INTRODUÇÃO
O consumo de cocaína intensificou-se em nossa sociedade nesta última década. Um dos fatores responsáveis por isto foi a popularização do crack, cocaína fumável, que é absorvida rapidamente pelos vasos pulmonares, causando imediata euforia, que dura em média 20 minutos apenas. Isso faz com que o usuário use novamente a droga em um curto espaço de tempo, levando-o rapidamente à dependência.
Esta característica da droga associada ao seu baixo custo e fácil obtenção fez com que seu uso fosse difundido a uma camada social mais pobre e vulnerável, sem acesso prévio à cocaína. Devido às características desse principal grupo de usuários, classe econômica baixa e pouco acesso aos serviços de saúde, há uma escassez de informações acerca dos efeitos crônicos sistêmicos ou locais do uso de crack, principalmente no que diz respeito às manifestações otorrinolaringológicas. O crack é sintetizado a partir do aquecimento da solução de cocaína e água, misturada a soda cáustica, que forma um precipitado sólido que quando seco forma a “pedra” da droga (1). Na literatura a maioria dos trabalhos científicos que discutem as alterações locais causadas pelo fumo de crack referem-se apenas a lesões agudas, diferindo conforme o seu meio de administração.
As principais lesões otorrinolaringológicas agudas descritas são queimaduras de lábios, cavidade oral, orofaringe, epiglote e laringe. Na cocaína em forma de crack essas queimaduras são geralmente causadas pela inalação de vapor da droga em alta temperatura ou inalação de partículas metálicas incandescentes, que fazem parte do “cachimbo”.
Como a droga causa anestesia local, os usuários são ainda mais expostos a tais lesões (2-4). As principais lesões locais relacionadas ao consumo crônico desta droga, descritas da literatura médica, são pulmonares, tais como os efeitos farmacológicos locais da cocaína sobre o epitélio brônquico, a perda da neuroregulação da função pulmonar, edema pulmonar, hemorragia alveolar, barotrauma, reações de hipersensibilidade e doença pulmonar intersticial (5,6). FLIGIEL et al. compararam lesões traqueobrônquicas causadas pelo uso do crack, tabaco, maconha e a associação destas, mostrando que o uso de maconha e tabaco associados produzem significantes alterações na mucosa brônquica. Já o fumo de crack isoladamente ou associado à maconha, aparentemente não mostrou ser importante causador de lesão traqueobrônquica, porém sua associação com o fumo de tabaco ampliou as lesões brônquicas causadas pelo fumo isolado de tabaco (7). Sabe-se que um dos efeitos instantâneos causados pelo fumo do crack é a ativação da circulação de leucócitos polimorfonucleares (PMN), aumentando sua capacidade bactericida, anti-tumoral e citotóxica, concomitante a uma produção elevada de interleucina 8, um potente ativador de PMN (8), Outro efeito causado é a alteração da freqüência e da harmonia dos batimentos ciliares do epitélio respiratório (9).
Essas alterações associadas a potente vasoconstrição prolongada causada pela droga (10,11) possivelmente podem contribuir para as lesões crônicas no epitélio do trato respiratório. Quanto à cocaína injetável ou aspirável, as principais lesões otorrinolaringológicas agudas relacionam-se com lesão coclear e efeitos teratogênicos.
As lesões crônicas rinológicas causadas pelo uso de cocaína aspirável, como as perfurações de septo nasal e palato, são bem descritas pela literatura médica (12-15). O objetivo deste estudo é de, através de anamnese detalhada, exame otorrinolaringológico completo e nasofibrolaringoscopia, avaliar os efeitos deletérios do uso crônico de crack sobre o trato aerodigestivo alto (cavidade oral, faringe e laringe), correlacionando-os com o tempo e quantidade de uso da droga.
PACIENTES E MÉTODOS
Foram selecionados 18 pacientes de acompanhamento pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com história de uso de crack. Estes pacientes, após primeira consulta no GREA, foram convidados a fazer uma avaliação otorrinolaringológica, sendo então submetidos no mesmo dia, a anamnese, seguindo formulário específico, estabelecendo-se o tempo e quantidade de uso da droga e associação com outras drogas, as principais queixas otorrinolaringológicas prévias ao consumo da droga, para que se fosse estabelecido apenas as queixas relacionadas ao uso da droga e as queixas otorrinolaringológicas atuais, além de hábitos pessoais e doenças associadas. Os pacientes foram então encaminhados ao ambulatório da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, para realização de exame físico otorrinolaringológico completo, compreendido em otoscopia, rinoscopia anterior e oroscopia, seguido de uma nasofibrolaringoscopia com fibroscópio flexível. Os dados obtidos foram analisados por meio de técnicas descritivas, uma vez que não havia interesse em se comparar grupos de pacientes. Parâmetros como soma, média aritmética, média ponderada, desvio padrão da média, freqüência absoluta e relativa foram utilizados com auxílio do software Excel 5.0 for Windows, para elaboração de gráficos descritivos.
RESULTADOS
Foram avaliados um total de 18 pacientes, 15 do sexo masculino e 3 do sexo feminino, com média de idade de 28,2 anos, todos com história de uso crônico de crack. Oito pacientes apresentavam história de uso recente da droga. O restante apresentava-se abstinente há pelo menos três semanas (Tabela 1). A média do período de consumo da droga foi de 44 meses, numa freqüência média de 6 a 7 pedras de crack por dia. Deve-se ressaltar que, evidentemente, cada paciente entrevistado possuía um determinado padrão de consumo da droga, alguns ficavam abstinentes por longos períodos, outros só usavam crack nos finais de semanas, por exemplo. Pouquíssimos pacientes referiram história de consumo diário da droga, portanto, a quantidade de uso descrita na Tabela 1 é apenas uma média aproximada. A associação do uso de crack a outros tipos de droga foi um achado extremamente freqüente (Gráfico 1), assim como o tabagismo.
Apenas 2 pacientes não apresentavam história de tabagismo e nenhum paciente referiu história de etilismo importante. Como antecedentes mórbidos, um paciente referiu história de meningite, leptospirose e hepatite A e uma paciente apresentava antecedente de asma e hipertensão arterial sistêmica, estando em uso de corticoterapia inalatória e sistêmica. As principais queixas otorrinolaringológicas, relativas ao período de consumo do crack (Tabela 2), excluindo- se as queixas otorrinolaringológicas prévias ao uso da droga, foram as relacionadas à garganta e orofaringe. Poucos pacientes referiram sintomas após certo período de abstinência de consumo.
Já as queixas nasais relacionam-se ao período de uso da cocaína da forma inalável. As queixas auditivas, especialmente o zumbido, também foram relacionadas apenas ao período de consumo do crack. Além dos sintomas acima referidos, dois pacientes relataram sensação de anestesia e um paciente relatou ressecamento em orofaringe, durante o uso da droga.
Dois pacientes relataram história de queimadura em orofaringe durante o consumo do crack por cachimbo. Apenas dois pacientes apresentaram alterações incaracterísticas na otoscopia e apenas um paciente apresentou hiperemia a oroscopia. Como já esperado (9-11), alterações em rinoscopia, como hiperemia de mucosa nasal, edema e hipertrofia de cornetos, foram encontradas em pacientes com história de uso de cocaína inalável, principalmente na narina usada para consumo da droga. Um paciente, também usuário de cocaína inalável, possuía uma perfuração em região de septo nasal anterior.
As principais alterações encontradas na nasofibrolaringoscopia (Tabela 3) foram de edema e hiperemia inespecífica em mucosa de orofaringe e laringe, principalmente em região supraglótica, compreendida por epiglote, bandas ventriculares, valéculas, seios piriformes e região glótica, principalmente em cordas vocais. Apenas um paciente apresentou uma lesão cicatricial hiperemiada em corda vocal esquerda. Os achados de hiperemia em epiglote localizaramse principalmente em face laríngea dessa. As outras alterações encontradas na nasofibrolaringoscopia ocorreram em casos isolados, não se repetindo dentre a maioria dos pacientes avaliados. Os pacientes com história de uso crônico de cocaína inalável apresentaram alterações nasais significantes como hipertrofia de corneto, hiperemia e edema de mucosa nasal em 55,5% dos casos, sempre na narina usada para a inalação da droga, indo de acordo ao exame físico. Metade dos pacientes avaliados apresentou desvio de septo nasal, como achado de fibroscopia. Destes, a maioria não referiu sintomas relacionados ao seu desvio de septo.
DISCUSSÃO
A escassez de literatura científica sobre as manifestações otorrinolaringológicas em pacientes com história de uso crônico de crack dificulta a comparação de nossos resultados, não dispondo de um padrão ao qual possa ser defrontado com alguma referência anterior. As principais alterações encontradas pela nasofibrolaringoscopia podem ser sugestivas de lesão provocada pelo uso crônico desta droga, porém a confirmação deste fato é dificultada pelo fato de que 88,9% de nossos pacientes eram tabagistas e sabe-se que o tabagismo crônico provoca lesões semelhantes as encontradas em nossos pacientes. A presença de uma lesão cicatricial hiperemiada encontrada na corda vocal de um dos pacientes provavelmente foi causada pela aspiração de alguma partícula incandescente, que ao entrar em contato com a corda vocal, produziu lesão térmica desta.
Porém o paciente não referiu história compatível com este fato. Outra hipótese plausível é que esta lesão seja apenas um achado inespecífico, visto que esta não se repetiu em outros pacientes.
Os resultados alcançados em nosso estudo não devem ser desprezados, pois certas alterações como a presença de hiperemia em epiglote e aritenóides repetiram- se em mais da metade dos casos, nos fazendo acreditar que talvez estas lesões não sejam apenas achados inespecíficos. Para que estas alterações encontradas em nosso estudo sejam confirmadas como secundárias ao uso crônico de crack faz se necessária a realização de outros estudos avaliando um número maior de pacientes e utilizando um grupo controle de pacientes tabagistas e outro grupo de pacientes não usuários de crack e não tabagistas, desta forma nos possibilitando identificar apenas as lesões causadas pelo uso da droga.
CONCLUSÕES
A presença de hiperemia em supraglote é um achado inespecífico que deve ser valorizado para o diagnóstico de consumo do crack.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Médico Residente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico Doutorando do Curso de Pós Graduação Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo.
*** Médico Preceptor da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Médico Colaborador da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho apresentado no Annual Meeting of American Academy of Otolaryngology – Head and Neck Surgery Foundation, 16 a 19 de setembro de 2001, Denver,
Colorado, EUA.
Suporte financeiro: FAPESP.
Endereço para correspondência: Flávio Augusto Passarelli Prado – Av. Senador Casimiro da Rocha, 834 – São Paulo / SP – CEP 04047-001 – Telefone: (11) 9642-8945
– E-mail: flavioapp@ig.com.br
Artigo recebido em 12 de agosto de 2002. Artigo aceito em 10 de outubro de 2002.