INTRODUÇÃOAs malformações de orelha são anomalias que ocorrem no período de desenvolvimento embrionário e podem acometer a orelha externa, média e/ou interna. Nas situações mais comuns de anomalias congênitas de orelha, as malformações estão restritas ao pavilhão auricular e ao meato acústico externo, podendo ser uni ou bilaterais. A deficiência auditiva é um dos achados clínicos mais comuns nestes indivíduos, podendo variar quanto ao tipo e grau, dependendo do seu comprometimento.
O tratamento consiste em realizar a cirurgia e/ou adaptar o aparelho de amplificação sonora (AASI). A adaptação precoce do aparelho de amplificação sonora é fundamental, para favorecer a estimulação auditiva e o desenvolvimento da aquisição da fala e linguagem, uma vez que a cirurgia não é indicada para todos os casos e, geralmente, é realizada a partir dos 6 ou 7 anos de idade (1). Assim, a amplificação sonora é a primeira opção de tratamento em algumas doenças, sendo que em outras, reserva-se apenas como segunda opção.
No entanto, ainda há casos em que tanto a amplificação quanto a cirurgia são recomendadas (2). Nas malformações de orelha, como por exemplo, na atresia congênita não operável, em que há uma perda condutiva unilateral e uma anacusia contralateral, tanto o aparelho convencional por condução óssea quanto o condutor ósseo implantável podem ser indicados.
A decisão da indicação deste último será baseada na idade do paciente, no grau da atresia e na sua preferência, uma vez que há risco da não aceitação da cirurgia pelo organismo (1). A literatura internacional apresenta vários relatos de indivíduos portadores de malformação de orelha que foram submetidos à cirurgia estética funcional ou implantação do AASI por via óssea (VO) na mastóide (1,3,4).
No Brasil, os trabalhos relacionados à adaptação de AASI em indivíduos portadores destas malformações de orelha são escassos. AGRA (1996) estudou dois pacientes com malformação bilateral de orelha externa e média, implantados com o AASI por VO. A autora comparou os benefícios da percep- ção da fala, utilizando sílabas sem sentido, em diferentes situações: sem AASI, com AASI monoaural e com AASI biaural.
Os resultados apresentaram diferenças significantes na situação sem AASI e com AASI, porém sem diferença nas situações monoaural e binaural. Em 2002, AGRA comparou a percepção da fala com estimulação auditiva monoaural e biaural por via óssea (VO) e via área (VA) na presença de ruído competitivo em indivíduos adultos com deficiência auditiva condutiva ou mista bilateral, cuja etiologia restringia-se a otosclerose ou otite média crônica.
A avaliação audiológica consistiu na pesquisa do limiar de reconhecimento de sentenças no ruído (LRSR) em campo livre, preconizando-se a proximidade do microfone ao meato acústico externo.
Assim, a autora concluiu que a performance dos indivíduos na percepção da fala com ruído competitivo foi melhor por VO binaural em relação a monoaural, assim como foi melhor a performance na percepção da fala por VO do que por VA (6). SILVEIRA et al. (2003) relataram um caso de adulto portador de agenesia de meato acústico externo, submetido a teste com AASI por VO e VA, já que a introdução e a fixação do molde auricular foram possíveis devido à condição anatômica do meato.
Os resultados foram semelhantes, mas por questões estéticas, o paciente preferiu o AASI por VA. Uma vez que a via aérea está comprometida os AASIs por VO utilizam o mecanismo de audição por via óssea para fornecer o som amplificado ao indivíduo com deficiência auditiva. O sinal elétrico amplificado é transformado em vibração mecânica e transmitido ao usuário através de um vibrador aplicado em alguma parte do crânio, normalmente na mastóide.
O AASI convencional consiste em um microfone, um amplificador e um transdutor vibratório, geralmente posicionado no osso temporal e conectado a um arco para fornecer sustentação (3). Este estudo teve por objetivo investigar os benefí- cios do aparelho de amplificação sonora individual por condução óssea na percepção da fala em crianças portadoras de malformação de orelha externa e média.
CASUISTICA E MÉTODOEste estudo foi realizado no Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição, Linguagem e Visão do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, Campus Bauru, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em seres humanos. Foram selecionadas 20 crianças portadoras de malformação de orelha externa e média, diagnosticadas por meio da tomografia computadorizada, na faixa etária entre 3 e 12 anos (média = 6, anos e 9 meses, mediana = 6 anos e 5 meses), cuja audiometria tonal limiar indicou hipoacusia condutiva de grau moderado. Todas as crianças haviam sido submetidas ao processo de seleção e indicação do AASI por VO, utilizando-se métodos prescritivos adequados ao grau e tipo da deficiência auditiva e estavam adaptadas com o aparelho de amplificação sonora individual por condução óssea por um período mínimo de 6 meses. Devido à presença de malformação unilateral ou bilateral de orelha, as crianças foram distribuídas em dois grupos: • Grupo I, com 11 crianças portadoras de malformação unilateral na faixa etária entre 3 anos e 9 anos e 5 meses (média = 6 anos e 3 meses, mediana = 6 anos e 8 meses); • Grupo II, com 9 crianças portadoras de malformação bilateral na faixa etária entre 4 anos e 1 mês e 12 anos (média = 7 anos e 5 meses, mediana = 6 anos). Todas as crianças foram submetidas à avaliação da percepção da fala sem e com o AASI.
Para este teste, no entanto, foi aplicada a prova de compreensão de sentenças do procedimento proposto por BEVILACQUA e TECH em 1996, pois este independe da aquisição e/ou desenvolvimento da fala e/ou linguagem oral, o que poderia interferir nas respostas, já que algumas das crianças encontravam-se neste processo (8). A prova foi aplicada à viva voz, sempre pela mesma avaliadora, em intensidade normal de fala, ao redor de 70 dBNPS (9), em sala amplamente iluminada e com nível mínimo de ruído.
A distância entre a criança e a avaliadora foi de aproximadamente 1 metro, a 0o azimute. Para a realização da avaliação da percepção da fala das crianças inseridas no grupo I, foi utilizado um tampão confeccionado com massa de pré-moldagem na orelha com audição normal, a fim de minimizar a participação desta orelha durante a aplicação das provas. Para complementar a avaliação, os pais responderam ao questionário Meauningful Auditory Integration Scale (MAIS), adaptado à língua portuguesa (10), com 10 perguntas referentes ao comportamento auditivo das crian- ças em diferentes situações do dia-a-dia, com o uso do AASI por VO. Para cada uma das questões houve a possibilidade de 5 respostas, com escores de 0 a 4, distribuídos de acordo com a freqüência do comportamento relatado, ou seja, porcentagem de tempo que a criança demonstra as habilidades auditivas específicas questionadas:
0 = nunca: a criança não apresenta a habilidade avaliada;
1 = raramente: a criança apresenta a habilidade avaliada 25% das vezes;
2 = ocasionalmente: a criança apresenta a habilidade avaliada 50% das vezes;
3 = freqüentemente: a criança apresenta a habilidade avaliada 75% das vezes;
4 = sempre: a criança apresenta a habilidade avaliada 100% das vezes.
RESULTADOSOs resultados foram analisados de forma descritiva, conforme orientação estatística. A questão 1 do questionário, referente à freqüência do uso do AASI, foi analisada isoladamente de modo a compararmos os resultados obtidos pelos grupos I e II.
Foi possível observar na Tabela 1, a freqüência com que as crianças portadoras de malformação de orelha externa e média utilizavam o AASI por VO. Verificou-se assim, que 44% das crianças do grupo II sempre utilizavam o AASI e 36% das crianças do grupo I raramente o utilizavam. A Tabela 2 mostra os resultados do total de pontos obtidos no questionário MAIS. Observou-se que todas as crianças que participaram deste estudo obtiveram escore acima de 82,5%.
Comparando as crianças dos dois grupos verificou-se que o grupo II apresentou escores maiores que o grupo I, pois 100% do grupo II obteve escore acima de 90%. Quanto às habilidades de compreensão da fala, o Gráfico 1 mostra que, das 11 crianças com malformação unilateral, apenas 1 não obteve o escore máximo com ou sem o AASI. Já o Gráfico 2 demonstrou que, das crianças com malformação bilateral, apenas 3 obtiveram 100% de acertos em ambas situações.
DICUSSÃOA proposta desde estudo foi verificar o benefício do uso da amplificação por via óssea em crianças portadoras de malformação de orelha externa e média. Utilizou-se como instrumento de trabalho a aplicação de um question ário aos pais das crianças e a aplicação de uma prova de compreensão de sentenças com as próprias crianças. Em relação à freqüência de uso do AASI por VO pelas crianças portadoras de malformação de orelha, 44% das crianças do grupo II sempre utilizavam o AASI e 36% das crianças do grupo I raramente o utilizavam.
Assim, as crianças do grupo II utilizavam o AASI com maior freqüência, provavelmente porque apresentavam maior dificuldade auditiva devido ao comprometimento bilateral. Estes achados concordam com o estudo de MYLANUS et al. (1995), no qual 90% dos indivíduos utilizavam o AASI convencional por VO por mais de 8 horas ao dia. Durante a aplicação do questionário, as crianças portadoras de deficiência auditiva unilateral comportavamse de maneiras distintas em relação ao uso do AASI.
Fatos como estes também foram encontrados no trabalho de AGRA (2002), que avaliou o handicap auditivo no adulto com deficiência auditiva unilateral, concluindo que indiví- duos com o mesmo grau de deficiência auditiva podem reagir de forma diferente à sua deficiência. É importante ressaltar que durante a aplicação desta questão, muitas crianças referiram não utilizar o AASI freqüentemente devido ao desconforto causado pela press ão exercida pelo vibrador na mastóide.
Este relato tamb ém foi encontrado em outros estudos, sendo considerado uma das grandes desvantagens deste tipo de AASI (3,4,8,13). Os resultados referentes ao total de pontos obtidos no questionário MAIS mostraram que todas as crianças obtiveram escore acima de 82,5%. Comparando-se os dois grupos, observamos que o grupo II apresentou escores maiores que o grupo I, pois 100% do grupo II obteve escore acima de 90%.
Estes dados podem ser justificados porque as crianças do grupo II utilizavam o AASI com maior freqüência, o que resultou na maior pontuação, indicando maior porcentagem de tempo que a criança demonstra as habilidades auditivas. Em relação às habilidades de percepção da fala, 3 das 11 crianças com malformação unilateral obtiveram acerto inferior a 100% sem AASI.
Destas, 2 apresentaram escore de 90% (crianças 1 e 5) e 1 apresentou escore de 70% (criança 6). Esta última também obteve 70% de acerto com AASI nesta prova de compreensão de sentenças. Verificou-se, portanto que, com exceção da criança 6, as demais obtiveram o escore máximo, tanto com AASI quanto sem AASI, o que pode ser justificado pelo fato destas crianças possuírem uma orelha com audição normal. Autores como FETTEMAM e LUXFORD (1997) e DECLAU et al. (199) discutem a real necessidade da adaptação do AASI por VO nos casos de malformação unilateral pelo fato do pouco benefício para a audição global e pouca aceitação pelas crianças.
Todavia, a literatura consultada relatou que a deficiência auditiva unilateral causa dificuldades auditivas relacionadas à localização da fonte sonora, à presença da somação binaural e à eliminação do efeito sombra da cabeça (15,16).
Portanto, a presença destas dificuldades pode conseqüentemente prejudicar a comunicação diária do indivíduo. Segundo ARAÚJO (2002), a deficiência auditiva unilateral também pode comprometer aspectos sociais e emocionais levando o indivíduo a necessitar de uma interven- ção apropriada como a adaptação do AASI (12). Os resultados verificados neste estudo não revelaram a necessidade da adaptação do AASI nos casos de malformação unilateral, com audição contralateral normal. Porém, sugere-se que casos como estes sejam analisados individualmente, principalmente em crianças que se encontram em processo de desenvolvimento da fala e linguagem. No Gráfico 2 foi possível observar os benefícios do AASI por VO na prova de compreensão de sentença, aplicada nas 9 crianças portadoras de malformação bilateral. Verificou-se que 7 delas obtiveram 100% de acertos com AASI e destas, 3 também obtiveram 100% de acertos sem AASI.
Os resultados demonstraram que apenas a criança 4 não obteve resultado satisfatório (melhor que 50%) no teste da percepção da fala. Comparando os resultados obtidos nos Gráficos 1 e 2, pôde-se observar que as crianças do grupo II apresentaram maior dificuldade de compreensão de sentenças quando estavam sem AASI.
Além desta dificuldade, as crianças também apresentaram trocas fonoarticulatórias, o que pode justificar a necessidade do uso da amplificação por VO nos casos de malformação bilateral.
Relatos como estes também são descritos por FETTERMAN e LUXFORD (1997) e DECLAU et al. (1999), os quais citaram a importância da amplificação por VO nos casos de atresia bilateral. Os autores referiram que a adaptação do AASI por VO nestes casos é essencial para o desenvolvimento da fala e deve ocorrer antes dos 3 meses de vida.
CONCLUSÃOA partir da análise e discussão dos resultados obtidos, pode-se verificar que:
1) a adaptação do AASI por VO forneceu benefícios a percepção da fala para as crianças portadoras de malformação de orelha bilateral;
2) as crianças portadoras de malformação unilateral de orelha obtiveram resultado satisfatório no teste da percepção da fala, até mesmo sem o AASI, o que sugere a reavaliação da adaptação do dispositivo auditivo. Novos estudos com crianças portadoras de malformação de orelha externa e média, adaptadas com o AASI por VO são sugeridos para caracterizar sua performance em diversas situações de uso, pois apesar da sua aparência estética não ser agradável, auxilia na deficiência auditiva da criança que não pode utilizar AASI por VA ou realizar cirurgia.
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