Chama atenção o número de médicos visto nos fóruns cívil e criminal de São Paulo. Na verdade, causa ainda perplexidade, não só aos profissionais do direito, mas também ao público presente nos corredores das Casas da Justiça, ao avistarem o médico, em seu traje característico, destoando fisicamente dos demais.
Em época não muito distante, ainda existia a figura quase mística do médico de família, aquele profissional que acompanhava gerações de uma mesma família, cuidando, muitas vezes, da saúde física e psíquica de seus pacientes, envolvendo-se em questões íntimas, tornando-se verdadeiro conselheiro. Não se ousaria, assim, pensar em processo contra profissional dessa índole, gabarito e proximidade.
Por outro lado, a evolução tecnológica fez surgir especialistas em todas as áreas. Não há mais lugar para o "faz de tudo", não se admitindo o insucesso nos tratamentos propostos. Propositadamente, deixei de empregar a expressão clínico geral, porque esta também é uma especialidade.
A mídia, por sua vez, encarregou-se de alardear, de forma salutar e dentro de suas atribuições, os direitos até então desconhecidos de grande parcela da população, com relação à conduta desses profissionais. Nesse embate de interesses na busca do direito, surgem os caminhos a serem trilhados e nos quais, de repente, vêem-se os atirados médicos.
O tratamento que não alcançou a cura buscada, a cirurgia que deixou seqüelas, a avaliação tardia de enfermidade são confundidos e tidos como sinônimos de erro crasso, de falta de habilidade ou perícia. São temas agora enfocados com freqüência assustadora para ambas as partes: médico e Justiça.
O médico, de repente, tornou-se até uma presa fácil. No Direito Penal, o erro médico está delimitado pela culpa stricto sensu, quando, dependendo da situação apontada, tem: seu foco dirigido para a caracterização da culpa. Obrigatoriamente, a conduta do médico deve amoldar-se na imprevisibilidade de resultados danosos ao paciente, em situações nas quais podiam ser seguramente previsíveis. A imperícia vislumbra a falta de capacidade técnica, de conhecimento específico para a realização de qualquer ato privativo do médico e do qual não pode ele prescindir de habilidade para promovê-lo. Na modalidade imprudência, a caracterização vem com a prática de ato perigoso, assim como a concessão de alta médica em avaliação rápida e superficial. Na derradeira modalidade da culpa, a negligência, observa-se a omissão da obrigação de fazer alguma coisa que poderia ser julgado de realização imperativa.
Na obra de Manzini, há significativa alusão no sentido de inexistir razão para a distinção de culpa por negligência, por imprudência e por imperícia: isto com a análise de suas essências. Tais conceitos, segundo o mestre, estão fundamentados em idênticos critérios jurídicos. Assim, imperito é aquele que é negligente e imprudente. Na esfera cível, a mesma acusação do erro médico vem balançando entre duas teorias: a da culpa, teoria subjetiva, e a teoria do risco, objetiva. Não se admite, no Direito Penal, a culpa presumida.
Com o advento da Lei 9.099/95, surgiu uma situação extremamente delicada para o profissional médico que se vê envolvido em questão de pretenso erro.
Há de lembrar-se, ainda, que o paciente insatisfeito com a atuação do médico e ou com os resultados do tratamento proposto, em geral, quando o aciona, o faz em três esferas distintas, criminal e cível e junto ao Conselho Regional de Medicina.
Com vistas ao advento da lei inovadora do Juizado Especial Criminal, para a apuração de delitos de menor potencial ofensivo, temos o médico como alvo fácil dessa criação jurídica.
Os delitos de lesão corporal culposa dependem, conforme o texto legal determina, da vontade da vítima em processar o causador do evento danoso.
Pela antiga sistemática, a ação era pública, incondicionada, porém hoje ela é condicionada à vontade daquele que se sente prejudicado.
Para essa aferição, realiza-se audiência preliminar, onde o médico é colocado diante de seu paciente, e com a mediação do magistrado e a participação do promotor de justiça. Busca-se a composição do dano, visando-se a não instauração do processo crime. Ou seja, se o médico concordar em pagar pelos danos entendidos pela vítima como sofridos, o processo não existirá, não constará em nenhum registro de dados de antecedentes criminais.
Esse procedimento, sem dúvida, passou a ser forma de pressão contra o autor do suposto fato lesivo, intimidando-o, caso não ceda aos interesses pecuniários da vítima, a suportar o processo crime.
Sem dúvida, o interesse em "comprar o sossego" é muito maior do que enfrentar processo criminal, para ao final saber, se é culpado ou inocente.
Não havendo composição entre o médico e o paciente, este verbalmente manifestará sua vontade em dar prosseguimento ao processo. É a representação.
Com essa nova situação, o Ministério Público, se preenchidos pelo médico os requisitos de ordem objetiva contemplados no artigo 76 da citada lei, oferecerá a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, sem instauração de processo crime. Vale dizer, não constarão antecedentes criminais contra o acusado.
Além da pena restritiva de direitos, para que ocorra a transação penal, deve o médico ressarcir os danos pleiteados pelo seu paciente.
Novamente, o médico se vê forçado a pagar por dano que entende não ter causado.
Negado pelo médico o ressarcimento ao dano, a transação penal não pode concretizar-se, advindo daí o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, instaurando-se o processo com o recebimento da mesma pelo magistrado.
Nova situação de fato. Com o processo crime instaurado, o Ministério Público deverá propor a suspensão condicional do processo, observando-se os requisitos objetivos previstos no artigo 89 da lei. Caso não o faça, deverá o magistrado fazê-lo, segundo a corrente jurisprudencial do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, que é dominante nesse sentido, e recentemente consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça.
A suspensão condicional do processo pede, entre outros requisitos, o ressarcimento do dano causado, salvo comprovada impossibilidade por parte do médico de fazê-lo.
Rejeitada mais esta tentativa de ressarcimento de dano na esfera criminal, por parte do médico, o processo criminal terá prosseguimento, com a oitiva das testemunhas de acusação e defesa, interrogatório do réu, debates e julgamento.
Há de salientar-se, segundo o entendimento de expressivos doutrinadores, como o magistrado Luiz Flávio Gomes e o Prof. Mário Sérgio de Oliveira, da Escola de Advocacia Criminal do Estado de São Paulo, escaparem os danos morais da alçada da justiça criminal, devendo serem pleiteados e solucionados na esfera cível. Ainda na esteira desses estudiosos, os danos patrimoniais são os únicos a serem discutidos no âmbito criminal.
Em caso de condenação em primeira e segunda instância, com o trânsito em julgado, torna-se a sentença da justiça criminal um título executório na esfera cível.
No campo indenizatório, na esfera cível, entendem alguns versados, ser um avanço a sedimentação da teoria objetiva em detrimento da culpa. A obrigação de indenizar, quando vista sob o enfoque da culpa stricto sensu, é cabível ante a inequívoca demonstração da imperícia, da negligência ou da imprudência, às vezes, associadas umas às outras. Fora desses limites, a improcedência da pretensão indenizatória é descabida.
Todavia, aflora em nosso tribunais a Teoria Objetiva, ou do risco, segundo a qual há necessidade de indenização a despeito da inocorrência da culpa do médico. A grande argumentação dispendida em favor dessa teoria objetiva é a dificuldade da produção de provas seguras e incontestáveis, principalmente a nível de imperícia, para a procedência da ação.
A título de excludente, na teoria do risco, fica o médico com a responsabilidade de demonstrar a inexistência de nexo de causalidade, ou presentes atos de terceiros, ou ocorrências de força maior e, ainda, a culpa do paciente pelo insucesso do procedimento médico adotado. A situação criada pede que, enquanto na esfera penal a dúvida é condutora ao caminho da absolvição, na esfera cívil nem a dúvida, nem a demonstração de isenção de culpa, faz escapar o médico da obrigação de indenizar, segundo a teoria objetiva.
Aponta-se como fator de pressão, e seria inocência demasiada nele não crer, o "lobby" pela implantação do seguro médico obrigatório. Nesse quadro traçado, delicada é a situação do cirurgião plástico, haja visto ser o seu contrato com o paciente-cliente, de fim e não de meio, vale dizer, prevalece o êxito do resultado final a cirurgia. Não havendo o cumprimento do contrato, mesmo por entendimento subjetivo do paciente, ou ainda, advindo seqüelas causadas por fatores que extrapolam a habilidade ou capacidade do profissional, surge a obrigação de indenizar.
Situações díspares poderão ocorrer, sendo a clássica estar o réu absolvido na esfera criminal, porém, condenado na cível ao pagamento de indenização por ação profissional sem culpa. Se, por um lado não é justo fazer com que a vítima arque sozinha com as conseqüências das seqüelas do procedimento médico insatisfatório, determinado por fatores independentes da habilidade profissional do médico, mais injusto ainda é fazê-lo, nessa situação, responder pecuniariamente sem culpa.
1- Advogado Criminalista e Diretor da Escola de Advocacia Criminal do Estado de São Paulo