranianos foram também utilizados com este propósito, como o acessório, trigêmio e glossofaríngeo (5), sempre levando em considera ção o binômio: motricidade facial e seqüelas na região anteriormente inervada pelo nervo doador.
A compatibilidade neural alcançada com nervo hipoglosso foi superior a estes, devido principalmente à similaridade funcional (1,6,11). Ambos têm uma representação cortical próxima sendo que a língua tem uma ampla representação. As técnicas inicialmente propostas postulavam a secção completa do nervo hipoglosso e sua anastomose terminal com o nervo facial ou com um enxerto do coto distal do nervo facial até o hipoglosso através do uso de nervo sural ou auricular magno (3,8,10). Devido a complexidade das fibras do nervo facial, o retorno de motilidade total é um objetivo não alcançável neste tipo de cirurgia, onde a atividade funcional básica como tônus muscular no repouso e habilidade para sugar, mastigar e falar são os objetivos essenciais (1).
Os resultados obtidos nas técnicas de reparo são os mais fidedignos, uma vez que estão usando o sistema de condução do nervo facial e a tonotopia das fibras distais (3,11,12). O objetivo deste estudo é descrever e comparar a técnica de anastomose funicular término-terminal (AFTTHF) com as técnicas de substituição neural já descritas na literatura.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Vinte e três pacientes, (16 masculinos e 7 femininos, proporção M:F = 2,3) foram submetidos à técnica de AFTTHF. A idade média foi de 36,5 anos (mínimo 7 e máximo 60). Vinte (87%) pacientes apresentavam uma paralisia facial periférica grau V, três (13%) pacientes tinham grau VI pela escala de House Brackmann (13) anterior à realização da cirurgia (Tabela 1).
A etiologia da paralisia pode ser acessada na Tabela 2. O tempo máximo entre a paralisia facial e a repara- ção cirúrgica foi de 18 meses e o tempo mínimo foi de 3 meses, com um tempo médio de 11 meses. O nervo facial foi acometido pela lesão primária em 10 casos, pelo mecanismo de trauma (fratura ou FAF) em 9 casos ou durante o procedimento cirúrgico em 4 casos.
Os locais das lesões eram na porção intracraniana ou na primeira porção intratemporal (meato acústico interno e segmento labiríntico). Em todos os casos o coto proximal não era acessível para realização de reparo.
O uso da técnica de substituição neural pelo hipoglosso foi então utilizada.
Descrição da técnica cirúrgica
Uma mastoidectomia simples é realizada para acessar o nervo facial em sua 3ª porção (mastóidea) e liberá-lo até sua emergência no forâmem estilomastoideo (Figura 1). Secciona-se o nervo no seu 2º joelho sem manipulação da cadeia ossicular.
O nervo é retirado do canal de Falópio e transposto inferiormente através da região do forame estilomastoideo, medialmente ao ventre posterior do músculo digástrico. A incisão é então estendida até o pescoço, em continuidade com a incisão retroauricular da mastoidectomia e alinhada com a borda anterior no músculo esternocleidomastoideo (no triângulo anterior do pescoço).
O nervo hipoglosso é então localizado póstero-inferiormente à borda posterior do ventre posterior do músculo digástrico, sobre a artéria carótida interna e anterior à veia jugular interna (Figura 2). O seu ramo descendente é então localizado.
Proximal a seu ramo descendente, uma janela é aberta no epineuro na porção mais lateral do nervo hipoglosso, de maneira a visualizar os funículos.
O funículo mais posterior e mais lateral é então seccionado.
O coto distal do nervo facial já transposto para este local é então anastomosado com o coto proximal do funículo seccionado do nervo hipoglosso (Figura 3). Caso o comprimento do nervo facial não seja suficiente para que uma anastomose sem tensão seja realizada, os músculos digástrico e/ou esternocleidomastoideo podem ser seccionados.
Para a estabilização da anastomose foi usado cola de fibrina humana (Tissucol®) segundo técnica previamente descrita por BENTO (14,15). A incisão cirúrgica é fechada em três planos: muscular, subcutâneo e pele. Todos os pacientes foram colocados em programa de reabilitação motora facial para treinamento da nova maneira de movimentação.
RESULTADOS
Os pacientes tiveram um seguimento de 24 meses. A função motora mímica da face foi avaliada em consultas seqüenciais e pelo mesmo examinador, em intervalos de 1 mês.
No quarto mês, 20 pacientes já mostravam sinais de reinervação motora, enquanto que os outros 3 restantes, mostraram movimentação a partir de 1 ano. Após os 24 meses os resultados obtidos podem ser avaliados na Tabela 2. A motricidade e a funcionalidade da língua foram preservadas em todos os casos.
DISCUSSÃO
Os resultados obtidos por esta técnica mostravam uma aquisição de tônus da musculatura facial no repouso com melhora da funcionalidade para alimentação. Nem sempre a escala usada para a avaliação da paralisia foi a de HB, tornando difícil a comparação entre estudos, porém a maioria dos autores considera ganho do tônus no repouso e funcionalidade na articulação facial para a fala e alimenta ção resultados satisfatórios para esta técnica (2).
Nestes estudos, a seqüela para a língua era de 100%, sendo que a associação com uma lesão pré-existente de outros pares cranianos, poderia causar lesões definitivas importantes para o paciente.
Considerando o melhor aporte que o nervo hipoglosso pode doar para o nervo facial, 10% dos pacientes podem não ter reinervação da face e mesmo assim ainda terem a seqüela na hemilíngua e como há grande aporte de fibras para o facial a chance de movimentos em massa aumenta. Os resultados com anastomose entre o coto terminal do nervo facial e a parede lateral do nervo hipoglosso ou com parte do nervo hipoglosso visavam diminuir a seqüela na motricidade lingual (5,6).
Nesta técnica, o aporte de fibras nervosas para o nervo facial seria menor e em contrapartida a seqüela na língua também (3,11). A técnica realizada com secção de um terço da espessura no nervo hipoglosso e anastomose termino lateral, foi realizada inicialmente com o uso de interposição de um enxerto de nervo (3,4) (sural ou auricular magno).
Neste caso há desvantagem de haver duas anastomoses já que a transposi ção do nervo facial é feita próxima a glândula parótida, não deixando coto distal do nervo facial suficiente para sutura direta no nervo hipoglosso e assim necessitando de enxerto, o que levou a resultados piores do que o obtido pelo autor (3,7). Mesmo com uma secção de metade do diâmetro do nervo hipoglosso, não houve seqüela lingual (1,5,6). O enxerto lateral mostra que há menor lesão para a função da língua ou nenhuma lesão, porém os resultados para a reinervação facial são piores.
Os resultados obtidos no presente estudo mostraram reinervação do nervo facial (HB III ou II) em aproximadamente dois terços dos pacientes, o que comparado com as técnicas discutidas acima, mostra melhor desempenho.
A AFTTHF apresenta o mesmo índice de complicação em relação a atrofia lingual quando comparada com as técnicas que preservam parte da fibras do hipoglosso, como na anastomose láteroterminal.
CONCLUSÃO
A AFTTHF associa a possibilidade de ter um bom resultado na motricidade facial (HB II ou III) já que a anastomose é feita de maneira término terminal e não látero-terminal, através da dissecção específica de um funículo. Portanto, há menor lesão de fibras e maior chance de reinervação, com um diâmetro maior do nervo hipoglosso preservado, minimizando a chance de lesão na função motora da língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Doutor em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Fellow em Cirurgia Otológica e de Base de Crânio e Doutorando do Curso de Pós-graduação da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho apresentado no 9th International Facial Nerve Symposium, San Francisco, CA, USA, 29 de julho a 1 agosto de 2001.
Endereço para correspondência: Dr. Arthur Menino Castilho . Rua Tenente Negrão nº 140 cj 91 9º andar . São Paulo / SP . CEP: 04530-000 . Brasil . Telefone:
(11) 3167-6556 . Fax: (11) 3168-0230 . E-mail: arthurcastilho@ajato.com.br
Artigo recebido em 20 de julho de 2004. Artigo aceito com modificações em 9 de outubro de 2004.