INTRODUÇÃO
A Displasia Ectodérmica representa um complexo grupo de doenças com mais de 170 características clínicas (1,2), com uma incidência de 7 em 10.000 nascidos vivos (1). O modo de transmissão genética é variável entre as diferentes apresentações da doença, podendo ser autossômica e ligada ao X - dominantes ou recessivas e de transmissão esporádica (1,2). Por definição, as Displasias Ectodérmicas possuem alterações clínicas que afetam principalmente as estruturas derivadas do ectoderma, como pele e anexos cutâneos, podendo ocorrer o acometimento de estruturas não ectodérmicas relacionadas (4). As alterações mais comumente encontradas devido a defeitos da epiderme e seus apêndices ocorrem no cabelo, dentes, unhas e glândulas sudoríparas.
Uma das situações relacionadas à Displasia ectodérmica, já citada na literatura por outros autores (3,5-12), é a Rinite Atrófica, a qual geralmente acomete crianças em infância tardia (3,6) ou adolescentes (4). A Rinite atrófica caracteriza-se por uma doença inflamatória crônica do nariz, com produção excessiva de crostas fétidas (6) devido ao movimento dos cílios nasais ser deficiente. Além de relacionada à Displasia Ectodérmica, a Rinite Atrófica pode ser encontrada secundariamente a algumas doenças granulomatosas como a Tuberculose e a Doença de Hansen (5).
OBJETIVO
Relatar o caso de uma criança que logo no primeiro mês de vida desenvolveu sintomas de Rinite Atrófica e demonstrar a associação dessa patologia com a Síndrome Genética da Displasia Ectodérmica. Além disso, evidenciar a importância que deve ser dada ao tratamento da Rinite Atrófica pelos otorrinolaringologistas devido às complicações que podem estar relacionadas.
RELATO DE CASO
Relatamos um caso de um paciente masculino, estudante, na época com 7 anos, que procurou consultório médico com queixas de obstrução nasal e presença de crostas, rinorréia mucopurulenta, assim como fetidez nasal e dificuldades respiratórias desde o primeiro mês de vida.
Durante a gestação, a mãe relata ter sido vítima de duas ameaças de aborto, aos 3 e 6 meses. A primeira Ultrassonografia do Pré-Natal foi realizada aos 7 meses, quando foi diagnosticada Hidrocefalia. O parto foi prematuro, de cesária, tendo nascido com cerca de 32, 33 semanas. Na UTI neonatal permaneceu por 22 dias.
Logo na 1ª semana após ter recebido alta, já em casa, a mãe percebeu a ocorrência de obstrução nasal, seguida de dificuldades respiratórias, com formação abundante de crostas, mau cheiro progressivo e rinorréia de caráter mucopurulento. Tais sintomas permanecem até hoje, tendo sofrido 2 episódios de epistaxe até então.
A partir da idade de 6 meses, o paciente iniciou com episódios constantes de febre, que pioravam quando exposto ao calor, tendo tido uma convulsão febril aos 8 meses. Passou por várias antibioticoterapias, imaginando-se que se tratassem de infecções recorrentes. A mãe conta que os sintomas só aliviavam ao banhar a criança em água fria ou colocá-la sobre o piso gelado. Recebeu, aos 3 anos, o diagnóstico de Displasia Ectodérmica Anidrótica ou Hipohidrótica.
O paciente apresenta história de infecções de vias aéreas superiores e otites recorrentes, desde cerca de 2 meses de idade. Aos 4 anos foi diagnosticada a ocorrência de miopia. Apresenta queixas de hipoacusia, disfonia ocasional e fotofobia, além de um retardo no desen¬vol¬vimento psicomotor.
No exame físico e exploração geral, observa-se à rinoscopia, presença de crostas e rinorréia mucopurulenta, com obstrução nasal. Já na otoscopia há presença de perfuração central em membrana timpânica direita e retração em membrana esquerda. A pele mostra-se fina, seca e descamativa, com hipotricose e ausência de mamilos. O cabelo é fino, seco e hipocrômico. Há presença de hipodontia. As unhas são hiperconvexas. A face possui nariz em sela, com hipoplasia de maxila, protrusão de lábio inferior, fronte proeminente, hiperpigmentação peri-orbitária e orelhas de implantação baixa.
O exame audiométrico indicou perda condutiva auditiva bilateral e a nasofibroscopia demonstrou edema peritubáreo severo e fossas nasais amplas com formação abundante de crostas.
Algumas das características físicas citadas na descrição do exame físico podem ser visualizadas nas Figuras 1, 2 e 3.
DISCUSSÃO
Dentre todos os cerca de 30 tipos de Displasias Ectodérmicas em que já se conhecem suas alterações clínicas, causas genéticas e moleculares (1, 4), a forma mais encontrada é a Hipohidrótica, também chamada de Displasia Ectodérmica Anidrótica ou de Síndrome de Christ-Siemens-Touraine's (6). Esta forma está ligada a mutações em genes recessivos ligados ao X ou, mais raramente, a mutações em genes autossômicos dominantes e recessivos (1, 2, 13). Por este motivo, apenas homens expressam de forma completa suas características (3, 13).
Cerca de 94% dos casos da doença ocorrem devido à mutação do gene ED1 (2), em Xq12-q13.1 (13), o qual foi isolado por Kere at al. em 1996 (1, 14). Até hoje, cerca de 53 diferentes mutações no gene ED1 já foram descritas (13). Esse gene é responsável por codificar 2 isoformas de Ectodisplasina, uma proteína de colágeno transmembrana que se assemelha à família das proteínas que ligam o Fator de Necrose Tumoral. A mutação no domínio homólogo ao dos ligantes do TNF, demonstra que essa região da proteína é fundamental para o seu funcionamento (1).
As duas isoformas da Ectodisplasina são a ED1-A1 e a EDA-A2, as quais ligam-se, respectivamente, aos receptores EDAR e XEDAR. Ao ocorrer tais ligações são ativadas as cascatas do Fator Nuclear (NF)êB e do JNK/c-fos/c-jun, ambas responsáveis pela ativação de sinais para atuação do Fator de Crescimento da Epiderme, que permitem a diferenciação da epiderme e de seus anexos (1, 2, 13). Desta forma, conclui-se que a Ectodisplasina tem função na sobrevivência, comunicação e no crescimento celular (1).
Além dessa mutação, outra possível é no gene DL, responsável pela codificação do receptor EDAR, o qual causa Displasia Ectodérmica de caráter autossômico recessivo ou dominante (1).
Dentre as manifestações da Displasia Ectodérmica Hipohidrótica, a mais prevalente é a redução ou completa ausência das glândulas écrinas, sebáceas e lacrimal. Todavia, as glândulas apócrinas encontram-se normais (1-3, 6, 13).
Uma das conseqüências da alteração glandular é a impossibilidade de suar, o que se manifesta com elevação da temperatura corporal, crises de hipertermia e convulsões febris (3, 13). A pele, geralmente hipopigmentada (2), torna-se fina e desidratada, muitas vezes descamativa (6), podendo ser sede de dermatites atópicas, xerodermia e placas de liquenificação (3).
A alteração das glândulas lacrimais leva a secreções de pouco volume e a dacriocistites de repetição (3, 6).
Com relação à formação dentária encontra-se hipodontia ou adontia. Os dentes são de tamanho pequeno e de forma cônica (1-3, 6, 13).
A hipotricose é freqüente, podendo estar associada à alopecia muitas vezes. O cabelo é fino, seco e hipocrômico, como todos os outros pelos do corpo (1-3, 6).
Dentre as anomalias ungueais, podem ser encontradas unhas ausentes, hiperconvexas ou hipertróficas, distróficas ou queratinizadas (2, 3).
As anomalias faciais demonstram fáscies características podendo ser encontradas alterações como nariz em sela, fronte proeminente, orelhas pontiagudas de baixa implantação, protrusão de lábio inferior e pigmentação peri-orbitária.
Outras alterações encontradas são a hipoplasia de glândulas mamárias, disfunções visuais, nascimento prematuro e retardo mental.
As manifestações otorrinolaringológicas são, em sua maioria, devido a alterações secretórias das glândulas mucosas, as quais podem levar a infecções recorrentes. É freqüente a ocorrência de infecções de vias aéreas superiores e Otites - média, externa e eczematosas de repetição - muitas vezes acompanhadas de hipoacusia neurossensorial. O paciente pode apresentar quadros crônicos como faringite, laringite, disfonia e odinofagia além da rinite atrófica acompanhada de epistaxes e catarros freqüentes (3).
A ocorrência da Rinite Atrófica está relacionada ao distúrbio de secreção das glândulas mucosas, além da associação hereditária com a Displasia Ectodérmica (4, 5, 7). Juntamente com a drenagem e o movimento ciliar deficiente, há retenção de secreções, com posterior desenvolvimento de crostas e odor fétido. A mucosa mostra-se sangrante e ulcerada (4).
A Rinite Atrófica é uma patologia que normalmente se desenvolve na infância tardia (3,6) ou no início da puberdade (4), como relatado em outros casos descritos na literatura (3, 15). Todavia no caso descrito, seu quadro clínico revelou-se pouco tempo após o nascimento, como relatado acima, sendo diagnosticada aos 7 anos.
O nariz em sela está relacionado ao suprimento sanguíneo inadequado durante o crescimento dos ossos nasais e septais, fato que ocorre devido à reação inflamatória severa encontrada na Rinite Atrófica (6).
Após a descrição dos sinais e sintomas encontrados na Displasia Ectodérmica percebemos que o paciente relatado demonstra grande parte deles, mostrando-se um caso peculiar, já que a doença se apresenta, fenotipicamente, de forma variável em diferentes pessoas (2).
O tratamento utilizado ainda é apenas sintomático, utilizando-se de umidificação e lavagens nasais freqüentes para prevenir o odor e a formação de crostas (3).
CONCLUSÃO
A Rinite Atrófica é uma patologia que está ligada as alterações genéticas e moleculares da Displasia Ectodérmica. Apesar de não coexistir necessariamente em todos os casos de Displasia Ectodérmica, é uma condição que, dentre tantas alterações encontradas na Displasia Ectodérmica, pode ser considerada como uma das queixas predominantes do paciente, como demonstrado nesse relato de caso. Por essa razão, deve ser acompanhada e tratada com atenção pelos otorrinolaringologistas, já que está relacionada a vários casos de complicações infecciosas.
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