INTRODUÇÃO
O termo miringoplastia foi empregado pela primeira vez em 1953 por HORST WULLSTEIN ao relatar sua técnica de reconstrução do sistema timpanossicular nos casos de otite média crônica. A despeito da técnica empregada, os principais objetivos da cirurgia segundo SHEEHY (1) são a erradicação da condição patológica, se presente, com conseqüente obtenção de uma orelha média seca; uma membrana timpânica intacta; preservação ou reconstrução do complexo da orelha média/externa e restauração dos mecanismos que conduzem o som.
A membrana timpânica (MT) é formada por três camadas: uma camada externa, composta por epitélio escamoso queratinizado, uma camada fibrosa mesodérmica intermediária e uma camada mucosa endodérmica interna. Quando em solução de continuidade, a MT se regenera a partir de dois mecanismos de migração epitelial conhecidos. Um deles é o movimento centrífugo a partir do umbigo da MT. O segundo padrão mitótico, considerado essencial para a cicatrização das soluções de continuidade, é o movimento centrípeto, que ocorre em toda pars tensa da MT, com maior atividade ao redor do anel timpânico. Nas miringoplastias, o enxerto funciona como um substituto do extrato córneo sobre o qual deslizam correntes de migração epitelial, a fim de reparar a perfuração (2).
Na literatura, vários estudos têm discutido quais as condições da orelha média no ouvido crônico que podem de alguma maneira influenciar na cicatrização da MT e conseqüentemente no resultado anatômico final nas miringoplastias. O estudo clássico do House estabeleceu que a presença da infecção ativa e hiperplasia da mucosa na orelha média são fatores que diminuem o sucesso cirúrgico. Outros estudos citam como fatores preditivos, além das condições da mucosa da orelha média, reoperação, material utilizado como enxerto, técnica da posição do enxerto e tamanho da perfuração timpânica (3, 4, 5).
O presente estudo avalia a possibilidade dos achados intra-operatórios influenciarem o resultado anatômico final das miringoplastias realizadas por médicos residentes do 2o ano no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco.
CASUÍSTICA E MÉTODO
O desenho deste estudo foi retrospectivo através da revisão de prontuários onde foram analisados 94 pacientes com diagnóstico de otite média crônica não-colesteatomatosa submetidos a miringoplastia tipo I de Wüllstein durante o período de 2002-2003.
Foi utilizado um protocolo para o registro das informações de cada paciente no pré-operatório, trans-operatório e pós-operatório. No protocolo foram preen¬chidas as características dos pacientes como idade, acesso cirúrgico, tipo e posição do enxerto. A presença da infecção na orelha média, o estado da mucosa, a presença ou não da timpanoesclerose e o tamanho da perfuração foram analisados e comparados com o resultado anatômico final-fechamento ou não da perfuração. A cirurgia foi realizada pelos médicos-residentes juntamente com seus preceptores. O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Centro de Ciências da Sáude/Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco. (Projeto nº 0241.0.172.000-06/Protocolo 233-06 aprovado dia 01/11/06).
RESULTADOS
Foram submetidas à cirurgia 97 orelhas de 94 pacientes, sendo 29 homens e 68 mulheres, com idade média de 25,16 anos (variação de 10-52 anos). Todas as cirurgias foram realizadas sob anestesia geral, sendo o acesso retroauricular a via cirúrgica mais utilizada. (n=91). Na maioria dos pacientes foi utilizada a fáscia como enxerto pela técnica underlay (n=94).
Os resultados do estudo das variáveis que podem influenciar na cicatrização da MT foram analisados estatisticamente e apresentados nas tabelas abaixo.O sucesso cirúrgico equivale a presença da MT íntegra aos 6 meses de pós-operatório da miringoplastia.
Na Tabela 1 apresenta-se o estudo da membrana timpânica segundo a presença ou não da secreção na orelha média durante o trans-operatório. Esta tabela mostra que a maioria das orelhas operadas com completa cicatrização da MT, não apresentava secreção no trans-operatório. No entanto, ao nível de 5,0% não houve associação significativa entre a secreção na orelha média e a condição da MT conforme resultados do teste Exato de Fisher (p > 0,05).
Na Tabela 2 apresenta-se o estudo da membrana timpânica segundo o estado da mucosa da orelha média durante o trans-operatório. Esta tabela mostra que 11 casos das perfurações timpânicas que apresentavam hiperplasia mucosa na orelha média obtiveram sucesso cirúrgico. Nas orelhas com mucosa sadia houve 80% de sucesso cirúrgico. Entretanto ao nível de 5,0% não houve associação significativa entre a mucosa na orelha média e a condição da MT conforme resultados do teste Exato de Fisher (p > 0,05).
Na Tabela 3 apresenta-se o estudo da membrana timpânica segundo a presença ou ausência de timpanoesclerose. Desta tabela constata-se que das 78 orelhas com MT íntegra no pós-operatório, 85,7% não, esta relação houve associação significativa entre a presença ou ausência de timpanoesclerose e a condição da MT conforme resultados do teste X2 (p > 0,05).
Na Tabela 4 apresenta-se o estudo da membrana timpânica segundo o tamanho da perfuração. Desta tabela constata-se que dos 56 casos com perfuração maior que 50%, houve 78,5% de sucesso cirúrgico. Nas perfurações menores o sucesso da pega do enxerto foi de 85,4%. Nesta relação não houve associação significativa entre o tamanho da perfuração e a condição pós-operatória da MT conforme resultados do teste X2 (p > 0,05).
DISCUSSÃO
O objetivo anatômico final nas miringoplastias é a obtenção de uma orelha média seca através de uma membrana timpânica íntegra. Estudos na literatura têm discutido quais as condições da orelha média no ouvido crônico que poderiam de alguma maneira influenciar na cicatrização da MT e conseqüentemente alterar o resultado anatômico final.
O presente estudo apresentou um sucesso de 80,4%, considerando o fechamento total da perfuração. Comparado à literatura, é um resultado satisfatório. SHEEHY (1) em uma revisão de 472 casos apresentou um índice de fechamento da perfuração de MT de 97% e KOTECHA (6), em seu estudo, apresentou um índice de 82,2%. Avaliando populações sócio-economicamente semelhante à nossa amostra, observamos que o sucesso cirúrgico variou de 66,6%% (9) a 78% (7,8,9,10). O estudo de FUKUCHI realizado com 37 pacientes atendidos no ambulatório de otorrino¬laringologia da Faculdade de Medicina do ABC obteve 51,4% de fechamento da perfuração da MT na primeira cirurgia e 65% considerando as re-operações (11).
A presença ou não da otorréia intra-operatória não influenciou no resultado anatômico final. A otorréia intermitente é uma característica da otite média crônica simples. Segundo SISMANIS, a agudização da otite média crônica com infecção purulenta da orelha média é contra-indicação relativa para a cirurgia da miringoplastia (12). Por outro lado, SHEEHY preconiza uma orelha seca para melhor resultado cirúrgico (13) e GERSDODOFF M enfatiza que orelhas operadas na vigência de otorréia apresentam piores resultados que as orelhas secas (14). WHERS R(15). comenta que a otorréia pode estar presente na orelha média, sem, contudo significar infecção ativa, principalmente se a secreção for serosa, indolor e com cultura bacteriana negativa. Essa condição é comumente conhecida como orelha úmida, que não apresenta contra-indicação cirúrgica pela otorréia. A cultura da secreção não fez parte do nosso protocolo, mas as 9 orelhas operadas com otorréia apresentavam secreção serosa e indolor, com fechamento da MT em 7 das mesmas. Estudos como MAK D (7) e BLACK JH (8,9) não encontraram associação significativa entre a secreção serosa na orelha média e a cicatrização da MT, concordando com nossos resultados. Deste modo, observa-se que a cirurgia pode ser realizada independentemente da orelha permanecer totalmente seca. Essa informação toma maior importância nos pacientes do SUS, em que o difícil acesso ao sistema de saúde, muitas vezes, não nos permite mantê-los nas condições ideais para a cirurgia.
Na avaliação do estado da mucosa, foi observado que o mesmo não influenciou nos resultados cirúrgicos. O grau de comprometimento da mucosa da orelha média indica a extensão da doença para a mastóide, pois a hiperplasia da mesma denota má-aeração importante. SHELTON C (13) avaliou a mucosa da orelha média como principal fator no estadiamento da abordagem cirúrgica em 400 casos na House Ear Clinic. No estadiamento proposto, que avaliava otorréia, cadeia ossicular, mucosa da orelha média, dentre outros fatores, 75% dos casos foram indicados para mastoidectomia e 15% para miringoplastia. O sucesso cirúrgico com fechamento do GAP aéro-ósseo para menor ou igual a 20dB ocorreu em 68% das orelhas com o estribo presente. ALBU S (16) ao analisar os fatores prognósticos que determinam o sucesso pós-operatório da cirurgia otológica concluiu que o estado da mucosa é o fator preditivo mais importante. No presente estudo, a avaliação do acometimento da mucosa da orelha média foi realizada por vários cirurgiões diferentes. Não obtivemos uma uniformidade dos dados, o que pode ter influenciado nos nossos resultados.
A timpanoesclerose é uma degeneração hialina da camada submucosa da MT e pode ser um fator de risco para falha na miringoplastia. As orelhas com timpanoesclerose obtiveram pior resultado, estatisticamente significativo, que aquelas com MT normal. Deste modo, observamos que a presença da timpanoesclerose pode prejudicar a cicatrização da membrana timpânica. KAGEYAMA-ESCOBAR (17), em seu estudo, apresentou 82% de fechamento de perfuração timpânica e observou que a timpanosclerose estava entre os fatores de risco para insucesso cirúrgico, principalmente quando esta envolvia difusamente a MT. Já WIELINGA (18), avaliando a influência da timpanosclerose nas miringoplastias, estudou 555 miringoplastias e concluiu não haver relação entre a presença ou ausência desta, mesmo que difusa, no resultado final. Recomendamos que, quando viável, os focos devem ser removidos a fim de facilitar a migração epitelial e o fechamento da perfuração da MT.
O tamanho da perfuração da MT, além de indicar uma cirurgia mais trabalhosa para os residentes iniciantes, pode indicar pior resultado anatômico (5,6,13, 19). ALBU S (16) observou que perfurções menores que 50% apresentaram melhor prognóstico anatômico e funcional. GONZÁLES FC (20) realizou um estudo retrospectivo com 197 miringoplastias em que o único fator decisivo para o sucesso cirúrgico foi o local da perfuração, com melhores resultados nas perfurações posteriores e piores nas subtotais. HALIK JJ (21) demonstrou pior cicatrização nas crianças menores de 10 anos de idade e nas perfurações anteriores. No presente estudo, em relação ao tamanho da perfuração, houve uma tendência a melhores resultados nas perfurações menores que 50%, apesar da falta de correlação estatística.
CONCLUSÃO
O resultado final anatômico das miringoplastias pode ser influenciado por diversos fatores. Ao analisarmos alguns desses fatores concluímos que o paciente, uma vez operado por acesso retroauricular, utilizando fáscia como enxerto e pela técnica underlay, terá melhores resultados antômicos com total fechamento da perfuração se houver ausência de timpanoesclerose na MT. A presença da otorréia e a alteração da mucosa da orelha média não alterou o resultado cirúrgico final. Perfurações menores que 50% podem apresentar melhores resultados que perfurações totais. É importante ressaltar que apesar das variáveis serem analisadas separadamente, na prática clínica todos esses fatores estão interligados e contribuem concomitantemente na cicatrização da MT.
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