INTRODUÇÃOAmiloidose consiste em uma doença idiopática caracterizada por depósitos extracelulares de proteína fibrilar insolúvel (amiloide) em diferentes tecidos e órgãos (1). Foram descritas 25 formas bioquímicas distintas, sendo as mais comuns as formas AL (cadeias leves de imunoglobulinas) e AA (doença amiloide do soro) (2). As formas clínicas podem ser divididas em amiloidose sistêmica (mais frequente) e localizada (3,4). As formas localizadas acometem principalmente órgãos abdominais (mais frequente) e estruturas da cabeça e pescoço, notadamente a laringe, localização mais comum da amiloidose isolada em cabeça e pescoço (3). A amiloidose responde por cerca de 1 % dos tumores benignos de laringe (1,4,5,6).
A amiloidose laríngea é rara, tendo sido reconhecida pela primeira vez em exame post-morten em 1842 (7,8). O primeiro relato clínico data de 1875 (7) e, desde então até 1990, cerca de 300 casos foram relatados (3,4).
Clinicamente, trata-se de doença mais comum no sexo masculino (3:1) e na quinta década de vida (3,6,8). A sintomatologia inclui rouquidão, dispneia, disfagia e hemoptise (4,6,8). O aspecto à laringoscopia pode ser nodular ou difusamente infiltrativo (1,9) sendo as lesões mais frequentes na supraglote (3). As localizações mais frequentes, em ordem decrescente de frequência, são: ventrículo, pregas vestibulares , pregas vocais, pregas ari-epiglóticas e subglote (8,10,11,12,13).
A tomografia computadorizada pode revelar espessamento dos tecidos moles da laringe, com alta densidade (14). Na ressonância magnética, apresenta o mesmo sinal do músculo esquelético (15).
O diagnóstico diferencial inclui tumores laríngeos benignos (especialmente pólipos) e malignos, além de doenças granulomatosas (5). Alguns autores acreditam que alguns casos de laringocele possam ser causados por amiloidose laríngea (9,14).
O tratamento clínico, incluindo corticoides e radioterapia, mostrou-se ineficaz (8). O tratamento é feito pela remoção cirúrgica da lesão por microcirurgia de laringe (4). A abordagem externa fica reservada para casos com lesões mais extensas (1,8). A confirmação diagnóstica pela biópsia apresenta aspecto microscópico de depósitos de uma matriz extracelular, sub-epitelial, acelular e eosinofílica, eventualmente associada a infiltrado inflamatório composto por linfócitos, plasmócitos e células gigantes tipo corpo-estranho (2,5). Na coloração com vermelho-congo, observa-se birrefringência tipo "maçã verde" típica (3,5). Imunohistoquímica e microscopia eletrônica são úteis na diferenciação de formas bioquímicas (2,6).
Em alguns casos de doença extensa sem obstrução iminente das vias aéreas, uma conduta expectante pode ser considerada (8,12).
A amiloidose laríngea é uma doença lentamente progressiva raramente associada a doença sistêmica (1). Alguns autores recomendam, no intuito de se afastar outras doenças, tais como amiloidose sistêmica, mieloma múltiplo e plasmacitoma extracelular, uma investigação profunda e detalhada (Quadro 1) (1,2,4,5,6).
Outros autores, entretanto, acreditam que, pela natureza isolada e lentamente progressiva da amiloidose laríngea, pacientes sem outras manifestações clínicas possam realizar somente hemograma e testes das funções renal e hepática, permanecendo sob controle regular da lesão laríngea por videolaringoscopia (8).
RELATO DE CASOPaciente de 23 anos,branca, auxiliar de educação, com queixas de disfonia discreta e incômodo faríngeo há cerca de 3 meses. A videolaringoscopia revelou volumosa lesão branco-acinzentada em prega vocal esquerda. A lesão apresentava comportamento basculante (deslocamento supraglote,glote,subglote) durante inspiração e fonação, permitindo boa coaptação glótica e, consequentemente, razoável qualidade vocal (Figuras 1 e 2).
Formulado um diagnóstico pré-operatório de pólipo de prega vocal, foi submetida à microcirurgia de laringe sob anestesia geral. A lesão foi completamente removida com bisturi frio e microtesoura, sendo o material enviado para histopatológico.
Os cortes histológicos revelaram segmento de tecido conjuntivo, exibindo extensas áreas de aspecto eosinofílico amorfo, parcialmente revestido por epitélio pavimentoso estratificado. A coloração com vermelho-congo revelou características tintoriais de substância amiloide.
No 15º dia pós-operatório a paciente referia importante alívio sintomatológico. A videolaringoscopia mostrava apenas discreto infiltrado na mucosa, no local de inserção da lesão. Como a paciente não apresentava outras manifestações clínicas, optou-se pela realização de hemograma e testes de funções renal e hepática, que foram normais e seguimento semestral. Foi encaminhada à fonoterapia complementar, uma vez que faz uso profissional da voz.
Figura 1. Tumoração em prega vocal esquerda.
Figura 2. Laringe da mesma paciente durante fase fonatória, com boa coaptação glótica. A lesão encontra-se no espaço subglótico.
DISCUSSÃONosso caso corresponde à forma mais rara de amiloidose, a isolada, sendo a laringe a localização mais frequente em cabeça e pescoço. Não se enquadra nas características demográficas mais comuns (homens na quinta década de vida), nem na localização laríngea mais frequente (supraglótica) (3,6,8). A sintomatologia corresponde à descrita na literatura (disfonia e incômodo faríngeo) (4,6,8).
A videolaringoscopia sugeria lesão glótica polipoide sendo o diagnóstico de amiloidose exclusivamente histopatológico. Por ser a doença manifestação laríngea isolada, não havia evidências clínicas para suspeita de amiloidose, o que ressalta sua importância como diagnóstico diferencial das tumorações laríngeas (5). A amiloidose laríngea pode apresentar-se clinicamente de forma semelhante a várias outras lesões benignas, devendo ser sempre cogitada no diagnóstico diferencial.
Apesar do grande tamanho da lesão, sua remoção a frio, com bisturi e microtesoura foi relativamente fácil, não sendo necessário o emprego do laser, conforme sugerido por alguns autores (1,3). A lesão deve, sempre que possível, ser integralmente removida (biópsia excisional). É de extrema importância enviar o material para um Serviço de Anatomopatologia de confiança, evitando-se erros diagnósticos.
A questão mais polêmica talvez seja a investigação pós-operatória: optamos pela rotina simplificada (hemograma e provas de função renal e hepática) (8), por não haver outras manifestações clínicas. Ressaltamos a questão do acompanhamento semestral por videolaringoscopia, para diagnóstico precoce de eventuais recidivas.
COMENTÁRIOS FINAISA amiloidose laríngea, apesar de rara, deve sempre ser cogitada no diagnóstico diferencial de massas laríngeas, uma vez que se trata de afecção indistinguível de outras lesões benignas, do ponto de vista clínico. O tratamento é, na maioria das vezes cirúrgico (biópsia excisional), devendo-se recorrer a Serviço confiável de Anatomopatologia para o diagnóstico histopatológico. É indispensável a investigação para manifestações extralaríngeas.
AGRADECIMENTOÀ Dra Loreley Luderer, patologista, Laboratório Pasteur, Volta Redonda.
A João Alfredo Figueiredo, pela preparação das imagens.
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1 Mestre em Cirurgia Geral-Otorrinolaringologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto e Chefe do Serviço de ORL da Faculdade de Medicina de Valença.
2 Médica Otorrinolaringologista. Otorrinolaringologista da OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense.
Instituição: OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense. Volta Redonda / RJ - Brasil. Endereço para correspondência: Ricardo Rodrigues Figueiredo - Rua 40, nº 20 - Salas 216 a 218 - Vila Santa Cecília - Volta Redonda / RJ - Brasil - CEP: 27255-650 - Telefone (+55 24) 3348-6382 - rfigueiredo@otosul.com.br
Artigo recebido em 13 de Abril de 2009. Artigo aprovado em 4 de Julho de 2009.