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Ano: 2003  Vol. 7   Num. 4  - Out/Dez Print:
Original Article
Aspectos Emocionais da Criança Portadora de Vestibulopatias: Achados Preliminares Baseados em Desenhos e Histórias.
Emotional Aspects of Vestibular Disease in Children: Preliminary Results
Author(s):
Rosa Maria Rodrigues dos Santos*, Ítalo Roberto Torres de Medeiros**, Roseli Saraiva Moreira Bittar***.
Palavras-chave:
tontura, vertigem, criança, psicologia.
Resumo:

Introdução: Os distúrbios vestibulares na infância estão associados ao desenvolvimento de reações emocionais e altera ções comportamentais que podem prejudicar a inserção da criança em seu meio social. Poucos trabalhos abordam esses aspectos psicológicos relacionados à vivência das tonturas neste grupo de pacientes. Objetivo: Propor algumas considerações a partir de dados provenientes da avaliação psicológica de crianças portadoras de vestibulopatias periféricas ou mistas atendidas no Setor de Otoneurologia da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP. Métodos: Realizamos intervenção psicodiagnóstica em 12 crianças (6 meninos e 6 meninas) com idade entre 5 e 12 anos que contou com entrevistas junto aos pais e à criança, hora lúdica, Pré-bender ou Bender (coordenação viso-motora) e WISC ou Colúmbia (inteligência). Para cada criança foi solicitado um desenho livre e um desenho de uma família qualquer, ambos com história. Resultado: Apenas uma criança apresentou déficit cognitivo e de coordenação viso-motora. As demais tiveram desempenho satisfatório. Referente aos desenhos realizados pelas crianças houve um “padrão” de repetição de aspectos gráficos, como a representação na borda inferior do papel e membros desproporcionais ao restante do corpo. Discussões são feitas quanto aos dados obtidos no desenho livre e histórias – eliciadas por esses desenhos - destas crianças. Conclusão: Há algumas “marcas” de fragilidade decorrentes da forte vivência do desequilíbrio por parte destas crianças, favorecidas e exacerbadas pelo tratamento oferecido a elas no meio familiar. Portanto, intervenções psicol ógicas podem ser necessárias para a reintegração emocional e social.

INTRODUÇÃO

As vestibulopatias na infância são quadros confundidos, por vezes, com distúrbios psicológicos ou neurológicos pelas alterações comportamentais que provocam – tais como isolamento social, apatia, medos incompreensíveis – e pelas dificuldades das crianças na descrição de suas queixas (10).

FORMIGONI et al. (1) encontram as alterações de comportamento como o terceiro sintoma mais freqüente em crianças com vestibulopatias periféricas. Essas crianças e seus pais procuram diversos profissionais em busca de uma explicação para o sofrimento apresentado, que compromete em muitos casos as rela- ções familiares.

FALSETTI (2), ao abordar aspectos subjetivos vinculados a doenças precocemente adquiridas, afirma que a maneira como a doença é significada pela criança e sua família é mais relevante do que a doença em si, marcando profundamente seus discursos e seus comportamentos. As questões emocionais relacionadas às vivências de tonturas e vertigens em crianças não são, no entanto, comumente abordadas na literatura indexada. A mesma escassez é percebida quanto às repercussões destas vivências para o desenvolvimento emocional destes sujeitos, bem como suas implicações na vida familiar e nos resultados das diversas terapêuticas propostas para estes quadros (12). Vários autores citam a fundamental importância do movimento (ato motor) na constituição de funções e noções cognitivas.

PIAGET (3) pontua que a inteligência se origina do desenvolvimento dos esquemas sensório-motores. QUIRÓS (4) aponta que as noções de tempo e de espaço são adquiridas pela organização proprioceptiva, vestibular, visual e cerebelar. A literatura referente as vestibulopatias na infância mostra-se mais atenta às possíveis seqüelas deixadas na fala e na aprendizagem pela incidência precoce de distúrbios vestibulares (5,6,11), mostrando que pela compensa- ção no sistema de equilíbrio, não se evidencia uma relação de causalidade entre as vestibulopatias e distúrbios de aprendizagem em muitos casos (5). Assim, possíveis prejuízos associados às funções cognitivas têm sido mais investigados na abordagem destas crianças em detrimentos dos aspectos psíquicos, também decorrentes da atuação do corpo no mundo.

FREUD (7,8) considera que a gênese do psiquismo humano se fundamenta, de modo bastante relevante, em aspectos corporais, nas sensações e movimentos. Considerações e achados como estes sustentam a pertinência de questionamentos sobre a possível existência de marcas no desenvolvimento psicológico infantil vinculados às vivências de tonturas. O objetivo deste estudo é tecer algumas considera- ções a partir de dados provenientes da avaliação psicoló- gica de crianças com tonturas atendidas no Setor de Otoneurologia da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.

CASUÍSTICA E MÉTODO

Foram avaliadas 12 crianças (6 meninos e 6 meninas), com idade entre 5 e 12 anos, média de 9 anos, com diagnóstico de vestibulopatia. Todas foram submetidas, após avaliação médica para diagnóstico clínico do distúrbio vestibular, à avaliação psicodiagnóstica, que constou de: entrevistas com os pais e a criança; hora lúdica; Pré-bender ou Bender (coordena- ção viso-motora); WISC ou Colúmbia (inteligência). Para cada criança foi solicitado um desenho livre e um desenho de uma família qualquer, ambos com história. Esta população infantil foi entrevistada e avaliada no período de agosto de 1999 a setembro de 2001.

RESULTADOS

Os testes de inteligência e de coordenação visomotora apresentaram-se dentro dos limites de normalidade em onze crianças avaliadas. Somente um paciente com sete anos evidenciou alterações cognitivas e psicomotoras relevantes, tendo sido encaminhado para atendimento especializado em nosso ambulatório (Figura 1).

É interessante ressaltar que sua história destaca vivências que sugerem de modo especial a precocidade do surgimento da vestibulopatia, tais como expressões de “terror” e palidez injustificados no berço. Os dados referentes aos desenhos realizados e suas respectivas histórias foram avaliados e agrupados no sentido de permitir uma melhor exposição dos achados (Tabela 1). Dez dos 12 sujeitos (Grupo 1), todos com mais de 8 anos de idade, evidenciaram a recorrência de equivalências formais, que por sua constância, foram tomadas como um “padrão” gráfico desta amostra (Figuras 2 e 3), a saber:

• Concentraram sua produção no hemisfério inferior da folha.

• Usaram a borda inferior da folha como linha de base para o desenho.

• Desenharam pessoas dotadas de braços muito curtos ou pés desproporcionais ao restante dos corpos representados, exageradamente pequenos ou grandes. Uma criança com relevante queixa de cefaléia, presente também intensamente na família, mostrou ainda o desenho de um pescoço estreitado, afinado (Figrua 3).

• Estes aspectos gráficos se relacionaram às histórias criadas com importantes conteúdos de “rejeição” de uma das personagens pelas demais e de dificuldades de contato social, isolamento.

• No desenho da família, onde todos os aspectos anteriores estiveram presentes, notou-se ainda a criação de histórias que, de modo geral, fizeram referência a conflitos familiares ligados a alguém que, por possuir algum problema ou “fraqueza”, obteve algum tipo de privilégio, mostrando um favorecimento imaginário vinculado à doença. Em 8 dessas crianças (Subgrupo 1A), com idade entre 9 e 12 anos (Figura 3), observou-se um predomínio dos extremos inferior e superior ou o preenchimento da folha com um todo.

As outras duas crianças deste grupo mantiveram os aspectos do padrão, mostrando através de suas histórias ganhos secundários decorrentes da condição médica e tratamento (Subgrupo 1B). Os 2 sujeitos com idade inferior a 8 anos de idade (Grupo 2) (um com 5 e outro com 7 anos, Figura 1) produziram desenhos com orientação espacial e traços da figura humana pouco definida, não evidenciando os aspectos do “padrão”.

A criança mais jovem realizou histórias muito referidas à dinâmica pertinente ao momento edípico, especialmente situações de disputa e antagonismos com figuras de autoridade, o que repete o observado fartamente nas entrevistas com a criança e os pais.









DISCUSSÃO

O uso do hemisfério inferior da folha em nossas crianças (Grupo 1) mostrou-se exacerbado pelo uso feito da borda da folha, limite concreto, como base para o desenho.

Isso pareceu se referir a uma necessidade concreta de apoio no mundo para melhor se sentirem equilibradas, o que se revelou nas entrevistas psicológicas, principalmente com o freqüente contato destas crianças ao colo, carteiras escolares e mesmo o fundo do berço – o que corrobora os dados de anamnese otorrinolaringológica (5). Outro aspecto referido a esta pouca confiança no apoio vindo de seu próprio corpo se mostrou pela representação de pés muito pequenos, ou ainda, em alguns casos, de pés desproporcionais ao tamanho do corpo, apresentando-se muito grandes. DOLTO (12) afirmou que o desenho realizado por uma criança também se refere à representação inconsciente que ela tem de si, sendo a sua produção gráfica um tipo de “auto-retrato”.

Sem esta referência, a criança não conseguiria desenhar. A autora marca ainda que no desenho infantil se mostra à parte dolorosa do corpo. Desenhos próximos revelariam, então, questões corporais próximas e inconscientes. Como já foi citado, o eu surge das sensações corporais.

O narcisismo fundamental, ou seja, o conceito mais básico que temos de nós mesmos está calcado no cruzamento da imagem do corpo – sucintamente, a percep ção do corpo através de nossa personalidade – com o esquema corporal - capacidade de desenvolvimento das praxias para o uso do corpo como um instrumento de trabalho no mundo. Assim, o desenho foi utilizado partindo-se deste princípio, sendo ainda, juntamente com as histórias, um meio de acesso a aspectos da subjetividade infantil que são difíceis de serem tangenciados, como o posicionamento imaginário da criança (e de seu corpo) no mundo e na família. No Grupo 1, observou-se associação entre histórias eliciadas pelas produções gráficas e as relatados como reais, referentes às privações sofridas pelas crianças em seu cotidiano.

Outra forma de manifestação do mesmo aspecto foi à criação de histórias exageradamente harmônicas, sem conflitos, nas quais personagens não possuíam limitações ou dificuldades. As entrevistas e histórias dos sujeitos com maior idade (Subgrupo 1A), acima de 9 anos, mostraram que os mesmos buscam ocupar um lugar diferenciado do que possuem na família:

crianças doentes e problemáticas. Estas crianças não evidenciaram uso ou ganho secundá- rio exacerbado ligado a este lugar que ocupam e sim uma vontade referida de afirmação através de outras vias:

o desenvolvimento de suas capacidades pessoais. Contudo, de fato, muitos evidenciaram atuar no mundo de um modo “tímido” para o alcance destes propósitos. Houve a hipótese de que esta vontade seja uma tentativa destes sujeitos de compensarem uma representa- ção de si mesmos, ou o lugar familiar, calcado nas restrições e dificuldades.

Alguns mostraram grande sofrimento e dificuldade para tolerar falhas e limitações comuns a qualquer criança. Os 2 sujeitos do Subgrupo 1B, com idade de 8 e 9 anos, mostraram seus desenhos absolutamente concentrados na parte inferior da folha, o que se relacionou com maior relevância de aspectos da vivência da patologia na dinâmica familiar, bem como a existência de usos e ganhos secundários evidentes na relação doença-família.

Isso ficou intensamente marcado nas entrevistas com os pais e as crianças, bem como pelas histórias referidas à produção gráfica realizada. Estas duas crianças, em especial, revelaram de forma mais contundente a relação dos aspectos patológicos com aspectos subjetivos familiares.

Estes casos, juntamente com a criança de 5 anos (Grupo 2), apresentaram resultados bastante favoráveis inicialmente e recidivas pouco consistentes em referência aos aspectos orgânicos mostrados previamente.

Isto marca a incidência destes aspectos subjetivos sobre estes resultados do tratamento, tendo sido necessário tratamento psicológico nestes três casos. Nos demais casos, houve apenas intervenções psicol ógicas e questionamentos quanto ao lugar dado às crianças nas famílias, bem como em relação às restrições e cuidados exacerbados. Estes dados preliminares mostraram que, nesta população observada, existe uma marca de “fragilidade”, evidenciada nos desenhos infantis através das representa- ções de figuras humanas e da forma de apresentação do desenho na folha, que sugeriram uma forte relação com a vivência do desequilíbrio.

Paralelamente a estes aspectos da imagem corporal destas crianças, ou melhor, corroborando-os ou favorecendo sua constituição, há a importância da maneira com a família vivencia com a criança estes estados de desequilíbrio, podendo aumentar sua estranheza e sensação de falta de recursos para se sustentar, tanto objetivamente como enquanto sujeito psíquico que age no mundo. Dados interessantes que necessitam continuar sendo estudados levantam ainda importantes perguntas, por exemplo: • O que restará destas marcas subjetivas, evidentes nos desenhos e histórias, com o tempo e a total supressão dos sintomas por longo período?

Haverá um novo “padrão” ou respostas individuais, mais distintas? • O que se observou neste grupo se manteria numa amostra maior? Além destes questionamentos, é fundamental ressaltar que o profissional habilitado a lidar com técnicas expressivas e projetivas tais como os desenhos e suas histórias é o psicólogo, e através das discussões de casos com a equipe (otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos) que estes achados ganham vida e real importância, favorecendo o tratamento.

CONCLUSÃO

As alterações de comportamento tais como isolamento social e apatia podem ser provenientes da sensação de falta de domínio pleno sobre o próprio corpo bem como pela forma como isso é significado pelas crianças e famílias, colaborando para que estes eventos sejam tão freqüentes na clínica. Assim, é relevante que a equipe solicite a avaliação e intervenção psicológica quando houver indícios de uma “contaminação” da perturbação característica das crises em outros aspectos da vida da criança, evitando que ela seja sempre tida como a “comprometida” da família.

É fundamental ressaltar que este lugar de perturbado e doente também pode trazer ganhos prazerosos e favorecimentos – geralmente inconscientes. Este aspecto é o que configura o real “compromisso” com a doença, que é o principal cerne de insucessos terapêuticos, principalmente os que sucedem a um período de remissão ou melhora consistente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Bower CM, Cotton RT. The spectrum of vertigo in children. Arch Otolaryngol Head Neck Surg, 121:911-5, 1995.
2. Formigoni LG, Santoro PP, Medeiros IRT, Bittar RSM, Bottino MA. Avaliação clínica das vestibulopatias na infância. Rev Bras Otorrinolaringol, 65(1): 78-82,1999.
3. Falsetti LAV. .Introdução. e .Capítulo II.. In: A criança, sua doença e a mãe . um estudo sobre a função materna na constituição de sujeitos precocemente atingidos por doenças ou deficiências, São Paulo, 1990. (Tese de Doutoramento . Instituto de Psicologia da USP).
4. Bittar RSM, Pedalini MEB, Medeiros IRT, Bottino MA, Bento RF. Reabilitação vestibular na criança: estudo preliminar. Rev Bras Otorrinolaringol, 68(4):496-9, 2002.
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10. Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras Psicológicas Completas. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996.
11. Freud S. O Ego e o Id. In: Obras Psicológicas Completas. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996.
12. Dolto F. A criança do espelho, tradução Alba Maria Nunes de Almeida. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.

* Psicóloga do Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
** Doutor em Medicina pela Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP. Responsável pelo ambulatório de vertigem na infância do HC-FMUSP.
*** Médica Assistente Doutora do Setor de Otoneurologia do HC-FMUSP.

Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP
Apresentado no III Congresso de Otorrinolaringologia da FMUSP, em São Paulo, 7 a 9 de agosto de 2003.
Endereço para correspondência: Rosa Maria Rodrigues dos Santos - Rua Heitor Penteado, 1475, Apto. 201 - Paulo /SP - CEP . 05437-001 - Tel: (11) 3875-4276 -
Fax: (11) 3064-5843 - E-mail: romarodrigues2003@yahoo.com.br
Artigo recebido em 2 de setembro de 2003. Artigo aceito em 17 de outubro de 2003.
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