Introdução
Apesar dos recentes avanços científicos, o zumbido é um sintoma envolto em inúmeras incógnitas e permanece sendo um dos desafios da otorrinolaringologia.
Em cerca de 80% dos casos, o zumbido é de grau leve e intermitente, não trazendo maiores conseqüências à vida do indivíduo e nem mesmo levando-o a procurar auxílio médico (1). Entretanto, quando se manifesta de maneira importante, pode prejudicar a qualidade de vida, afetando o sono, a concentração, o equilíbrio emocional e até as atividades sociais, incapacitando a realização das atividades diárias. São esses os pacientes que procuram ajuda médica.
Em um estudo prévio com 358 pacientes do Grupo de Zumbido do Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP, 50% apresentaram distúrbios do sono, 43,5% da concentração, 59% do equilíbrio emocional e 14% da atividade social. Assim, fica evidente que o sofrimento da população que procura auxílio médico em consultórios e hospitais difere bastante da população geral com zumbido.
Uma contribuição muito importante para a compreensão dos mecanismos fisiopatológicos do zumbido surgiu com a publicação do modelo neurofisiológico de Pawel Jastreboff (1990), que envolve a participação das vias auditivas e não auditivas na percepção do zumbido clinicamente significativo (2). A aplicabilidade clínica desse modelo deu origem ao tratamento que se utiliza do fenômeno da habituação, também conhecido por TRT (tinnitus retraining therapy), apresentando atualmente os resultados mais eficazes no controle do zumbido de toda a história de seu tratamento, possibilitando a melhor reabilitação do paciente nas suas atividades diárias.
O modelo neurofisiológico de Jastreboff
Segundo Jastreboff, o zumbido clinicamente importante é o resultado da interação dinâmica de alguns centros do sistema nervoso central, incluindo vias auditivas e não auditivas (Figura 1). Assim, apesar de muitos casos estarem relacionados a alguma causa inicialmente coclear, esta causa não é de fundamental importância na determinação da gravidade do zumbido, agindo apenas como gatilho de uma avalanche de processos dentro do sistema nervoso. Uma analogia propícia pode ser feita com a origem de um rio congelado: a primavera é necessária para dar início ao degelo, porém o rio cresce durante seu próprio curso à medida que muitas outras fontes de água aumentam seu volume, em combinação com a primavera. Este fato pode ser aplicado ao zumbido, onde a cóclea representa o gatilho do processo (através de várias possibilidades que serão vistas a seguir), provocando uma atividade neuronal anormal que será realçada pelas vias auditivas e finalmente percebida como zumbido (2).
O processo pelo qual o zumbido surge pode ser dividido em três etapas: geração, detecção e percepção (Figura 1). A geração freqüentemente ocorre nas vias periféricas (mas também pode ocorrer nas vias centrais) e, na maioria dos casos, está associada a doenças da cóclea e do nervo coclear. A detecção ocorre nos centros subcorticais e baseia-se num padrão de reconhecimento específico. Por fim, a percepção ocorre no córtex auditivo com significativa participação do sistema límbico, do córtex pré-frontal e de outras áreas corticais (2).
Atualmente não há dúvidas de que o cérebro tem um alto grau de neuroplasticidade e que esse processo é contínuo ao longo da vida do indivíduo. Sempre que aprendemos algo novo ou recordamos algum fato, pequenas alterações ocorrem no cérebro devido a modificações nas conexões neuronais. Porém, apesar de toda a potência e complexidade do sistema nervoso, o cérebro não processa diferentes tarefas conscientes ao mesmo tempo. Portanto, parte das informações sensoriais recebidas é seletivamente descartada. Para que um som seja percebido, seu significado também é levado em consideração, e não apenas a sua intensidade. Assim, sem que tenhamos consciência, essas informações são avaliadas nas áreas subcorticais do sistema nervoso e, se forem valorizadas como suficientemente importantes, atingirão o córtex para serem percebidas conscientemente. Se essas mesmas informações forem classificadas como não importantes, são imediatamente descartadas sem que tomemos conhecimento delas. Por exemplo, se estamos em um restaurante com muito ruído de fundo, podemos concentrar nossa atenção na conversa de nosso acompanhante (informação importante) e inconscientemente ignorar os sons menos importantes que nos rodeiam, mesmo que sejam mais altos. Por outro lado, alguns sons muito fracos, porém com significado importante (como o chamado de nosso nome ou um sinal de perigo) podem ser percebidos mesmo que estejam envoltos por outros sons, sendo realçados em relação ao ruído de fundo. Portanto, nossas vias auditivas têm a capacidade de selecionar subconscientemente os sons importantes, enquanto os demais são ignorados (2-4).
Assim, fica evidente que o significado que o som adquire é um fator preponderante na determinação da reação do indivíduo, e não apenas suas características psicoacústicas. Em neurofisiologia, o fenômeno do desaparecimento da reação a um determinado sinal é conhecido como habituação (5). O processo de habituação a um determinado som só pode ser alcançado quando o mesmo não provoca nenhuma reação emocional, ou seja, quando esse som é neutro ao indivíduo. Na verdade, para cerca de 80% dos pacientes, o som do zumbido é neutro e, portanto, pode ser habituado de maneira espontânea e natural. Assim, esses indivíduos só percebem seus zumbidos esporadicamente (mesmo que estejam sendo gerados constantemente). Por outro lado, se a percepção do zumbido for relacionada a algo desagradável ou perigoso (possibilidade de doença grave, de surdez, de piora com o decorrer do tempo, ou ainda, incapacidade de ter uma vida normal), essas preocupações relativamente naturais frente a um sintoma pouco conhecido, impedem que o processo da habituação ocorra, fazendo com que o indivíduo passe a perceber seu zumbido continuamente e, portanto, a "sofrer" com ele (2-4). Por exemplo: se o paciente acha que o zumbido é um problema grave, o sinal que chega ao cérebro é que esse importante problema precisa ser observado e monitorizado. Desse modo, o sinal do zumbido é realçado e o paciente o escuta constantemente, aumentando sua tensão, diminuindo sua concentração e interferindo em seu sono, uma vez que no silêncio sua percepção é realçada. À medida que isso ocorre, nosso cérebro se concentra cada vez mais na atividade neuronal relacionada ao zumbido, transformando essa situação em um círculo vicioso.
A abordagem terapêutica: Habituação ou TRT (Tinnitus Retraining Therapy)
Se nosso cérebro tem a capacidade de descartar e ignorar sinais pouco importantes, é possível eliminar a percepção do zumbido da consciência, desde que o som do zumbido deixe de significar algum perigo para o paciente. Assim, o indivíduo não percebe o sinal do zumbido e consequentemente não se incomoda, mesmo que essa atividade neuronal continue presente nas vias auditivas.
Esse método de tratamento que é baseado no modelo neurofisiológico chama-se habituação ou retreinamento do zumbido (TRT). Neste caso, ao invés de dirigir o tratamento à origem do zumbido, que geralmente está relacionada à orelha interna, utiliza-se os fundamentos da neurofisiologia e da transmissão de sinais pelo sistema nervoso central. Portanto, fica evidente que a indicação desse tratamento pressupõe a investigação prévia do paciente pelo otorrinolaringologista e a exclusão de possíveis causas tratáveis de zumbido.
A TRT tem sido usada em inúmeras clínicas de zumbido distribuídas pelo mundo. O procedimento é totalmente baseado na plasticidade do sistema nervoso central e seu objetivo principal é enfraquecer as alças de ativação do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo.
O processo completo da habituação ocorre em duas fases principais e, para isso, dois princípios são fundamentais em todos os casos, devendo ser igualmente valorizados: a orientação (aconselhamento terapêutico) e o enriquecimento sonoro:
1. fase de habituação da reação: o zumbido ainda é percebido, porém não mais provoca reações negativas como antes e pode ser ignorado por alguns momentos. Essa etapa é fundamental para o sucesso do tratamento e, para alcançá-la, é necessário remover os temores do paciente em relação ao seu sintoma (aconselhamento terapêutico).
2. fase de habituação da percepção: é o objetivo final do tratamento, quando o zumbido deixa de ser percebido, a não ser que o paciente preste atenção nele. Para isso, é necessário associar o aconselhamento terapêutico ao enriquecimento sonoro.
Uma vez indicada a TRT, o paciente é classificado de acordo com as cinco categorias de tratamento que consideram a presença ou não de hipoacusia, hiperacusia e misofonia/fonofobia acompanhando o zumbido (Quadro 1). Para isso, as provas audiológicas são essenciais, principalmente a determinação do limiar de desconforto (Loudness Disconfort Level - LDL).
Entretanto, independente da categoria, os 2 princípios básicos da TRT são sempre mantidos: o aconselhamento terapêutico e o enriquecimento sonoro, embora sejam adaptados de maneira diferente para cada paciente e para cada categoria (Quadro 2).
O objetivo do trabalho é descrever a experiência preliminar com o tratamento do zumbido através do método da TRT em hospital público, demonstrando possíveis adaptações para o atendimento dessa população.
Casuística e Métodos
Identificação da amostra
Foram selecionados 10 pacientes regularmente matriculados no Grupo de Zumbido da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O número da amostra foi determinado pela quantidade de aparelhos geradores de som doados pela empresa Danavox / GN Resound para esta pesquisa.
Dos 10 pacientes, cinco eram do sexo feminino e cinco do masculino. As idades variaram de 35 a 59 anos, com média de 46,8 e mediana de 45,5 anos. Oito pacientes apresentavam zumbido em ambos os ouvidos e dois na cabeça. O tempo de zumbido foi superior a dois anos em todos os casos, sendo que sete pacientes apresentavam tempo de história superior a 10 anos (Tabela 1). Todos pertenciam à categoria 1 de Jastreboff, ou seja, zumbido com alto impacto na qualidade de vida, sem perda auditiva clinicamente importante.
Tabela 1. Características dos pacientes incluídos no estudo.
Critérios de inclusão e exclusão
Os critérios de inclusão adotados para este estudo foram os seguintes:
1. pacientes com zumbido constante e prejuízo importante na qualidade de vida.
2. pacientes previamente submetidos ao protocolo de investigação médica do zumbido adotado rotineiramente no serviço.
3. ausência de controle do zumbido com o tratamento específico da doença de base ou com medicamentos sintomáticos.
4. consentimento do paciente em participar da pesquisa através da assinatura do termo de consentimento pós-informado.
Os critérios de exclusão foram:
1. presença de distúrbio emocional importante (ansiedade generalizada, síndrome do pânico, depressão ou esquizofrenia).
2. perda auditiva clinicamente significativa na opinião do paciente, com indicação de prótese auditiva convencional.
Método
A interferência do zumbido na qualidade de vida foi avaliada em quatro atividades diárias: sono, concentração, equilíbrio emocional e atividade social. O incômodo causado pelo zumbido foi avaliado através da escala analógico-visual contendo números de 0 a 10, onde 0 foi considerado ausência de incômodo e 10, incômodo no grau máximo referido pelo paciente. Notas de 0 a 3 são consideradas como zumbido leve, de 4 a 7 como zumbido moderado e de 8 a 10 como zumbido severo. Entre os 10 pacientes, 8 classificaram seu zumbido como severo e 2 como moderado.
Todos os pacientes receberam informações em grupo, dadas em forma de aula pela pesquisadora principal com duração de 120 minutos. Essa aula incluiu informações sobre os seguintes itens: os tópicos relevantes do modelo neurofisiológico, princípios da TRT (aconselhamento mais enriquecimento sonoro), fases da habituação da reação e da percepção, categoria dos pacientes, função do gerador de som e necessidade de acompanhamento por 18 meses.
Após essa aula contendo as informações básicas do aconselhamento terapêutico, cada paciente passou por uma sessão individual para aprender a usar o gerador de som. Todos os pacientes usaram geradores de som bilaterais e retroauriculares da marca Silent Star, acoplados a moldes abertos padronizados. (Figuras 2 e 3).
O acompanhamento foi padronizado em consultas de 30 minutos, feitas com 1, 3, 6, 12 e 18 meses após a colocação dos aparelhos. Em cada acompanhamento, o zumbido era reavaliado e o aconselhamento terapêutico enfocava apenas as dúvidas de cada paciente. Pela subjetividade do sintoma, o acompanhamento foi feito sempre com base em dois parâmetros distintos: 1. avaliação subjetiva do paciente nas opções: abolição do zumbido, melhora parcial, inalterado ou pior; 2. a nota da escala análogo-visual.
A avaliação final dos resultados considerada para este trabalho foi a de 18 meses de tratamento.
Resultados
Os resultados serão descritos separadamente para cada parâmetro utilizado, mas podem ser visualizados em conjunto na Figura 4:
1. adotando-se a avaliação subjetiva do paciente entre as possibilidades "abolição", "melhora", "inalterado" ou "piora", 6 pacientes referiram melhora do zumbido, 3 permaneceram inalterados e 1 referiu piora.
2. adotando-se a nota da escala análogo-visual, obtivemos melhora do escore em 8 pacientes, enquanto 2 permaneceram com o mesmo escore.
Não houve relação dos resultados com o sexo, idade ou tempo de zumbido referido pelos pacientes.
Figura 1. Esquema representando o modelo neurofisiológico de Jastreboff.
Figura 2. Aparência externa do gerador de som Silent Star.
Figura 3. Exemplo de molde aberto, evitando o efeito de oclusão do meato acústico.
Figura 4. Comparação de resultados após 18 meses de TRT, considerando-se dois critérios de avaliação: a opinião do paciente e a nota da escala análogo-visual (EAV).
Discussão
Desde o desenvolvimento do modelo neurofisiológico do zumbido (2), a aplicação da TRT vem crescendo rapidamente em vários centros internacionais, promovendo uma das melhores taxas de alívio do zumbido já obtidas por qualquer tratamento (6-11). Seu objetivo é reduzir o incômodo associado ao zumbido e a sua percepção propriamente dita.
A prática otorrinolaringológica é centrada no controle clínico ou cirúrgico de doenças objetivas e o zumbido é certamente uma exceção a essa regra, requerendo abordagens diferentes. Muitos otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos atendem freqüentemente pacientes com zumbido sem ter familiaridade com a TRT. Não é raro que pensem que TRT é semelhante ao mascaramento (quando, na realidade, são métodos opostos) ou que se restringe ao uso de um aparelho no ouvido (quando é uma associação obrigatória entre orientação e alguma das formas de enriquecimento sonoro). Felizmente, nos últimos anos tem havido um crescente interesse dos profissionais para a prática do tratamento do zumbido em geral e da TRT em particular.
Avaliação do paciente
Antes de se indicar TRT, é fundamental que o paciente seja avaliado por um otorrinolaringologista para um exame completo. Com certa freqüência, o zumbido é um sintoma de alguma afecção otológica, metabólica, neurológica, cardiovascular, odontológica ou psicológica que pode ser tratada clínica ou cirurgicamente, mesmo que muitos casos ainda sejam diagnosticados como idiopáticos (12-16).
Também é importante investigar a presença concomitante de hipersensibilidade a sons nos indivíduos com zumbido, principalmente a hiperacusia e a fonofobia, pois esses casos podem requerer uma abordagem diferente. A hiperacusia manifesta-se por intolerância a vários sons do meio ambiente (ex: água corrente, ventilador, refrigerador, lava-louças, carro, telefone, campainha, portas fechando), de baixa ou moderada intensidade, independente das freqüências que os compõem (6, 17-22). Sua fisiopatologia é incerta, provavelmente relacionada ao sistema eferente e/ou à taxa de serotonina. Na fonofobia (atualmente chamada de misofonia), apenas determinados sons produzem esse desconforto, dependendo do seu significado ou associação, enquanto outros sons agradáveis (música, por exemplo) podem ser tolerados em intensidades muito mais altas (6,22,23). Alguns pacientes podem apresentar associação de hiperacusia e fonofobia em diferentes graus.
Após anamnese e exame físico otorrinolaringológico, solicitamos a investigação audiológica básica, composta pela audiometria tonal e vocal, imitanciometria, pesquisa de reflexo estapediano e limiar de desconforto (este último torna-se mais importante nos casos de hipersensibilidade a sons). As provas de caracterização do zumbido (freqüência, intensidade e limiar mínimo de mascaramento) podem ser interessantes em termos de pesquisa, mas não são fundamentais para o diagnóstico etiológico e nem para o tratamento.
Indicação da TRT
Existem várias formas de tratamento do zumbido. Embora seja largamente utilizada, a TRT deve ser indicada nos casos idiopáticos (após exaustiva investigação diagnóstica) ou quando a etiologia identificada não é passível de tratamento clínico ou cirúrgico. É necessário cuidado com a indicação excessiva da TRT, uma vez que essa abordagem é longa e pode ser substituída por um tratamento mais dirigido quando uma etiologia passível de tratamento específico é diagnosticada pelo otorrinolaringologista.
Em nossa prática, atualmente contra-indicamos a TRT em pacientes com alterações psiquiátricas, uma vez que a orientação é mais difícil de ser compreendida ou aceita. Assim, sugerimos avaliação psiquiátrica com controle da doença de base e iniciamos o tratamento do zumbido somente após o controle do paciente. Hesse et al (2001) sugerem a internação de tais pacientes, associando-se TRT com psicoterapia intensiva, porém não temos essa experiência (24).
O aconselhamento terapêutico
O aconselhamento terapêutico é fundamental para alcançar a fase de habituação da reação ao zumbido, que é o objetivo inicial do tratamento, onde o zumbido ainda está presente, porém não mais incomoda o paciente. Nem sempre é fácil alterar as idéias negativas do paciente, sobretudo aquelas referentes à falta de recursos para tratamento. Porém, é fundamental tentarmos a eliminação das associações negativas, já que o processo da habituação não ocorre para sons que possam significar algum perigo. Isso é feito com uma explicação simples, em linguagem leiga, do modelo neurofisiológico e dos mecanismos do zumbido, mostrando-lhe que suas preocupações são desnecessárias por estarem baseadas em informações errôneas, além de serem as principais causas de impedimento da habituação como um processo natural.
Em geral, o paciente demora alguns meses para notar os efeitos que o tratamento provoca através da plasticidade neuronal. Portanto, precisa entender que perseverança é a palavra-chave nesse tipo de tratamento, devendo sentir-se apoiado e incentivado a prosseguir, reconhecendo cada passo dado em direção ao seu objetivo final.
O enriquecimento sonoro
O segundo objetivo do tratamento é alcançar a habituação da sua percepção. Apesar do aconselhamento terapêutico ser uma parte importante e insubstituível do tratamento, na prática a habituação da percepção do zumbido não acontece automaticamente, mesmo quando o paciente compreende e aceita que não apresenta nenhum problema grave de saúde. Por isso, é necessário lançar mão do enriquecimento sonoro contínuo e por longo prazo, como veremos a seguir. Então, para se completar o processo da habituação, é fundamental que o paciente evite ambientes silenciosos.
O enriquecimento sonoro pode ser realizado de várias maneiras, mas o princípio é sempre o mesmo: diminuir o ganho obtido ao longo das vias auditivas, o que pode ser obtido através do uso de som neutro, estável e de baixa intensidade (mais baixa do que a percepção do próprio zumbido). Assim, a atividade neuronal evocada pelo zumbido, que é distinta daquela evocada pelos sons externos, passa a ser menos contrastante em relação à atividade neuronal contínua nas vias auditivas, facilitando o processo da habituação.
Atualmente, existem três formas recomendadas para o enriquecimento sonoro (25):
a. uso de sons ambientais através de CDs, fontes de água ou geradores portáteis com sons da natureza ou músicas suaves, som de ar condicionado, ventilador, etc. É a maneira mais acessível aos pacientes.
b. uso de sons ambientais (como os da opção a) amplificados por prótese auditiva convencional. É a maneira indicada para pacientes com perda auditiva clinicamente importante.
c. uso de geradores de som de banda larga adaptados a cada ouvido, geralmente retrococleares e com molde aberto para não ocluir o meato acústico externo (Ex: Silent Star). É a maneira mais prática e eficiente. Mesmo que o zumbido seja unilateral, os geradores devem ser adaptados bilateralmente para estimular as vias auditivas em conjunto. A intensidade do som deve ser sempre menor do que a do zumbido, evitando-se ao máximo mascará-lo, já que o mascaramento desse sinal impede o processo da habituação. Além disso, o molde também deve ser sempre bem aberto para permitir a entrada dos sons ambientais, que são muito importantes no processo (desaconselhamos os geradores intracanais pelo efeito de bloqueio do CAE). Para o melhor resultado em pacientes da categoria 1, o volume dos geradores de som deve ser colocado no chamado "ponto de mistura", ou seja, aquele que interfere com o som do zumbido, porém sem nunca mascará-lo. Na vigência de hipersensibilidade auditiva, o volume do gerador de som deve ser ainda menor, de acordo com cada caso.
TRT versus mascaramento
É importante frisar aqui que mascaramento e habituação são processos completamente diferentes e não devem ser confundidos. O primeiro, apesar de promover um alívio rápido em alguns pacientes, não promove nenhuma mudança em termos de neuroplasticidade, por isso o zumbido geralmente retorna logo após a retirada do som mascarador, fazendo com que esse tratamento precise ser usado por longo período. A habituação é um processo que, embora lento para iniciar, tem a proposta de alcançar resultados definitivos após um período de tempo determinado, que pode variar de 12 a 18 meses, pela vantagem de alterar as conexões das vias auditivas com o sistema límbico e o sistema nervoso autônomo. Uma vez que o processo da habituação já esteja estabelecido após alguns meses, o uso dos geradores de som já não é mais necessário. Como medida de proteção, os pacientes devem continuar evitando o silêncio, mas de resto, devem levar uma vida normal, já que o zumbido aos poucos deixa de ser um problema.
O mascaramento é contra-produtivo quando se pretende alcançar a habituação. O motivo para se evitá-lo é baseado em princípios bem conhecidos de neurofisiologia e psicologia: nunca podemos aprender (ou reaprender) algo que não é detectado e, portanto, se o zumbido for mascarado, deixa de ser percebido pelo córtex abruptamente, impedindo o processo gradual da habituação.
O tempo de tratamento
Por definição, o tratamento do zumbido baseado na habituação precisa produzir mudanças nas conexões neuronais do sistema auditivo, o que não ocorre em um único dia. Alguns pacientes se habituam rapidamente, porém na maioria das vezes o processo completo demora 12 a 18 meses.
Normalmente, esse processo tem altos e baixos, sendo que o paciente pode desanimar-se por alguns períodos, principalmente quando a ansiedade é importante, porém os que cumprem o processo notam avanços progressivos que são muito estimulantes.
Nossos resultados
Até o final de 1998, mais de 1000 pacientes foram tratados no Centro de Zumbido e Hiperacusia de Baltimore, nos Estados Unidos (10). Dentre os pacientes que completaram o tratamento até o final, 84% observaram uma melhora importante. Muitos deles continuavam ouvindo algum zumbido por menos de 10% do tempo em que o notavam anteriormente, sendo que quando aparecia, não mais incomodava. A esta altura, o zumbido já havia deixado de ser um problema para eles e já não usavam mais os geradores.
Os resultados foram semelhantes no Centro de Zumbido e Hiperacusia de Londres (8), com mais de 1500 pacientes. Em Madrid, os resultados de 56 pacientes mostram que em 61% dos casos o zumbido deixou de ser um problema para o paciente, enquanto outros 23% notaram melhora importante, embora sem desaparecimento do zumbido (9). Embora a casuística de pacientes submetidos à TRT em nosso Grupo de Zumbido ainda seja pequena quando comparada à dos centros de Baltimore e Londres, nossos resultados iniciais apontam melhora do zumbido em 60 a 80% dos casos, dependendo do critério adotado.
Infelizmente, cerca de 15% dos pacientes demoram muito para beneficiar-se do tratamento e, inclusive, alguns chegam a dizer que estão piores. Freqüentemente são pessoas em tratamento de outras doenças concomitantes ou com problemas emocionais importantes. Às vezes, o processo de habituação não se inicia devido ao excesso de tensão e angústia e, nesses casos, a ajuda de um psicólogo bem versado em TRT pode ser inestimável. Em nosso estudo, a única paciente que referiu piora do zumbido (embora mantivesse a mesma nota na escala análogo-visual) passou por uma fase de doença terminal de seu marido que culminou com sua morte, entrando em quadro depressivo na vigência da TRT. Por outro lado, uma outra paciente que referiu melhora no final do tratamento, passou por uma fase de piora importante do zumbido, a qual justificou por um importante desentendimento com a filha.
O tratamento de sintomas subjetivos nunca é uma tarefa fácil. Infelizmente, ainda são comuns algumas idéias erradas a respeito do zumbido, como por exemplo, a da impossibilidade de ajudar o paciente e a da necessidade de se aprender a conviver com o problema. Embora o zumbido ainda seja considerado um sintoma sem cura definitiva, existem opções de tratamento para aliviá-lo e que devem ser oferecidas ao paciente.
A TRT é certamente uma boa opção, desde que corretamente indicada. Embora alguns casos melhorem apenas com o aconselhamento terapêutico, não sendo necessário mais nenhuma abordagem com enriquecimento sonoro, o inverso não é verdadeiro. Isto quer dizer que o enriquecimento sonoro sozinho, sem o aconselhamento terapêutico, provou ser absolutamente inútil, inclusive prejudicial, uma vez que a expectativa do paciente não é adequada às exigências da TRT. Assim, vale a pena reforçar a necessidade de submeter o paciente ao tratamento integral, como preconizado por Jastreboff, para alcançar uma taxa de sucesso semelhante.
Para o futuro, seria extremamente benéfico o desenvolvimento de mecanismos para acelerar o processo de habituação ao zumbido requerido no tratamento da TRT. Enquanto este futuro não chega, é muito importante que os profissionais se motivem a ajudar os pacientes que sofrem com o zumbido com os métodos disponíveis no presente.
Quadro 1. Definições das cinco categorias de pacientes(2).
OBS: Hiperacusia = hipersensibilidade importante aos sons ambientais associada a LDL menor do que 100dB; kindling = piora prolongada do zumbido/hiperacusia após exposição sonora até o dia seguinte.
Quadro 2. Forma de indicação de TRT de acordo com a categoria do paciente. Note que em todos os casos o aconselhamento terapêutico é associado ao enriquecimento sonoro.
Nota dos autores: na impossibilidade do paciente, os geradores de som são substituídos por sons ambientais.
Conclusões
A TRT mostrou-se um método bastante eficiente no controle do zumbido. Embora a amostra deste estudo seja limitada pelo número de doações disponibilizadas pelo patrocinador, pudemos notar melhora em 60% (avaliação subjetiva) a 80% dos pacientes (escala análogo-visual).
Os autores ressaltam cuidados importantes para a obtenção de bons resultados: 1. a prévia investigação otorrinolaringológica para o diagnóstico do zumbido, com exclusão de doenças tratáveis por outros métodos; 2. a formação do profissional para realizar a TRT; 3. a desmistificação do zumbido para o paciente (aconselhamento terapêutico) tem um papel fundamental no processo de habituação; 4. o enriquecimento sonoro é feito de maneira diferente de acordo com a categoria do paciente (0 a 4); 5. na impossibilidade financeira ou estética do paciente, o enriquecimento sonoro pode ser feito com sons ambientais; 6. evitar indicação excessiva de TRT.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer a empresa GN Resound (em especial aos Srs. Werner Schwendener, Antonius Fleming Krieger e Eliana Coutinho) pela doação dos aparelhos, permitindo a realização deste estudo em hospital público.
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* Professora Colaboradora Médica da FMUSP e Responsável pelo Grupo de Zumbido da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
** Fonoaudióloga Chefe do Setor de Fonoaudiologia da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP. Mestranda na área de Fisiopatologia Experimental pela FMUSP.
*** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
Trabalho desenvolvido na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Endereço para correspondência: Dra. Tanit Ganz Sanchez - Rua Pedroso Alvarenga, 1255 cj 27 - Itaim Bibi - São Paulo / SP - CEP: 04531-012 - Telefone: (11) 3167-6556 - Fax: (11) 3079-6769 - Email: tanitgs@attglobal.net
Artigo recebido em 9 de novembro de 2001. Artigo aceito em 22 de novembro de 2001.