INTRODUÇÃOA hanseníase é uma doença infecciosa causada pelo bacilo Mycobacterium leprae. Representa sério problema de saúde pública, visto que o Brasil configura a segunda maior endemicidade do mundo (1).
A infecção inicial da hanseníase ocorre na mucosa nasal (2,3). O achado de baciloscopia positiva na mucosa nasal foi publicado pela primeira vez em 1973 (4). Desde então, tem se demonstrado que a via aérea superior é a principal forma de transmissão através do convívio com os doentes sem tratamento (1).
O diagnóstico precoce é importante pelo controle epidemiológico, manejo do caso e prevenção das deficiências (5). Além disso, a doença deve ser diagnosticada e tratada eficientemente antes que se estabeleça alteração na face tornando o paciente estigmatizado (6).
Com isso, o exame otorrinolaringológico é importante no diagnóstico precoce da hanseníase devido ao acometimento freqüente das vias aérea superiores. Apresenta caráter descendente, ou seja, inicia pelas fossas nasais e, a seguir boca, laringe (1).
Portanto, o presente estudo tem como objetivo demonstrar os achados otorrinolaringológicos em pacientes portadores de hanseníase virgens de tratamento e apresentar o protocolo de um Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária e Hanseníase (CREDESH).
CASUÍSTICA E MÉTODODe janeiro de 2005 a julho de 2007, oitenta pacientes com diagnóstico de hanseníase, virgens de tratamento, foram encaminhados ao Serviço de Otorrinolaringologia do CREDESH, conforme protocolo de avaliação no diagnóstico.
Estes pacientes foram avaliados por meio de história clínica, exame físico e exames complementares (nasofibroscopia, laringoscopia, audiometria, etc.) quando necessário. Foi preenchido um protocolo padrão (Figura 1) que constava as queixas, sinais e sintomas otorrinolarin¬gológicos, exame físico e exames complementares.
Na avaliação do nariz, o paciente foi questionado quanto aos principais sintomas como obstrução nasal, epistaxe, formação de crostas, dentre outros sintomas que apareceram ou se acentuaram após o início da doença. Foi realizada rinoscopia anterior e nasofibroscopia quando necessário e descritas as alterações mucosas e estruturais encontradas.
Na avaliação da região buco-faringo-laríngea, o paciente foi questionado quanto a sintomas como disfonia, globus faríngeo. Foi realizada oroscopia e descritas as alterações. Quando havia queixas laríngeas era realizada videolaringoscopia.
Na avaliação otológica, o paciente foi avaliado quanto às queixas otológicas e foi realizada otoscopia. Exames complementares como audiometria e imitanciometria foram realizados quando necessário.
Os protocolos foram lançados em um Software de Estudo e Controle da Hanseníase (SECH) do CREDESH e avaliados retrospectivamente quanto aos dados clínicos dos pacientes. Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sob número 025/2000.
RESULTADOSDos 80 pacientes, 31 eram do sexo feminino (38,75%) e 49 do masculino (61,25%). Quanto às formas clínicas da doença, 4 pacientes (5%) eram tuberculóides (T), 23 (28,75%) dimorfos-tuberculóides (DT), 10 (12,5%) dimorfos-dimorfos (DD), 14 (17,5%) dimorfos-virchowianos (DV), 26 (32,5%) virchowianos (V) e 3 apresentaram (3,75%) a forma neural pura (HNP).
As queixas e alterações otorrinolaringológicas mais freqüentes foram relacionadas ao nariz (Tabela 1), principalmente obstrução nasal (36,25%) e formação de crostas (30%). Os sinais mais freqüentes foram hipertrofia de conchas (36,25%), hiperemia de mucosa (22,5%) e atrofia de conchas (22,5%). Perfuração de septo e nariz em sela foram encontrados em 16,25% dos casos (Tabela 2).
Com relação à forma clínica, a virchowiana foi a que apresentou maiores sinais e sintomas clínicos, sendo responsável por 64% das queixas (Figura 2). As formas do grupo dimorfo também apresentaram queixas em número significativo, representando 30% destas. O mesmo ocorreu nas alterações do exame físico nasal em que a forma clínica virchowiana representou 49% das alterações encontradas e as formas dimorfas, 39% destas.
Figura 2. Tomografia computadorizada dos seios da face em corte coronal demonstrando rinite atrófica, edema de mucosa nasal e perfuração septal, achados típicos de hanseníase, forma virchowiana.
Na região buco-faringo-laríngea, as principais alterações foram: globus faríngeo (7,5%) e dor cervical (5%). A oroscopia foi encontrada alteração como vegetação, ulcerações ou nodulações em 4 pacientes (3,75%).
As otológicas foram menos comuns, sendo as mais comuns: otalgia (8,75%), hipoacusia (8,75%), zumbido (6,25%) e vertigem (3,75%).
DISCUSSÃOA hanseníase pode ser diagnosticada precocemente com o auxílio do exame otorrinolaringológico, já que na suspeita pelas lesões dermatológicas, a associação com alterações nasais torna o diagnóstico altamente suspeito (1). Como foi visto nesse trabalho, a estrutura da região de cabeça e pescoço mais acometida do paciente com hanseníase foi o nariz. O exame físico do nariz e a avaliação das alterações causadas são de fácil execução e possibilita o tratamento precoce evitando assim deformidades, já que o nariz representa elemento de indiscutível importância na aceitação social do indivíduo (7).
Das estruturas nasais, as mais acometidas são o septo, as conchas e a espinha nasal anterior, por apresentarem revestimento mucoso em suas duas faces (7).
No nariz há três grupos de manifestações: precoces, intermediárias e tardias. No primeiro grupo há infiltração da mucosa e ressecamento anormal. Nas intermediárias, a infiltração aumenta acarretando obstrução nasal, com aumento da secreção nasal originando crostas. E no grupo das manifestações tardias, ocorre ulceração, infecção secundária, diminuição da irrigação sanguínea do pericôndrio podendo produzir perfuração do septo nasal cartilaginoso, alteração da sensibilidade e perturbações do olfato. Com a destruição do septo nasal o nariz pode se tornar em sela (1).
No presente estudo, as principais queixas foram à obstrução nasal (36,25%) e formação de crostas (30%). Outra queixa também comum foi a epistaxe recorrente (15%). O sangramento severo, porém, é raro (6). Tais alterações são intermediárias e auxiliariam no diagnóstico precoce. Em outro estudo, mais de 90% dos pacientes com hanseníase virchowiana admitiram sintomas nasais quando foram diretamente questionados (8). No estudo presente, onze pacientes apresentavam queixa de hiposmia/anosmia. Entretanto, BARTON (1974b) refere que esse sintoma não é normalmente mencionado pelos pacientes (9).
Dez pacientes apresentavam perfuração de septo nasal sendo que três desses evoluíram para nariz em sela. Essa importante deformidade poderia ter sido evitada com o diagnóstico e tratamento mais precoce. FARINA (1991) ao descrever correções cirúrgicas do nariz em sela de variadas etiologias mostraram que a maior porcentagem de complicações se relaciona com doentes com hanseníase (10).
Dezoito pacientes apresentaram atrofia de conchas nasais com importante palidez de mucosa em 16 casos. BARTON (1973) refere que cerca de metade dos pacientes com rinite atrófica apresentam algum grau de perda de sensibilidade do nariz (11).
Outras estruturas acometidas pela hanseníase e que fazem parte do exame otorrinolaringológico são a cavidade oral e a laringe. Porém, as lesões da orofaringe são secundárias às nasais e presentes apenas em pacientes de longa evolução. Apresentam-se como infiltrados e nódulos (1). Na história natural da doença, as lesões laríngeas são graves. Elas podem ser fibróticas, com imobilização das pregas vocais e conseqüente disfonia, ou ulcerativas, que são mais graves e levam à dor, disfonia e dispnéia (1). Com a introdução do tratamento poliquimioterápico mais precoce, essas lesões não tem sido observadas.
No presente estudo encontramos as seguintes alterações buco-faringo-laríngeas: 5% dor na cavidade oral, 7,5% globus faríngeo e 1,5% com hiperemia em cavidade oral. Porém, a videolaringoscopia não foi realizada nesses pacientes. BARTON (1974c) avaliou 34 pacientes selecionados, e neles não foi observado envolvimento das pregas vocais e em dois pacientes havia envolvimento da epiglote (12).
Quanto à orelha, a hanseníase parece acometer apenas o pavilhão auricular (1). Nos pacientes examinados apenas um apresentou edema do conduto auditivo externo. Sete pacientes apresentavam hipoacusia e demais queixas que provavelmente já existiam antes da doença e que não apresentam relação com a hanseníase. BARTON (1989) também encontrou, ocasionalmente, pacientes com significativa perda auditiva e outros sintomas na avaliação otológica de pacientes com hanseníase (6).
Enfatiza-se também que foram encontrados sinais e sintomas clínicos e alterações no exame físico em grande parte das formas do grupo dimorfo, o que sugere um comprometimento precoce do nariz na hanseníase e o destaque do papel deste no diagnóstico e transmissão da doença.
Portanto, este estudo mostra os achados otorrinolaringológicos de pacientes com hanseníase e reforça, uma vez mais, a importância do diagnóstico precoce a fim de prevenir complicações definitivas.
CONCLUSÃOO presente estudo demonstrou o protocolo utilizado na avaliação dos pacientes com hanseníase, virgens de tratamento, no Serviço de Otorrinolaringologia do CREDESH. Demonstrou, assim como na literatura, que os sintomas e sinais nasais são os mais freqüentes, sendo estes: obstrução nasal (36,25%), formação de crostas (30%) e epistaxe recorrente (15%). Reafirma-se a importância do otorrino¬laringologista na avaliação multidisciplinar desse paciente.
AGRADECIMENTOSOs autores agradecem à equipe do CREDESH e à FAPEMIG, CNPq, CAPES, FINEP e Ministério da Saúde pelo suporte financeiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Talhari S, Neves RG. Hanseníase. 3ª. ed. Manaus: Tropical; 1997.
2. McDougall AC, Rees RJ, Weddel AG, Kanan MW. The histopathology of lepromatous leprosy in the nose. J Pathol 1975; 115:215-26.
3. Job CK. Nasal mucosa and abraded skin are the two routes of entry of Mycobacterium leprae. Star 1990; 49:1.
4. Pedley JC. The nasal mucus in leprosy. 10th International Leprosy Congress Paper 1973; 6:45.
5. International Leprosy Association Technical Forum. The diagnosis and classification of leprosy. Int J Lepr Other Mycobact Dis 2002; 1:S23-S31.
6. Barton RPE. Ear, nose and throat involvement en leprosy. Leprosy, Medicine in the Tropics 1989; 243-52.
7. Duerksen F, Virmond M. Nariz; Cirurgia reparadora e reabilitação em hanseníase. Bauru: ALM Internacional. Centro de Estudos Dr. Reinaldo Quagliato, Instituto Lauro de Souza Lima; 1997.
8. Barton RPE. A clinical study of the nose in lepromatous leprosy. Lepr Rev 1974a; 45:135-44.
9. Barton RPE. Olfaction in leprosy. J Laryngol Otol 1974b; 80:355-61.
10. Farina R, Farina G, Cury E. Os enxertos ósseos na correção das deformidades do dorso osteocartilaginoso do nariz. Folha Méd 1991; 103(1):27-36.
11. Barton RPE. The management of leprous rhinitis. Lepr Rev 1973; 44:186-91.
12. Barton RPE. Lesions of the mouth, pharynx and larynx in lepromatous leprosy. Lepr India 1974c; 46:130-34.
1 Médica, Residente do Serviço de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Otorrinolaringologista. Chefe da Divisão de Cirurgia Crânio-Maxilo-facial do Serviço de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia.
3 Professor Titular. Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia.
4 Professora Doutora. Chefe do Serviço de Hansenologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia.
Instituição: Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária e Hanseníase, Hospital de Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.
Endereço para correspondência: Isabela Maria Bernardes Goulart - Avenida Aspirante Mega, 77 - Bairro Jaraguá - Uberlândia / MG - CEP 38413-018 - Telefone: (34) 3216-7872 / 3238-1530 - E-mail: credsh@hc.ufu.br - Suporte Financeiro: FAPEMIG, CNPq, CAPES, FINEP e Ministério da Saúde.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da R@IO em 4 de janeiro de 2008. Cod. 401. Artigo aceito em 16 de janeiro de 2008.