INTRODUÇÃO
Pacientes tratados com Cisplatina podem apresentar alterações auditivas após seu uso. Há relatos de zumbido, perda auditiva e alterações na fisiologia da orelha interna (1,2,3,4,5). O grau de severidade depende da predisposição individual, dose, duração do tratamento, via de adminis¬tração, modo de administração e idade (6,7,8,9). A lesão inicial ocorre nas células da espira basal da cóclea, comprometendo as células ciliadas externas (10), leva a perda auditiva bilateral neurossensorial, geralmente simétrica e afeta as altas freqüências - 4.000 Hz a 8.000 Hz; mas, com o acúmulo de doses, pode progredir para as freqüências da fala (1,11,12,13,14).
A presença de uma energia acústica produzida na orelha interna de forma espontânea ou em resposta a um estímulo sonoro foi constatada por KEMP (15). Essa energia foi denominada emissões otoacústicas. Quando presentes, representam um forte indicativo de função coclear normal ou próxima do normal, tornando-se assim uma ferramenta indispensável na avaliação objetiva das deficiências auditivas sensorioneurais (16), desta forma, atuar no monitoramento e até prevenção de danos por agentes ototóxicos (17,18).
O produto de distorção surge da incapacidade da cóclea em amplificar de forma linear dois estímulos diferentes, ocorrendo uma intermodulação que resulta em um produto de distorção (2f1-f2) (19,20,21). Através das EOAPD, pode-se avaliar a função coclear de forma objetiva e em pequenas frações, desde a espira basal até a espira apical, por meio da variação das freqüências dos estímulos (16,22). A principal vantagem deste método é a especificidade de freqüência (23).
OBJETIVO
Investigar a audição por meio da audiometria tonal convencional, imitanciometria e das emissões otoacústicas - produto de distorção em pacientes que fizeram o uso de cisplatina e estão curados de câncer.
CASUÍSTICA E MÉTODO
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Protocolo 620/05.
Participaram deste estudo pacientes que utilizaram cisplatina e estão curados de câncer, e por livre demanda procuraram a Clínica de Fonoaudiologia da PUC- Campinas. Foram avaliados 8 pacientes com idade variando de 5 a 27 anos no período de março a junho de 2006. Estes pacientes tiveram câncer entre 6 meses a 13 anos de idade, sendo 4 do sexo masculino e 4 do sexo feminino. Foram excluídos da pesquisa, pacientes que apresentavam alterações de orelha externa e orelha média.
Procedimentos
Aplicou-se um questionário para coleta de informações referentes à presença ou ausência de queixa auditiva, ao passado otológico do paciente e de possíveis variáveis que pudessem interferir na análise dos resultados obtidos nas avaliações audiológicas: tempo de utilização da droga, dosagem ministrada, idade do início e fim do tratamento.
Inspeção do meato acústico externo - verificou-se a presença ou não de impedimentos para a realização de avaliação auditiva.
Audiometria Tonal limiar convencional (Audiômetro AC 40 Interacoustcs) - detecção dos limiares tonais de audibilidade, por via aérea, nas freqüências de 0,25; 0,5; 1;2; 3; 4; 6; 8 kHz. Na presença de perda auditiva - limiares acima de 25dB (24,25), a obtenção dos limiares tonais por via óssea, no intervalo de freqüências de 0,5 à 4KHz.
Medidas da imitância acústica (Equipamento AZ-7 Interacoustics) - nos pacientes que a imitanciometria revelava condições normais da orelha média, procediam-se às investigações com as emissões otoacústicas
Emissões otoacústicas por produto de distorção (ILO292 - Otodynamics) - foram analisadas as respostas das EOAPD em relação Sinal/Ruído, considerando o critério: presente - respostas de sete a nove freqüências; presente parcial - respostas de quatro a seis freqüências e ausente - respostas de zero a duas freqüências. Estas categorias de análise foram utilizadas também no estudo de CARVALHO, 2004 (20).
Análise Estatística
Foram utilizados testes estatísticos Kappa - PINHO, 2006 (26), teste Exato de Fisher AGREST, 1990 (27); WOOLSON, 1987 (28) e Teste de Significância de Regressão Logística DAVID; LEMESHOW, 1989 (29).
RESULTADOS
Ver Tabela 1.
Comparação entre as Orelhas
A Tabela 2 mostra a média dos resultados dos limiares tonais, em dB NA, obtidas nos testes da orelha direita e orelha esquerda, após tratamento.
Avaliação do comportamento das orelhas com alteração auditiva em relação às freqüências
acometidas
Observou-se um predomínio de perdas auditivas para freqüências agudas (4 kHz, 6 kHz, 8 kHz) nas orelhas acometidas, conforme mostra a Tabela 3.
Comparação dos resultados obtidos com os produtos de distorção e a audiometria tonal limiar (atl)
Ver Tabela 4.
3.5 Avaliação dos fatores de influência
Dividiu-se os achados entre as orelhas direita e esquerda, conforme mostra as Tabelas 5 e 6 na possível interferência da dose e idade nos resultados audiométricos.
Não há diferenças entre dosagem e idade nos pacientes com e sem alteração. Para verificar a diferença de idade foi utilizado o teste Exato de Fisher e para as diferenças na dosagem, aplicou-se o teste de significância de regressão logística (Tabela 7).
De acordo com o p-valor do teste (19,64%), não há diferenças significativas entre as idades do pacientes com alterações e os sem alterações (Tabela 8 e 9).
De acordo com o p-valor do teste Exato de Fisher, não há diferenças significativas na alteração e não alteração entre homens e mulheres.
DISCUSSÃO
As médias obtidas entre as orelhas direita e esquerda, após tratamento, apresentaram diferença estatística (Kappa), houve predileção no acometimento auditivo pelo lado direito, embora em algumas freqüências e em alguns pacientes a perda auditiva tenha sido simétrica. As perdas auditivas foram bilaterais e simétricas em 5 pacientes (62,5%). Assim, das 16 orelhas avaliadas obteve-se 10 orelhas (62,5%) com alterações dos limiares auditivos. O estudo mostrou que houve comprometimento auditivo em 62,5% dos pacientes na audiometria convencional. O predomínio do comprometimento foi nas freqüências agudas que não envolvem a área de fala. Apenas 1 paciente apresentou alteração nas freqüências da fala (1,2 kHz). Estes achados foram concordantes com as pesquisas de BENSADON,1998 (1); DISHTCHEKENIAN et al, 2000 (11) ; GARCIA et al,2003 (13) e KNIGHT et al, 2005 (14).
Dentre os 08 pacientes atendidos 03 apresentaram queixa de zumbido, o que não é mais um sintoma transitório embora subjetivo. É um achado possível em pacientes em uso de drogas ototóxicas (14). De acordo com estudos de BENSADON,1998 (1), o zumbido desencadeado pela cisplatina, para a maioria dos pacientes é um sintoma transitório. Nos trabalhos de ZOCOLI et al, 2003 (4) quase metade dos pacientes apresentou zumbido até o final do tratamento.
A dose de cisplatina utilizada durante todo o tratamento variou entre 200 mg/m2 a 780 mg/m2, a média da dose utilizada nos 8 pacientes foi 362 mg/m2. O tempo de quimioterapia variou de 4 meses a 2 anos. As doses quimioterápicas foram ministradas num intervalo de 1 a 9 semanas. A dose de cisplatina foi menor e mais fracionada em 2 pacientes sem alteração auditiva que fizeram tratamento ainda bebês. Não obtivemos significância estatística para dose de droga. Apesar da não significância estatística, os achados vão de encontro com os estudos de DRESCHLER et al, 1989 (6); PODOSHIN, L et al,1989 (7); SAKAMOTO et al, 2000 (8); GODOFREDO,2001 (9) PAZ et al, 2000 (12), que constataram que doses fracionadas afetam menos a audição do que quando é dada dose única. A predisposição familiar e a susceptibilidade individual também podem levar a perda de audição, dado também encontrado nos estudos de SILVA et al ,2000 (18) e FENIMAN, 2001 (30).
Observou-se que os resultados obtidos no exame de EOAPD foram concordantes aos encontrados na audiometria tonal como em AZEVEDO, 2003 (19).
O diagnóstico precoce do desenvolvimento de uma perda auditiva tem importância significativa na revisão dos protocolos terapêuticos aplicados; para fins de manutenção da qualidade da comunicação dos pacientes, como também a deficiência auditiva diminui a possibilidade de empregabilidade na vida adulta. Assim, torna-se fundamental traçar protocolos terapêuticos em equipe multidisciplinar, para atingir a cura com a máxima qualidade de vida.
CONCLUSÃO
Conclui-se que houve predileção quanto ao lado afetado, maior acometimento do lado direito. As perdas são simétricas em ambas orelhas. O acometimento auditivo teve predomínio nas freqüências acima de 6 kHz. Houve concordância entre a audiometria tonal limiar e emissões otoacústicas produtos de distorção.
Sugere-se que o protocolo de avaliação audiológica deva ser composto por entrevista, meatoscopia, audiometria tonal limiar convencional, audiometria de altas freqüências, medidas da imitância acústica e emissões otoacústicas antes, durante e pós-tratamento para adequada mensuração do grau e momento do acometimento auditivo. Como o exame de emissões otoacústicas é de fácil execução, não invasivo e rápido, pode ser utilizado durante o tratamento, e ser realizado com o paciente dormindo, debilitado e em qualquer idade.
Assim como a cisplatina, existem vários outros quimioterápicos novos que devem ser monitorados, dessa forma pode-se avaliar além da eficácia, o custo benefício e se necessário a substituição por outro equivalente.
AGRADECIMENTOS
À Dra Maria José Mastellaro, à Dra. Rosana Ribeiro, ao Dr. Luis Henrique Chechinato Costa, pelas importantes sugestões.
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