INTRODUÇÃO
No início dos anos 60, o conhecido desastre da talidomida tornou evidentes os riscos, algumas vezes desconhecidos, da terapêutica medicamentosa.
Percebeuse, então, a necessidade de sistemas racionais de observa ção e cadastro das Reações Adversas aos Medicamentos (RAMs)1 . Chama-se de farmacovigilância ao processo de identifica ção, registro, cadastro e avaliação sistemática das RAMs.
A farmacovigilância é o ramo da farmacoepidemiologia que avalia a questão da relação risco-benefício tanto das drogas comercializadas quanto daquelas em qualquer etapa de desenvolvimento que antecede seu registro e comercialização. Algumas questões particulares como riscos específicos de determinadas populações a certas drogas (como crianças e pacientes HIV positivos, por exemplo) ou aspectos ligados à segurança da auto-medicação também são contemplados2,3,4.
Questões relacionadas às falhas técnicas de fabricação dos produtos farmacêuticos ou de suas embalagens também são avaliadas. Trataremos neste artigo basicamente das RAMs a medicamentos já comercializados lembrando, entretanto, que há uma crescente necessidade de avaliação precoce da relação risco/benefício das novas drogas em desenvolvimento, pois apenas nos casos extremamente favoráveis, ou seja, em que os benefícios superem em muito os possíveis riscos, ficam justificados os elevados investimentos necessários por parte da indústria farmacêutica5 . RAMS: GENERALIDADES As RAMs representam uma das principais causas de óbito nos EUA: há estimativa de que as RAMs ocupem a quarta posição dentre as principais causas de morte naquele país, sendo ultrapassadas apenas pelas doenças cardíacas, pelas neoplasias e pelos derrames cerebrais6 .
Há poucos trabalhos científicos a este respeito, mas sabe-se que este quadro é, em realidade, ainda mais dramático pois apenas um pequeno número das RAMs é relatado, mesmo nos países em que isto é obrigatório por parte dos profissionais de saúde para os órgãos competentes da Saúde Pública (como na Fran- ça, no Reino Unido, nos EUA ou, como representantes da América Latina, na Argentina e, mais recentemente, no México). Um estudo realizado pelo Centro de Farmacovigilância de Bordeaux, na França, demonstrou que para a popula- ção de clínicos gerais da região apenas uma em cada 25.000 reações adversas é relatada (apesar da obrigatoriedade de relato por parte dos médicos franceses, vigente desde 1984 !)7.
RAMS: DEFINIÇÕES BÁSICAS Um dos grandes problemas da farmacovigilância é a falta de padronização mundial tanto no que diz respeito aos procedimentos quanto à terminologia empregada. Inúmeros Conselhos Internacionais e Conferências de Harmonização vêm tratando da questão, buscando definir uma linguagem comum aos interessados pelo tema8,9 . Assim, temos: Reação adversa: resposta indesejada na qual se suspeita relação causal com o uso de determinado medicamento . Efeito colateral: corresponde a um efeito indesejado de um produto farmacêutico nas doses habitualmente empregadas, relacionado às suas propriedades farmacológicas.
Também conhecido como reação adversa Tipo A. Reações adversas Tipo B: são reações individuais, geralmente alérgicas ou idiossincrásicas, mais raras e geralmente inesperadas e imprevisíveis, não relacionadas às propriedades farmacológicas da droga e geralmente com pouca ou nenhuma relação com a dose empregada. Reações adversas do Tipo C: correspondem a novos fatores de morbidade ou alterações na freqüência de doenças naturais, provocadas geralmente por tratamentos crônicos.
São reações relativamente comuns que apresentam efeitos visíveis a nível de Saúde Pública. (o tratamento crônico do diabetes mellitus, por exemplo, acarreta um aumento de sobrevida dos pacientes, acarretando um aumento na incidência de uma série de outras afecções antes pouco freqüentes na população de diabéticos). Eventos adversos: correspondem às ocorrências médicas indesejáveis observadas no decorrer de um tratamento medicamentoso sem que haja, necessariamente, qualquer suspeita de relação causal com o uso do medicamento em questão.
O relato de eventos adversos ocorre apenas durante pesquisas clínicas de drogas em desenvolvimento ou em pesquisas que utilizem medicamentos já comercializados.
Por exemplo, se no decorrer de uma pesquisa em que se avalia um antibió- tico, um paciente sofrer um acidente automobilístico fatal, trata-se de um evento adverso sério, mesmo na ausência de nexo causal entre o óbito e o medicamento estudado.
Este critério mais rigoroso utilizado em pesquisas clínicas é intencional e visa a detecção de "sinais",ou seja, ocorrências indesejáveis relacionadas à droga estudada até então desconhecidas em sua natureza ou freqüência. RAMS: CLASSIFICAÇÃO As reações adversas são geralmente classificadas em10: 1.
Sérias e não-sérias Onde as reações sérias são aquelas cuja evolução contemple óbito, hospitalização, ocorrência de malformações congênitas ou outros eventos importantes sob o ponto de vista médico. Consideram-se RAMs não-sérias aquelas que não se enquadram nos critérios anteriormente citados. 2.
Leves, moderadas e severas Esta classificação se relaciona à graduação de intensidade da reação.
Assim, uma reação séria não é necessariamente severa (por exemplo, uma hipoglicemia reacional leve pode dar origem a uma internação hospitalar correspondendo, portanto, uma reação adversa sé- ria; do mesmo modo, a ocorrência de uma cefaléia muito intensa como reação adversa caracteriza uma reação severa porém não-séria, desde que não implique em óbito ou hospitalização). 3.
Outros critérios de classificação Uma RAM é dita conhecida quando estiver mencionada, explicitamente ou através de condição semelhante, na bula do produto.
As chamadas RAMs desconhecidas são aquelas cuja natureza, severidade ou freqüência não estiverem definidas na bula do produto (a compilação e a análise dos relatos espontâneos de RAMs são fundamentais quando da atualização de bulas de produtos farmac êuticos). Outro critério empregado na classificação das RAMs diz respeito à sua freqüência.
Assim, as RAMs podem ser: a) muito comuns (quando sua incidência for superior a 1/ 10 ou 10% dos casos); b) comuns ou freqüentes (quando sua incidência for superior a 1/100 e inferior a 1/10 casos, ou seja, 1% < freqüência < 10%); ocasionais ou infreqüentes (quando 0,1% < freqüência < 1%); raras (quando 0,01% < freqüência < 0,1%); e muito raras ou isoladas (quando sua ocorrência for inferior a 1/10.000 casos, ou seja, < 0,01%). RAMS: IDENTIFICAÇÃO É fundamental na prática clínica diária que os profissionais de saúde, especialmente os médicos, mantenhamse alertas e sejam capazes de identificar possíveis rea- ções adversas.
Neste sentido, constitui ponto fundamental a avaliação da relação causal entre o uso de determinada medicação e a reação observada. Não há regras fixas para a determinação da rela- ção de causalidade, mas alguns ítens são fundamentais10: Presença de relação temporal compatível entre exposi- ção à droga suspeita e aparecimento da reação adversa. Re-exposição à droga suspeita provocando reação adversa semelhante à inicialmente observada. Ausência de explicação alternativa para a reação observada (ou seja, ausência de condição associada que justifique a reação). Presença de fator de risco para a reação adversa em questão. A relação causal com o tratamento administrado e a RAM pode ser, então, classificada em altamente prová- vel, provável, possível, pouco provável ou não relacionada. A falta de dados suficientes para análise impossibilita a determinação de relação causal de maneira adequada, o que torna evidente a importância de que os relatos de RAMs sejam extremamente completos.
RELATOS DE SUSPEITA DE RAMS
Várias são as fontes de relatos de RAMs. A principal delas consiste nos chamados Relatos Espontâneos de RAMs, ou seja, relatos oriundos da prática médica diária, embora em alguns países as autoridades sanitárias aceitem relatos provenientes de outros profissionais da saú- de ou até mesmo dos próprios pacientes.
Por outro lado, há os relatos originados de observações de prescrições monitorizadas, realizados em nosso país geralmente sob supervisão das indústrias farmacêuticas responsáveis pela comercialização do produto que se deseja estudar7 . Há ainda os relatos de RAMs oriundos da literatura médica que, ainda que menos numerosos, correspondem geralmente a reações adversas sérias, severas e inesperadas. Os estudos farmacoepidemiológicos (de coorte ou caso-controle) também não podem ser esquecidos11 . No que diz respeito aos relatos de RAMs da prática clínica diária, as grandes indústrias do ramo farmacêutico já estão dotadas de bases de dados internacionais de farmacovigilância, aptas a receber relatos dos respons áveis locais por assuntos ligados à segurança dos medicamentos por elas comercializados.
Pode-se obter dados quanto à freqüência de reações adversas observadas, embora esta questão seja um dos pontos críticos da farmacovigilância, dependendo de dados locais de prescri ção11 . Vale ressaltar que, apesar dos relatos de RAMs não serem compulsórios em nosso país pelos profissionais de saúde ou pela indústria farmacêutica, muito se tem discutido, acreditando-se que a obrigatoriedade de relato deve muito em breve se tornar realidade.
É necessária uma maior atenção por parte dos médicos em geral com rela- ção a esta questão uma vez que os relatos de suspeita de reação adversa a drogas comercializadas constituem excelente indicador do real perfil de segurança de um produto. CONCLUSÃO É crescente a preocupação com relação à segurança medicamentosa tanto por parte dos serviços de Saúde Pública quanto por parte da indústria farmacêutica. A farmacovigilância, termo da moda atual, constitui um meio moderno efetivo de avaliação racional da rela- ção risco-benefício dos medicamentos e procedimentos terapêuticos.
Esta avaliação vem se tornando fundamental na avaliação das novas drogas em desenvolvimento, apresentando papel determinante no sucesso dos novos medicamentos comercializados, cada vez mais numerosos. É fundamental a conscientização dos profissionais da saúde para a importância dos Relatos de Suspeita de Reação Adversa aos Medicamentos tanto para a indústria farmacêutica quanto para os órgãos responsáveis da Vigilância Sanitária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1- Doutora em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo