INTRODUÇÃO
A papilomatose laríngea é o tumor benigno da laringe mais comum em crianças (1) e a segunda causa de disfonia nesta faixa etária (2). É uma doença de origem viral causada pelo papilomavírus humano (HPV), principalmente os tipos 6 e 11. Pode ser encontrada em todo o aparelho aerodigestivo e foi inicialmente descrita no século XVII como “verrugas na garganta” (3). Histologicamente, a papilomatose laríngea apresenta- se como massas pedunculadas com projeções de epitélio não-queratinizado estratificado apoiadas em um estroma de tecido conectivo altamente vascularizado. A camada basal pode ser normal ou hiperplásica, com mitoses geralmente restritas a essas camadas. As lesões são mais freqüentemente encontradas em áreas de transição de epitélio estratificado e escamoso (4). Apesar de não existir diferença histológica, a papilomatose pode ocorrer em duas formas: juvenil e adulta.
A principal diferença entre as mesmas é a agressividade. Apesar de ser um tema controverso na literatura, a idade do início dos sintomas auxilia no sentido de classificar e dividir os grupos (5,6). Se as manifestações da papilomatose laríngea ocorrem até os quatorze anos, pode ser incluída na forma juvenil. A partir dos quinze anos, pode ser encaixada na forma adulta.
Tem sido relatado maior número de intervenções cirúrgicas, incluindo traqueotomias, na forma juvenil (6). Nenhuma opção de tratamento mostrou-se consistentemente eficaz em erradicar as lesões, sobretudo na forma juvenil da doença.
A cirurgia com uso de laser de CO2 ainda é a primeira opção da maioria dos grupos, enquanto o uso de instrumental convencional é preconizado principalmente em lesões glóticas (6). Em qualquer caso, a intervenção cirúrgica visa a remoção das lesões com a máxima preservação da via aérea.
A remoção parcial das lesões ou em mais de um tempo cirúrgico deve também ser considerada quando a remoção completa implicar em risco de complicações como estenose e sinéquia (7). Fibrose e edema persistente também ocorrem após a manipulação cirúrgica, podendo comprometer severamente a qualidade vocal (3,8,9). Cerca de 10% dos pacientes precisam de algum tratamento associado.
Os critérios mais aceitos para o início da terapia adjuvante são: necessidade de mais de quatro procedimentos cirúrgicos por ano, extensão sub-glótica das lesões e intervalos de recorrência curtos, ocasionando comprometimento da via aérea.
O interferon-a, a terapia fotodinâmica, o índole-3-carbinol (I3C), a ribavarina e o aciclovir compõem as possibilidades na terapia adjuvante. O interferon-a tem sido o mais usado entre os citados, porém o índice elevado de efeitos colaterais tem restringido seu uso (10). O cidofovir [(S)-1-(3-Hydroxi-2-Phosphonylmethoxypropyl) Cytosine] é um nucleotídeo análogo da citosina que tem atividade comprovada “in vivo” e “in vitro” contra vários herpesvírus.
Foi aprovado pelo Órgão de Saúde Americano (FDA) para uso endovenoso no tratamento de retinite por citomegalovírus em pacientes com diagnóstico de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Os efeitos tóxicos relacionados ao uso endovenoso envolvem nefropatia por necrose de células do túbulo contornado proximal (12). Assim, o objetivo desse estudo é descrever nossa experiência com a utilização do cidofovir no tratamento da papilomatose laríngea.
RELATO DE CASOS
Esse artigo traz a avaliação de três pacientes (Tabela 1) tratados com injeção intralesional de cidofovir para o tratamento da papilomatose laríngea.
Todos tinham diagn óstico de papiloma laríngeo comprovado por biópsia prévia e assinaram um consentimento informado contendo orientações sobre o procedimento. Os pacientes foram submetidos ao seguinte protocolo: microlaringoscopia direta com ressecção a frio das lesões papilomatosas, seguida da injeção do cidofovir (concentração de 5 mg/ml) na submucosa da região operada. Foi utilizada a mesma concentração para todos os pacientes. A injeção foi realizada em um ou mais pontos, dependendo da área remanescente da lesão ressecada.
O volume em cada injeção variou de 0.2 a 0.5 ml, sempre com o cuidado de evitar o comprometimento da via aérea. O material ressecado foi enviado para exame anátomopatol ógico após a realização das cirurgias.
O paciente 2 apresentava lesão papilomatosa na comissura anterior e, portanto, a ressecção foi parcial para evitar a formação de sinéquia. Assim, o papiloma remanescente na comissura anterior recebeu somente a injeção do cidofovir. Os procedimentos foram repetidos a cada trinta dias até o controle ou desaparecimento das lesões.
O seguimento foi ambulatorial a cada três meses, sendo realizado videolaringoscopia em todos os retornos. Tendo em vista a potencial nefrotoxicidade causada pelo cidofovir, foram solicitadas provas de função renal (uréia e creatinina) de todos os pacientes previamente e após os procedimentos.
Paciente 1. B.F.N., menino de 7 anos com diagnóstico de papilomatose laríngea desde os 3,7 anos. Havia sido submetido a onze procedimentos cirúrgicos em outros serviços, sendo que seis foram realizados nos últimos doze meses. Todos os procedimentos foram realizados com instrumental “a frio”. Em duas ocasiões, houve a necessidade de traqueostomia com a intenção de manuten ção da permeabilidade da via aérea. Foi proposto ao responsável que o paciente entrasse no protocolo de remoção das lesões e injeção do cidofovir. Foram realizados 3 procedimentos em 3 meses, com intervalo de 30 dias entre eles.
Paciente 2. T.N., sexo feminino, 21 anos, com história de 14 cirurgias prévias para a remoção de papilomas até os quinze anos, seguida de um período de 6 anos de remissão da doença. O uso do laser durante a cirurgia não foi proposto em nenhuma das intervenções. Recentemente apresentou novamente as lesões papilomatosas na laringe, que foram prontamente diagnosticadas após período de disfonia.
O exame videolaringoscópico evidenciava lesões em terço médio de prega vocal direita e banda vestibular esquerda e lesão em comissura anterior. Foi sugerido o uso do cidofovir, principalmente pela localização da lesão na comissura anterior, que foi parcialmente ressecada e posteriormente infiltrada com cidofovir.
Paciente 3. K.S.V., menino de 4 anos, também com diagnóstico prévio de papilomatose laríngea. Depois da identificação intra-operatória de extensão subglótica das lesões papilomatosas, foi proposto ao responsável a inclusão no grupo do cidofovir. O paciente foi submetido a 4 procedimentos com intervalo de 30 dias cada.
DISCUSSÃO
O cidofovir foi aprovado pelo órgão de saúde norteamericano que regulamenta a utilização de novos medicamentos (Food and Drugs Administration) para uso endovenoso no tratamento de retinite por citomegalovírus em pacientes com Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (11).
No entanto, ainda não foi liberado para uso no tratamento da papilomatose laríngea recorrente. O uso do cidofovir para este fim foi publicado inicialmente em 1998 por SNOECK et al (13).
A refratariedade a tratamentos convencionais e a recidiva freqüente das lesões papilomatosas, associadas ao sucesso alcançado previamente no tratamento de papilomas esofágicos, estimulou o uso do cidofovir em 17 pacientes com papilomatose laríngea, a maioria adultos. Não houve protocolo uniforme com relação ao número de injeções e tempo de seguimento dos pacientes. Foram realizadas injeções intralesionais sob anestesia geral, na concentração de 2,5 mg/ml. Até o desaparecimento das lesões, o intervalo dos procedimentos foi semanal. Em seguida, os pacientes recebiam 2 injeções adicionais. O seguimento foi realizado por um período de 2 a 27 meses, com laringoscopia indireta a cada 4 semanas. Houve remissão completa das lesões em 14 pacientes.
Não foram observados sinais inflamatórios (fibrose, edema ou hiperemia) nos locais de injeção do cidofovir. Na literatura ainda não existe protocolo com relação à dose, concentração do medicamento e número de injeções. Também permanece a dúvida com relação à necessidade ou não da remoção das lesões aparentes ou se bastaria a injeção intralesional exclusiva sem o debulking prévio. Embora ainda não exista uniformidade com relação ao protocolo de utilização do cidofovir no tratamento da papilomatose laríngea, alguns autores têm preconizado seu uso com bons resultados (13-16). Utilizamos um protocolo semelhante ao descrito em 2000 por PRANSKY et al. (14), com a utilização do cidofovir na concentração de 5 mg/ml.
A principal diferença relaciona- se com o intervalo entre os procedimentos realizados. Em nossos pacientes 1 e 3, a injeção do cidofovir após a remoção cirúrgica das lesões foi realizada a cada 30 dias, enquanto PRANSKY et al realizaram-na quinzenalmente. Ressaltamos ainda que a anestesia também foi diferente.
O nosso grupo de pacientes utilizou a intubação orotraqueal, enquanto que a ventilação espontânea foi usada no grupo americano. Mesmo considerando o pouco tempo de seguimento, dois de nossos três pacientes não apresentaram lesões no exame videolaringoscópico.
Além disto, é interessante salientar que no paciente 2, devido à presença de lesões na comissura anterior, optamos por não retirá-las, realizando apenas a injeção intralesional. Mesmo com esta conduta conservadora, obtivemos controle total da doença, com ausência de lesões papilomatosas mesmo após 8,5 meses de seguimento.
No paciente em que observamos uma recidiva com 4 meses de seguimento, esta se localizava na banda vestibular e não comprometia imediatamente a via aérea e conseqüentemente a segurança do paciente.
Vale também ressaltar que nenhum dos pacientes apresentou alteração nos exames da função renal e as biópsias pósoperat órias não mostraram transformação maligna. Apesar desta não ser uma proposta de tratamento definitivo, um aumento no intervalo das recidivas é motivador e gera menos ansiedade, principalmente entre os familiares das crianças.
Daremos prosseguimento ao grupo de estudo com a intenção de aumentar nossa casuística para podermos futuramente elucidar algumas dúvidas referentes ao uso do cidofovir nesses pacientes. WILSON et al. (16) questiona o potencial carcinogênico do cidofovir ao apresentar estudos experimentais que demonstraram o desenvolvimento de adenocarcinomas após injeções subcutâneas em ratas, apesar desses achados não terem sido vistos em primatas. Ainda segundo este autor, três dos 17 pacientes estudados por SNOECK et al. (12) apresentaram carcinoma de células escamosas. No entanto, os mesmos eram fumantes e dois já apresentavam câncer previamente ao tratamento com o cidofovir. Assim, apesar de nunca comprovado em pacientes, deve ser considerada a possibilidade do cidofovir induzir carcinogênese, necessitando de intenso seguimento pósoperat ório por um período prolongado.
COMENTÁRIOS FINAIS
Apresentamos a avaliação de 3 pacientes com diagnóstico de papilomatose laríngea recorrente, submetidos a injeção do cidofovir como tratamento adjuvante, o qual se mostrou efetivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Pós-Graduando da Disciplina de ORL da FMUSP e Responsável pelo Departamento de Laringologia e Voz do Instituto Felippu de ORL.
** Diretor do Instituto Felippu de ORL.
*** Doutor em Medicina pela Disciplina de ORL da FMUSP.
**** Médico Assistente Doutor da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
***** Professor Livre Docente e Responsável pelo Grupo de Voz da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
****** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP e Diretor do Serviço de Bucofaringolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Trabalho realizado na Disciplina de ORL da FMUSP e no Instituto Felippu de ORL
Endereço para correspondência: Christiano de Giacomo Carneiro . Alameda Franca, 850/21 . São Paulo / SP . CEP: 01422-001 . Telefax: (11) 5543-0899 .
E-mail: christianocarneiro@hotmail.com
Artigo recebido em 17 de abril de 2003. Artigo aceito com correções em 30 de janeiro de 2004.