INTRODUÇÃO"Gusher" é um raro fenômeno que consiste em súbita saída de líquido perilinfático durante a realização da platinotomia na cirurgia da estapedotomia ou estapedectomia (1). A etiologia é uma malformação congênita que causa comunicação anormal entre o espaço perilinfático e o espaço subaracnóideo. Pode ser detectada por otorreia na presença de perfuração timpânica ou rinorreia, algumas vezes associada a meningite, porém na maioria dos casos permanece indetectado por vários anos se tornando evidente durante o ato cirúrgico. Pode se apresentar isoladamente ou associado a síndrome congênita ligada ao X. O estudo tomográfico pode ser normal (2) ou apresentar alterações no canal auditivo interno, cóclea e nervo facial (3). Em estudo com estapedectomias GINSBERG et al demonstrou o "gusher" em 0,5% das cirurgias (4). A impossibilidade de se definir o diagnóstico clínico associado à ausência de sinais patognomônicos da doença são as principais complicações no "gusher". Alguns achados intraoperatórios na vascularização e crura posterior do estribo podem sugerir a hipertensão (5). Na ocorrência desse a interrupção cirúrgica ainda permanece como a conduta mais utilizada (1).
O objetivo deste trabalho é relatar um caso de "gusher" durante uma estapedotomia e discutir a correlação com a síndrome congênita ligada ao X.
RELATO DO CASOPaciente NT, 49 anos, sexo feminino, branca, com história de hipoacusia progressiva unilateral a direita há 18 anos com piora nos últimos 02 anos, apresentando perda condutiva leve com "gap" aéreo-ósseo de 15 dB entre 500 Hz e 2000 Hz a direita e audição normal à esquerda em audiometria solicitada há 18 anos. Tinha como sintoma associado zumbido tipo apito à direita com grau moderado de incômodo e crises vertiginosas esporádicas. Apresentava história familiar negativa. Ao exame otorrinolaringológico, otoscopia sem alterações, Rinne negativo até 1024 Hz em orelha direita e Weber lateralizado para este lado. Restante do exame físico normal. Foi solicitada audiometria que apresentou perda mista à direita e "entalhe" de Carhart na frequência de 2000 Hz e a esquerda perda neurossensorial leve acima de 6000 Hz descendente até 30 dB em 8000 Hz (Figura 1), ausência bilateral de reflexo estapediano e imitanciometria com curva tipo A bilateral (Figura 2). Tomografia computadorizada de ossos temporais evidenciou áreas de desmineralização óssea em ambas as cápsulas óticas, anteriormente às janelas ovais, na topografia das fissulas ante fenestram, associadas a espessamento das platinas dos estribos. Cócleas, vestíbulos, canais semicirculares, aquedutos cocleares e vestibulares sem anormalidades (Figuras 3 e 4).
A hipótese diagnóstica aventada foi fixação do estribo por provável otosclerose à direita baseado na história clínica e no exame físico. Protetização e cirurgia foram discutidos com a paciente que optou pela cirurgia (timpanotomia exploradora). O teste de mobilidade da cadeia ossicular foi realizado no procedimento cirúrgico evidenciando a fixação do estribo. Durante a microperfuração da platina ocorreu saída de líquido céfalo-raquidiano em grande quantidade, optando-se por não colocação de prótese e selamento de janela oval com gordura de lóbulo de orelha direita. Apesar desta intercorrência, a paciente evolui sem outras complicações com melhora dos sintomas de zumbido e tontura. Foi realizada nova tomografia e audiometria (Figura 5) que se mantiveram semelhantes aos exames pré-operatórios.
Figura 1. Audiometria tonal pré operatória.
Figura 2. Timpanometria.
Figura 3. Imagem tomográfica em corte axial demonstrando focos de otospongiose em janela oval a direita.
Figura 4. Imagem tomográfica em corte coronal demonstrando integridade do canal semicircular superior direito.
Figura 5. Audiometria tonal pós operatória.
DISCUSSÃOA hipertensão perilinfática ou "gusher" é uma importante complicação observada durante a estapedotomia ou espedectomia (1). Consiste em saída súbita de líquido céfalo-raquidiano que ocorre imediatamente após a platinotomia, observando-se seu persistente acúmulo em orelha média e conduto auditivo externo. Pode-se apresentar isoladamente ou como parte da síndrome congênita ligada ao X.
Nesta síndrome ocorre uma ligação anômala entre os espaços subaracnóideo e perilinfático. Essa ligação pode se dar de duas formas: alargamento do aqueduto coclear ou do conduto auditivo interno (1,2). Nesta síndrome quando ocorre perda auditiva mista a associação com "gusher" já é reconhecida há anos (2). O estudo tomográfico associado com esta patologia pode ser normal (2) ou apresentar alterações como: alargamento da porção lateral do canal auditivo interno, separação incompleta do giro basal da cóclea do conduto auditivo interno e alargamento da primeira e segunda parte da porção intratemporal do nervo facial (2,3). Mulheres heterozigotas podem apresentar anormalidades radiológicas mais discretas sendo o alargamento do canal auditivo interno a mais encontrada (2).
Em estudo com 2405 pacientes submetidos à estapedectomias GINSBERG et al. demonstrou a ocorrência do fenômeno em 0,5% das cirurgias (4). A maioria dos casos consistia em homens portadores da síndrome congênita ligada ao "X" com perda mista associado a dilatação do canal auditivo interno e/ou defeito na base do modíolo (4).
Na ausência de história familiar de perda auditiva mista ligada ao "X", cirurgiões tem dificuldade de determinar se o paciente tem riscos pré-operatórios de apresentar hipertensão perilinfática. Exames de imagem são realizados na possibilidade de identificar alterações que possam prever a alteração, como as encontradas nesta síndrome, porém o fenômeno pode ser encontrado em tomografias normais de ossos temporais mesmo utilizando as técnicas mais modernas de imagem (2).
Estudos de imagem têm um importante papel no diagnóstico e no acompanhamento clínico da otosclerose. Tomografia de alta resolução é o método radiológico de escolha para avaliação da janela labiríntica e da cápsula ótica. Essa tomografia pode demonstrar com precisão atividade ou lesões espongióticas, as quais são visualizadas como um foco hipodenso ou radiolucente na cápsula ótica (6).
A impossibilidade de definir o diagnóstico clínico previamente a cirurgia e a ausência de sinais clínicos patognomônicos são os fatores que dificultam o diagnóstico do "gusher" combinado com a otosclerose (1) como ocorreu no caso relatado. CAUSSE et al. descreveu dois indícios que podem alertar o cirurgião para a possibilidade da presença de "gusher" antes da platinotomia: diminuição da vascularização da orelha média e inserção anormal da crura posterior do estribo (5). Entretanto, esses sinais são bastante inespecíficos para se firmar o diagnóstico (5).
Na síndrome ligada ao "X" quando já se suspeita de hipertensão perilinfática, sugere-se evitar cirurgia optando-se por protetização. Quando há perda neurossensorial profunda pode-se optar pelo implante coclear (3). Na otosclerose durante a estapedotomia ou estapedectomia se há o "gusher" o selamento da janela oval com gordura ou esponja hemostática é utilizada e na persistência da saída de líquido a punção lombar deve ser aventada (1). Alguns autores referem um segundo tempo cirúrgico para colocação da prótese porém com riscos maiores de degeneração coclear (1).
CONSIDERAÇÕES FINAISA hipertensão perilinfática ou "gusher" é uma importante complicação observada durante a estapedotomia ou espedectomia. A impossibilidade de definir o diagnóstico clínico previamente a cirurgia e a ausência de sinais clínicos patognomônicos são os fatores que dificultam o diagnóstico do "gusher" combinado com a otosclerose. Esta complicação deve ser considerada em casos de otosclerose, onde o diagnóstico pré-operatório de hipertensão perilinfática é mais difícil em relação a síndrome congênita ligada ao X .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Cassano P, Decandia N, Cassano M, Fiorella ML, Ettore G. Perilymphatic gusher in stapedectomy: demonstration of a fistula of internal auditory canal. Acta Otorhinolaryngol Ital. 2003, 23(2):116-9.
2. McFadden MD, Wilmoth JG, Mancuso AA, Antonelli PJ. Preoperative computed tomography may fail to detect patients at risk for perilymph gusher. Ear Nose Throat J. 2005, 84(12):770, 772-4.
3. Kumar G, Castillo M, Buchman CA. X-linked stapes gusher: CT findings in one patient. Am J Neuroradiol. 2003, 24(6):1130-2.
4. Ginsberg IA, Hoffman SR, Stinziano GD, White TP. Stapedectomy - In depth analysis of 2405 cases. Laryngoscope. 1978, 88(12):1999-2016.
5. Causse JB, Causse JR, Wiet RJ, Yoo TJ. Complications of stapedectomies. Am J Otol. 1983, 4(4):275-80.
6. Vicente AO, Yamishita HK, Albernaz PLM, Penido NO. Computed tomography in the diagnosis of otosclerosis. Otolaryngology - Head & Neck Surgery. 2006, 134(4):685-92.
1 Graduação Medicina. Médico Residente Otorrinolaringologia do HSPM-SP.
2 Ex-residente Otorrinolaringologia HSPM-SP. Otorrinolaringologista.
3 Otorrinolaringologista. Médica Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do HSPM-SP e Hospital CEMA.
Instituição: Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo. São Paulo / SP - Brasil. Endereço para correspondência: Carlos Eduardo Fernandes Soares de Melo - Rua Pires da Mota, 550 - Apto. 11 - Aclimação - São Paulo / SP - Brasil - CEP: 01529-000 - Telefone: (+55 11) 3208-2211 - E-mail: c.em@globo.com
Artigo recebido em 17 de Março de 2009. Artigo aprovado em 24 de Maio de 2009.