Introdução
A estenose laríngea é definida como um estreitamento cicatricial parcial ou completo da endolaringe, podendo ser congênito ou adquirido. Sua incidência tem aumentado nas últimas duas décadas, principalmente em decorrência da maior utilização da intubação orotraqueal (IOT) em unidades de terapia intensiva neonatais e pediátricas (1).
As estenoses laríngeas congênitas são decorrentes de uma inadequada recanalização do lúmen laríngeo após completar a fusão epitelial ao final do terceiro mês de gestação (10a semana) (2). Podemos dividí-las em três formas de apresentação: atresia congênita, membranas laríngeas e estenose subglótica congênita. A atresia congênita de laringe pode ocorrer em qualquer nível da laringe, possui baixa incidência e elevada mortalidade. As membranas laríngeas congênitas são responsáveis por 5% das anomalias congênitas da laringe, acometendo em 75% das vezes a região glótica. A estenose subglótica congênita é definida como diâmetro subglótico inferior a 4mm no recém-nascido a termo. Constitui-se na terceira causa mais freqüente de anomalias congênitas da laringe (2).
As causas adquiridas podem ser divididas em traumas externos e internos. Dentre os primeiros, podemos citar os traumas cervicais em acidentes automobilísticos, as lesões de ciclistas pela colisão com fios de pipa, agressões com objetos corto-contusos ou penetrantes e lesões por sufocação ou enforcamento. As estenoses causadas por trauma endolaríngeo são principalmente aquelas associadas com IOT prolongada, além de lesões decorrentes do uso das sondas nasogástricas e queimaduras físicas ou químicas. Causas infecciosas como a tuberculose, sífilis, hanseníase, micoses profundas e difteria são raras em nossos dias. Doenças inflamatórias crônicas como sarcoidose, lupus eritematoso sistêmico, doença de Behçet, granulomatose de Wegener, policondrite recidivante, além de pênfigo, amiloidose e epidermólise bolhosa também têm sido associadas com as estenoses laríngeas (2-6).
O objetivo desse trabalho foi analisar os dados de pacientes pediátricos com estenose laríngea, dando ênfase a: idade de aparecimento, causa e fatores relacionados, grau e localização anatômica, bem como as formas de tratamento e os resultados alcançados.
Material e Métodos
Foram revisados os prontuários de crianças e adolescentes tratados na Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista com diagnóstico de estenose laríngea no período de janeiro de 1985 a dezembro de 1999. Foram excluídos os pacientes com idade igual ou superior a 18 anos e os que não tiveram seguimento mínimo de 12 meses. O estudo incluiu os casos de estenose laríngea severa, com grau de insuficiência respiratória suficiente para requerer um ou mais dos seguintes tratamentos: IOT, dilatação endoscópica, traqueotomia, microcirurgia endolaríngea ou laringotraqueoplastia. Consideramos sucesso terapêutico a decanulação de crianças traqueotomizadas ou ausência de dispnéia aos esforços físicos; o insucesso foi considerado na impossibilidade de decanulação.
Resultados
Foram identificados 25 pacientes pediátricos com estenose laríngea acompanhados neste hospital no período em estudo. A idade de início dos sintomas variou entre 2 dias e 17 anos. Foram encontradas 14 crianças do sexo feminino e 11 do sexo masculino. A distribuição etária e entre os sexos é mostrada no Gráfico 1.
A etiologia mais predominante foi a estenose adquirida (22 casos; 88%), sendo 21 casos decorrentes da IOT e um secundário a trauma laríngeo externo. A estenose congênita ocorreu em três casos (12%), sendo dois de estenose subglótica congênita e um de membrana laríngea. O Gráfico 2 mostra a distribuição das causas da estenose.
Analisando as 21 crianças com estenose causada pela IOT, observamos que o tempo médio de permanência do tubo orotraqueal antes do surgimento dos sintomas de estenose foi de 23,9 dias (Gráfico 3). Os motivos que levaram a IOT neste grupo foram infecção sistêmica em 71,4% e traumatismo crânio-encefálico em 14,3%. O número de intubações a que estas crianças foram submetidas está representado no Gráfico 4.
Em relação à localização da estenose, 96% dos casos apresentavam o estreitamento do diâmetro interno da laringe ao nível da região subglótica e 4% demonstraram acometimento glótico (membrana laríngea).
O grau da estenose foi estabelecido com a utilização de um ou mais dos seguintes exames: tomografia computadorizada, ressonância magnética, endoscopia flexível e laringoscopia direta com endoscopia rígida. Em 23 casos a obstrução era superior a 90% da luz laríngea e nos outros dois casos, entre 70 e 90%.
Foi utilizada traqueotomia antes da cirurgia definitiva em 92% das crianças. Laringotraqueoplastia com laringofissura anterior e interposição de cartilagem foi realizada em 13 pacientes (52%), havendo necessidade de dilatação endoscópica no pós-operatório tardio em dois destes casos. Em oito casos, devido à doença de base ou condições clínicas da criança, foi realizada apenas a traqueotomia, com reavaliações periódicas e decanulação após crescimento. Três pacientes foram tratados apenas com dilatação endoscópica e um paciente com membrana laríngea anterior foi submetido a cirurgia endoscópica para desfazer a referida membrana. O resumo do tratamento utilizado é mostrado no Gráfico 5.
Atualmente, dos 25 pacientes, seis permanecem com traqueotomia, sendo dois casos de insucesso cirúrgico, dois de contra-indicação de decanulação e dois com cirurgia a ser programada.
Gráfico 1. Distribuição etária (n=25).
Gráfico 2. Etiologia (n=25).
Gráfico 3. Tempo de intubação (n=21).
Gráfico 4. Número de intubações (n=21).
Gráfico 5. Tratamento utilizado (n=25).
Discussão
Várias são as classificações propostas para a estenose laríngea, o que nos faz pensar que nenhuma delas é totalmente perfeita. A mais conhecida é a descrita por COTTON (1) em 1984 que classifica em grau 1 aquelas com envolvimento menor que 70% da luz laríngea, grau 2 com envolvimento entre 70 a 90%, grau 3 com luz menor que 10% do normal e grau 4 para estenoses completas. Em nosso estudo, utilizamos esta classificação.
Duas outras classificações também podem ser utilizadas. April et al (1992) classificam em classe I aquelas estenoses onde a luz possui diâmetro maior que 2,7 mm, classe II quando a luz é inferior a 2,7 mm e classe III quando não há luz laríngea (7). Estes autores utilizam o telescópio rígido de 2,7 mm como instrumento de medida. MCCAFFREY (1992) propõe outra classificação baseada na localização anatômica e na extensão da estenose (8). Este autor classifica como estágio 1 aquelas estenoses com tamanho vertical menor que 1 cm, confinadas a subglote ou a traquéia; estágio 2 aquelas com extensão maior que 2 cm, localizadas apenas na subglote; estágio 3 estenoses da subglote que alcançam a traquéia, livrando a glote; e estágio 4 aquelas estenoses que acometem a glote com fixação ou paralisia de uma ou ambas as pregas vocais.
Há vários trabalhos publicados tentando associar a IOT prolongada com o desenvolvimento de estenose em crianças (9-11). A duração da intubação não nos parece ser o único fator envolvido no surgimento de lesões laríngeas, uma vez que estas podem estar presentes já na primeira semana de intubação (9,10). O tamanho inadequado do tubo traqueal e a presença de múltiplas intubações são fatores importantes (11). Em nosso estudo, identificamos que a maioria das crianças permaneceu de uma a quatro semanas intubadas e apresentava duas ou mais intubações. Outros autores mostraram ainda diminuição dos casos de estenose após utilização de tubos menores e de sua correta fixação, prevenindo extubações acidentais (12,13).
Medidas visando diminuir a incidência e a gravidade das lesões endolaríngeas decorrentes da IOT têm ganhado importância crescente. Vários autores têm proposto cuidados especiais com crianças intubadas. FERDINANDE; KIM (14) sugerem utilização de balonetes com alto volume e baixa pressão, suporte ventilatório com baixas pressões de ar, monitoramento das pressões dos balonetes, prevenção de traumas durante a intubação evitando-se o uso de guias metálicos. Outras medidas propostas por aqueles autores são a prevenção de lesão laríngea pela diminuição da movimentação do tubo orotraqueal, uso adequado de antibiótico para prevenir infecções, escolha correta entre intubação translaríngea ou por traqueotomia, além de estabilização hemodinâmica do paciente.
ZALZAL e COTTON propõem outras medidas para evitar as estenoses laríngeas adquiridas (2): explorar precocemente fraturas laríngeas, evitar traqueotomia alta ou cricotireoidotomia, evitar grandes ressecções na parede traqueal durante traqueotomia, realizar IOT em pacientes relaxados e em condições ideais por profissionais habilitados. Sugerem ainda, quando possível, a intubação nasotraqueal em detrimento a orotraqueal por limitar o diâmetro da cânula, permitir melhor fixação da mesma, além de melhorar a higienização da cavidade oral.
Dentre as opções de tratamento para as estenoses laríngeas, as reconstruções cirúrgicas, segundo COTTON, devem ser consideradas apenas nas quais o uso de traqueotomia se faz necessário. Muitas técnicas cirúrgicas têm sido empregadas, envolvendo abordagens endoscópicas ou externas (1).
Dentre as técnicas endoscópicas, as ressecções de membranas glóticas congênitas são amplamente utilizadas com resultados satisfatórios (2). A dilatação é útil em algumas situações, principalmente quando usada precocemente. A microcauterização, criocirurgia ou utilização Laser CO2 têm sido utilizadas para remoção de tecidos cicatriciais com resultados variáveis (2). Alguns autores limitam a utilização da abordagem endoscópica para casos com estenose grau 1 e alguns casos com estenose grau 2 de Cotton (1). Zalzal e Cotton (2) contra-indicam o procedimento endoscópico quando a estenose é circunferencial, com estenoses com mais de 1 cm no diâmetro vertical, com tecido fibrótico interaritenoídeo, quando há infecção bacteriana traqueal, quando há estenose laringotraqueal combinada ou quando há alterações estruturais da cartilagem.
As técnicas externas para correção de estenoses laríngeas estariam indicadas para estenoses graus 3 e 4 de Cotton e para algumas estenoses grau 2 (2). Devemos sempre descartar o acometimento de pregas vocais associado à estenose laríngea na avaliação pré-operatória, além de excluir casos com doenças neurológicas e pulmonares. O objetivo final destas técnicas cirúrgicas é a decanulação precoce além de se obter boa qualidade vocal.
A laringofissura associada ou não com a cisão posterior da cartilagem cricóide, utilizando enxertos ou retalhos para manter a luz laríngea é o método mais utilizado atualmente com ou sem molde para sustentação tecidual. Em nossas crianças, o principal molde cartilaginoso utilizado foi a cartilagem costal por sua fácil obtenção, ausência de seqüelas funcionais e boa qualidade da cartilagem, o que também é relatada na literatura (2,15). FREELAND utilizou retalho ósteo-muscular (hióide-esternohióide) em oito pacientes, sendo que em quatro crianças os resultados foram bons (16). Em casos com estenose grau 4 com extensa área estenótica, a laringotraqueoplastia término-terminal pode ser utilizada, e apesar das dificuldades técnicas quando usada em crianças com menos de 10 anos de idade, apresenta bons resultados (2).
Outra dúvida freqüente é o momento ideal para o tratamento cirúrgico. Historicamente, recém-nascidos e crianças com EL recebem uma traqueotomia até terem alcançado peso suficiente para sofrerem uma reconstrução laringotraqueal ou outro procedimento cirúrgico (17). Esta terapêutica conservadora de aguardar o desenvolvimento da criança não é desprovida de riscos. FEOROU; COTTON (18) relataram uma taxa de mortalidade de 24% em crianças com estenose laríngea grave com traqueotomia. A maioria dos óbitos foi devido a decanulação acidental e formação de rolha de secreção na cânula de traqueostomia. Desta forma, julgamos que o melhor período para a realização da cirurgia é aquele em que a criança reúna condições clínicas para o procedimento, não adotando um único critério para esta definição.
Conclusões
Embora as estenoses laríngeas sejam entidades com baixa incidência e encontrada mais em hospitais com nível terciário de atendimento, apresentam dificuldades diagnósticas e terapêuticas, com índices variáveis de sucesso pós-operatórias. Os principais objetivos do tratamento cirúrgico são a manutenção da via aérea pérvea, voz aceitável e laringe competente que evite aspirações.
A intubação orotraqueal é a principal causa das estenoses laríngeas em pediatria. As crianças nos dois primeiros anos de vida, com múltiplas IOT e com intubação por períodos prolongados são as de maior risco para o desenvolvimento das estenoses subglóticas. Os tratamentos devem ser individualizados, pois são muitas as opções terapêuticas, entretanto nas estenoses adquiridas, a traqueotomia e a laringotraqueoplastia foram os procedimentos mais utilizados em nosso serviço.
Referências Bibliográficas
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* Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Ex-Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu.
*** Professor Livre Docente da Disciplina de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu.
Trabalho realizado pela Disciplina de ORL e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP - São Paulo.
Trabalho apresentado no 35º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia em Natal /RN, 16 a 20 de outubro de 2000.
Endereço para correspondência: João Aragão Ximenes Filho - Avenida Rebouças, 1101/92 - São Paulo / SP - CEP 05401-150 - Telefone: (11) 3063-0871 - E-mail: joaoximenes@ig.com.br
Artigo recebido em 13 de novembro de 2001. Artigo aceito em 12 de janeiro de 2002.