INTRODUÇÃO
A manutenção da homeastase dos fluidos do ouvido interno e sua integridade bioquímica são essenciais para o bom funcionamento da audição e do equilíbrio1. Segundo RUBIN e BROOKLER2, as alterações hormonais no organismo da mulher durante o ciclo menstrual, menopausa e gravidez podem provocar distúrbios nessa homeostase, gerando sintomas auditivos e labirínticos. Alguns autores tiveram oportunidade de demonstrar tais alterações durante o ciclo menstrual, manifestadas por vertigens, zumbidos e mesmo assintomáticas3,4,5. As alterações encontradas foram associadas a altos níveis hormonais presentes no sangue, principalmente na fase pós ovulatória imediata. A variação dos limiares tonais durante o ciclo menstrual foi confirmada audiometricamente por DAVIS & AHROON6. LAWS & MOON7 demonstraram comprometimento do reflexo estapediano, que foi atribuído à ação hormonal no Sistema Nervoso Central, sempre variável de acordo com os níveis hormonais no sangue. Em 1993, GOMEZ8 encontrou 52% de alterações audiométricas em pacientes que apresentavam tonturas pré-menstruais.
A influência dos hormônios ovarianos na função auditiva foi intensamente questionada com a utilização dos contraceptivos orais durante os últimos trinta anos, quando foram descritos casos de surdez súbita9,10 e alteração da audição11 atribuídos a esses fármacoss. A utilização dos potenciais evocados do tronco cerebral mostrou-se eficaz na demonstração de comprometimento das vias auditivas centrais nesses casos12,13. Em 1993, BITTAR e CRUZ14 apresentaram trabalho experimental em cobaias, demonstrando que a progesterona apresenta ação na onda III do potencial evocado, influindo em sua amplitude e morfologia.
De forma análoga, durante a gestação normal, foi descrito comprome-timento do labirinto posterior15, não existindo porém, estudos da função auditiva nesse período. O objetivo de nosso trabalho foi observar o comporta-mento da função auditiva durante a ges-tação através dos Potenciais Auditivos Evocados do Tronco Cerebral (PATC) e da pesquisa do reflexo estapediano.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foram estudadas 14 gestantes e 28 pacientes do sexo masculino, res-peitando-se os padrões éticos vigentes no Hospital das Clínicas da FMUSP.
A idade média das gestantes foi de 24,6 anos +/- 8,29, enquanto que a dos homens foi de 36,32 anos +/- 11,76.
Todos os pacientes foram submetidos à audiometria tonal (audiômetro MADSEN OB70), à pesquisa do reflexo estapediano (impedanciômetro MADSEN ELETRONIC ZO73) e ao exame de Potenciais Evocados do Tronco Cerebral (RACIA APE 78).
As ondas do PATC foram analisadas quanto à sua latência e morfologia. Foram observados ainda os intervalos interpicos entre as ondas I, III e V. Padronizamos realizar os exames no ouvido direito na intensidade de 90 dB.
Regulagem utilizada para realização dos potenciais evocados:
- estímulo: cliques de 0,08 mseg, polarização alternada, freqüência de 20/seg. Em cada teste foram utilizadas aproximadamente 1000 estímulos.
- janela: 10 mseg.
- filtro: banda passante de 100 a 3000 Hz.
- amplificação: 5 mv, por divisão.
O cálculo estatístico dos valores encontrados foi realizado mediante os seguintes modelos:
a. média aritmética e desvio padrão.
b. teste de igualdade das médias "t" de "Student".
Adotou-se nível de significância (p) de 95%, conforme os padrões utilizados em estudos biológicos.
RESULTADOS
Não encontramos alterações estatisticamente significativas quando analisados os limiares de reflexo dos grupos controle e gestantes. Com relação ao intervalo diferencial entre o limiar tonal e o limiar para desencadeamento do reflexo estapediano, que denominaremos campo auditivo, encontramos aumento significativo na freqüência de 2000 Hz (p<0,05). Embora não atingissem os níveis de significância estabelecidos, as médias dos intervalos entre limiar tonal e limiar de reflexo encontradas, foram maiores nas gestantes, especialmente nas freqüências agudas. Valores obtidos:
500 Hz + = 0,22
1000 Hz + = 1,65
4000 Hz + = 1,84
As médias obtidas, quando avaliado o intervalo entre o limiar tonal e o reflexo estapediano, estão no Gráfico 1.
Quanto ao PATC, não foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos, quando avaliadas as latências de todas as ondas. As médias dos resultados obtidos com relação às latências estão no Gráfico 2. As médias dos intervalos obtidos entre as ondas I-III, III-V e IV figuram no Gráfico 3. Em relação ao estudo morfológico das ondas, não pudemos observar alterações importantes entre os dois grupos. Embora não atinjam os níveis de significância adotados, os valores absolutos das latências das ondas I, III e V, bem como os intervalos entre elas, foram menores no grupo de gestantes.
Gráfico 1. Média dos campos auditivos (diferença entre o limiar tonal e o reflexo estapediano) das gestantes em relação ao grupo controle.
Gráfico 2. Média das latências das ondas I a V ao BERA, observadas no grupo de gestantes em relação ao grupo controle.
Gráfico 3. Intervalos entre as ondas I, III e V ao BERA, observadas no grupo de gestantes em relação ao grupo controle.
DISCUSSÃO
Não encontramos diferença significativa entre os dois grupos, quando analisamos os limiares do reflexo estapediano. Entretanto, o campo auditivo foi significativamente maior a 2000 HZ no grupo de gestantes, o que matematicamente significa que o limiar tonal nessa freqüência foi menor no grupo de estudo em relação ao grupo controle. O aumento do campo auditivo foi atribuído a lesão de tronco cerebral por JERGER e JERGER16. De acordo com BITTAR e CRUZ14, a progesterona, hormônio predominante durante a gestação, induz ao comprometimento da onda III da cobaia ao PATC, sugerindo que haja de fato alteração da condução do impulso nervoso através do tronco cerebral, o que explicaria a alteração encontrada. Por outro lado, esta observação é paradoxal, uma vez que tradicionalmente, aos melhores limiares tonais são esperados menores níveis de reflexo estapediano17. Estudando contraceptivos orais, SAMANI12 encontrou resultados semelhantes aos nossos, observando melhora dos limiares tonais e aumento do nível de reflexo com o uso prolongado dessas drogas.
Não pudemos observar melhora significativa dos limiares tonais das gestantes na freqüências agudas, mas os valores obtidos a 1000 e 4000 Hz foram mais próximos ao nível de significância que a 500 Hz. Nossos achados confirmam estudos preliminares que concluem que a ação hormonal se dá principalmente nas freqüências agudas4,11 e que, em presença de altos níveis hormonais, há melhor performance auditiva18.
Com relação ao BERA, nossos estudos não puderam demonstrar alterações significativas entre os traçados das gestantes e do grupo controle. Não podemos, no entanto, concluir que a gestação não interfere na condução do impulso auditivo através do Sistema Nervoso Central, devido ao número pequeno de casos que estudamos. Observando os resultados encontrados, verificamos que as médias das ondas I, III e V, bem como seus intervalos, são mais precoces no grupo das gestantes, embora não atinjam o nível de significância adotados. Essa observação está de acordo com estudos preliminares que demonstram diminuição das latências sob influência do estrógeno usado experimentalmente nos Potenciais Evocados do Tronco Cerebral13 e atuação hormonal na função vestibular durante a gestação14.
No geral, nossos resultados se aproximam aos de SAMANI et al.12, com contraceptivos orais. O autor relata diminuição significativa das latências das ondas I e III, quando sensibiliza a prova dos potenciais evocados aumentando o número de cliques, o que não ocorre com a padronização habitual. Observa ainda aumento dos limiares do reflexo estapediano, o que não foi por nós observado, em desacordo com LAWS e MOON7, que descrevem diminuição do nível de reflexo sob ação hormonal. Acreditamos que nossos achados confirman a hipótese de BITTAR e CRUZ14 que relatam comprometimento da onda III em cobaias com o uso da progesterona, justificando o aumento do campo auditivo.
BIBLIOGRAFIA
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1-Assistente Doutor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2-Médica Assistente e Pós Graduanda em Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3-Assistente Doutor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
4-Aluno de Pós Graduação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.