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Ano: 1997  Vol. 1   Num. 4  - Out/Dez Print:
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Labirintopatias Hormonais: Hormônios Esteróides, Estrógeno e Progesterona
Author(s):
Roseli Saraiva Moreira Bittar
Palavras-chave:
Introdução

A integridade bioquímica dos líquidos do ouvido interno é essencial para seu bom funcionamento. Por suas múltiplas atuações no organismo, as alterações hormonais que ocorrem durante o ciclo menstrual, gestação e menopausa podem resultar em comprometimento da homeostase dos fluídos labirínticos, pois influem diretamente em processos enzimáticos e na atuação de neurotransmissores29. Essas alterações podem ser assintomáticas ou clinicamente referidas como vertigens, instabilidade, zumbidos, plenitude auricular, hipoacusia ou algiacusia18.

O ciclo menstrual

Durante o ciclo menstrual, observamos flutuação do limiar auditivo tonal, notadamente nas freqüências agudas3,12. Essas diferenças parecem ser mais acentuadas em mulheres portadoras de tensão pré-menstrual (TPM)2. O limiar auditivo feminino pode sofrer diminuição de até 7 dB quando na fase lútea11,12. Durante o ciclo menstrual, além do limiar tonal, ocorre flutuação dos limiares do reflexo estapediano25 (Figura 1).

São descritos casos de mulheres que apresentam severo aumento de limiares auditivos na segunda fase do ciclo menstrual, notadamente nas freqüências agudas. Essas mulheres podem responder ou não ao uso de contraceptivos orais. Apenas um caso descrito foi acompanhado durante longo tempo, evoluindo sem melhora com uso de contraceptivos orais, assintomática durante a gestação e aleitamento, e com piora após a volta dos ciclos1. Tal paciente obteve benefícios com o uso de bloqueadores diretos de hipófise, com eliminação do ciclo hormonal, porém não pôde continuar o tratamento em razão de seus efeitos adversos.

Quando realizado na fase estrogênica ou lútea, o exame vestibular também mostra variação15,26. Na fase lútea, podemos encontrar maior incidência de nistagmo de posição, ausência de inibição do nistagmo pós calórico com a fixação ocular e preponderância direcional. As alterações descritas são freqüentemente associadas ao edema de SNC15 (usual nessa fase) secundário à atuação hormonal. Quadros de hidropsia labiríntica muitas vezes são observados nessas pacientes, as quais referem instabilidade, intolerância ao ruído e sensação de "cabeça oca"2. No campo da pesquisa clínica, o estudo do TTS (temporary threshold shift) revela que, durante a fase lútea, a mulher tem recuperação auditiva pós ruído muito mais rápida11,27, quando comparada à fase estrogênica ou ao sexo masculino. Todas essas variações são atribuídas ao alto índice hormonal que ocorre nessa época.

É interessante notar que a afinidade dos receptores periféricos de insulina varia conforme a fase do ciclo hormonal4,13. Durante a segunda fase do ciclo menstrual há "resistência" periférica à insulina, por queda da afinidade aos receptores insulínicos. Essa situação tem como conseqüência a hiperinsulinemia e o aumento da glicemia que poderiam levar a distúrbios metabólicos no ouvido interno.

Os sintomas decorrentes da TPM são facilmente tratáveis com dieta hipossódica e diurético leve, durante a segunda fase do ciclo. Muitas vezes, podemos retirar a medicação e a dieta após 4 a 6 meses de ausência dos sintomas. Quando o quadro é de hidropsia, em relação à surdez, a melhora ocorre apenas nos casos onde não há lesão de percepção2.

Contraceptivos Orais

Com o uso de contraceptivos orais, o reflexo estapediano não varia como no ciclo menstrual e apresenta em níveis normais, embora ocorra diminuição do limiar auditivo. Isso caracteriza aumento do campo auditivo, considerado um sinal de comprometimento do tronco cerebral30. Observamos melhores limiares auditivos sob a ação dessas drogas, quando comparados à fase estrogênica e ao sexo masculino. Nessas condições, os anticoncepcionais orais simulam a fase lútea. Em contrapartida, são descritos casos de surdez súbita sob o uso de estrógeno e progesterona, isolados ou associados19,21,31. Sabe-se, ainda, que o uso prolongado dos anticoncepcionais pode levar a compromentimento auditivo em freqüências agudas, de caráter neurossensorial27.

Os casos descritos de surdez súbita atribuída ao estrógeno, progesterona ou sua associação apresentaram invariavelmente boa evolução quando retirada a droga e realizado tratamento apropriado da fase aguda. Tanto pode haver surdez isolada, como comprometimento vestibular parcial ou total. Os achados são facilmente explicáveis quando observamos a irrigação do labirinto. A artéria auditiva interna divide-se em dois ramos: vestibular anterior e coclear comum, que por sua vez dá origem aos ramos coclear e vestíbulo-coclear. A obstrução vascular acarreta comprometimento do território por ela irrigado, que pode abranger cóclea, vestíbulo ou ambos (Figura 2).

Nos últimos anos, os contraceptivos orais têm cada vez menos estrógeno e progesterona, sendo chamados de contraceptivos de baixas doses ("low dose"). A utilização de hormônios em dosagens menores reduziu sensivelmente a ocorrência de surdez súbita. Atualmente, observamos quadros de instabilidade e algiacusia com o uso dessas formulações, parecendo que os sintomas estão relacionados à dose de progesterona. É interessante notar que essa droga leva à hiperinsulinemia, ao lado de hiperglicemia; assim como a hipotireoidismo e aumento da viscosidade sangüínea por interferência no metabolismo lipídico, o que comprometeria qualquer órgão dependente de circulação terminal por capilares16,22,28.

Há estudos mostrando que os potenciais evocados auditivos são alterados por essas drogas. O estrógeno parece diminuir o intervalo entre as latências interpicos7, enquanto que a progesterona, apresenta atuação no tronco cerebral, comprometendo a condução no complexo olivar superior, alterando a morfologia da onda8. As alterações são encontradas quando o exame é sensibilizado através do aumento de "clicks"30. A explicação para tal ocorrência parece ser que as alterações clínicas, tais como zumbidos, precedem a lesão anatômica e exprimem maior "irritabilidade" das vias auditivas centrais7,30.

Fase Gestacional

Durante o ciclo gravídico, notamos variação significativa da resposta vestibular. No início da gestação, observamos "sensibilização" da audição, com melhora dos limiares tonais e diminuição do limiar de excitabilidade labiríntica à PRPD, semelhante ao que ocorre no uso prolongado de contraceptivos orais. As alterações vestibulares normalizam-se ao longo do período gestacional, o que nos leva a supor que há habituação labiríntica, enquanto os limiares tonais continuam estáveis6,10.

É descrito na gestante o aumento do campo auditivo, caracterizado pelo melhor limiar auditivo e valor normal do reflexo estapediano9. Tal achado caracteriza comprome-timento do tronco cerebral, provavelmente secundário ao edema característico desta fase. O efeito parece ser se-cundário à atuação da progesterona sobre o tronco cere-bral que, conforme descrito experimentalmente, comprome-te a condução auditiva no complexo olivar superior.

A melhora do limiar auditivo parece estar relacionada com a evolução da espécie, que selecionou as fêmeas que tinham capacidade de estar mais atentas ao meio ambiente. Ouvindo melhor durante a gestação e fugiam dos seus predadores antes dos outros animais, compensando, assim, seu aumento de peso14.

Climatério

É comum observarmos mulheres com instabilidade, zumbidos eventuais e flutuação durante o climatério e menopausa. Tais sintomas parecem estar relacionados à insuficiência estrogênica que ocorre nessa fase. Alguns ginecologistas, ao usarem cinarizina com a finalidade de reduzir a sensação de calor própria do período, promovem a diminuição da sintomatologia. O benefício da reposição estrogênica nessa fase é clinicamente verificado17,20.

Existe em literatura a descrição de um caso de surdez súbita atribuído ao uso de etinilestradiol para reposição hormonal. Como nos demais casos de surdez secundária ao uso de estrógenos, houve boa evolução após tratamento adequado32.

HistofisioPatologia

Laugel et al descreveram experimen-talmente a variação do fluxo sangüíneo da cóclea decorrente da ação dos hormônios ovarianos23,24. Segundo os autores, o estrógeno e progesterona afetam a resposta do organismo a mediadores químicos vasopressores, como a nicotina e fenilefrina. A progesterona parece potenciar o efeito da angiotensina II por ação direta nos receptores dos vasos cocleares, levando à vasoconstrição e diminuindo o fluxo coclear.

Os efeitos centrais dos hormônios ovarianos são facilmente documentados pela eletronistagmografia e pelos potenciais evocados do tronco cerebral15,24.

Os efeitos periféricos dos hormônios ovarianos são demonstrados experimentalmente com atuação sobre células ciliadas, estria vascular e vasos cocleares5,30. As alterações histológicas são semelhantes às descritas sob o uso de outros ototóxicos, que agridem preferencialmente as células basais da estria vascular, que se apresentam vacuolizadas à microscopia de luz. No estudo eletrofisiológico, a análise dos potenciais auditivos demonstra a atuação hormonal no tronco cerebral, com comprometimento das latências e amplitudes das ondas.

Embora existam evidências clínicas e experimentais da ação dos hormônios ovarianos sobre a função labiríntica, os sintomas não guardam relação imediata com os valores sorológicos absolutos de estrógeno e progesterona, mesmo que só ocorram quando estes estejam elevados5. É nossa opinião, que além de altos níveis individuais, deve existir alguma proporção entre os dois hormônios para que esses sintomas apareçam1,5. Novamente, ressaltamos a possibilidade de a sintomato-logia ser devida a alterações metabólicas resultantes da ação dos hormônios. Sabemos que existe influência no metabolismo de triglicérides e variação da afinidade dos receptores da insulina, levando à hiperinsulinemia na presença de estrógeno e progesterona, condições altamente favoráveis ao aparecimento de sintomatologia cócleo-vestibular.

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Figura 1. Valores obtidos durante o ciclo ovariano normal


Figura 2. Irrigação do ouvido interno: 1) artéria cerebelar anterior inferior (AICA); 2) artéria auditiva interna (labiríntica); 3) artéria coclear comum; 4) artéria vestibular anterior; 5) artéria coclear; 6) artéria cócleo - vestibular; 7) ramo coclear; 8) artéria sacular; 9) artéria ampular posterior (GONZALES et al, 1968).


Médica Assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Doutora em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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