INTRODUÇÃO
Os acidentes por arma de fogo vêm aumentando progressivamente em todo o mundo (1). E o Brasil, infelizmente, destaca-se neste contexto, sendo mais de 32.000 mortes ao ano decorrentes deste tipo de acidente (2) .
As lesões que ocorrem na região da cabeça e pescoço não são raras e comumente têm elevada morbidade e mortalidade (1,3,4). O acometimento da pirâmide nasal também não é raro, entretanto, o relato de projéteis de arma de fogo atuando como corpos estranhos nas fossas nasais é pouco observado na literatura (5,6).
DAYAL e SINGH (6) apresentaram a situação de um paciente vítima de acidente por arma de fogo, com lesões significativas na face, no qual foi constatado radiologicamente a existência de objeto metálico na rinofaringe. Por outro lado, a migração espontânea de corpos estranhos pelos tecidos do organismo, do tipo metálico ou não, é descrita e a fossa nasal pode fazer parte do caminho ou mesmo ser o ponto final da movimentação do corpo estranho (7,8).
Relatamos aqui o caso de uma paciente de 30 anos com história de acidente por arma de fogo em região occipital direita há 2 anos na qual evidenciou-se a presença do projétil no interior da cabeça da concha nasal inferior direita.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 30 anos, natural de Salvador / BA, residente em Bragança Paulista / SP, procurou o ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário São Francisco queixando-se de obstrução nasal bilateral, predominante à direita, associada a episó¬dios de cefaléia maxilar direita. Não havia outras queixas relacionadas. Os sintomas tiveram piora há dois anos, após acidente por arma de fogo, no qual, segundo a paciente, houve apenas um orifício de entrada, na região occipital direita. A mesma relatou que o projétil não foi retirado.
Após exame otorrinolaringológico, observou-se à nasofibroscopia desvio septal grau 3, zona 2 alta à direita e grau 2, área 2 baixa à esquerda, além de hipertrofia de conchas nasais inferiores, mais acentuada à direita. Foi solicitada tomografia computadorizada de seios paranasais que evidenciou a presença de imagem hiperdensa de características metálicas em fossa nasal direita, na topografia da concha inferior, não se observando imagens sugestivas de estilhaços nos outros cortes (Figura 1).
Indicado a cirurgia, realizou-se septoplastia bilateral e a retirada do projétil do interior da concha nasal inferior direita por via endoscópica. Foi feita incisão superficial na mucosa da cabeça da concha, suficiente para vizualização do projétil. Este foi facilmente retirado com simples tração (Figura 2). Finalmente, uma turbinectomia inferior parcial bilateral, também via endoscópica, completou o procedimento. Não foi necessário tamponamento nasal. Durante a indução anestésica foram feitos 2 gramas de cefazolina (EV) e a paciente fez uso de cefalexina (2 gramas / dia - VO) nos primeiros 7 dias após a cirurgia. O exame pericial do projétil revelou o calibre 38. O pós-operatório transcorreu satisfatoriamente, estando a paciente no momento sem queixas.
DISCUSSÃO
A obstrução nasal possui várias causas, como o desvio septal e a hipertrofia de conchas nasais. Apesar de ser menos comum, a presença de um corpo estranho no interior da fossas nasais também pode ser uma dessas causas (9,10,11).
Mesmo que os acidentes por arma de fogo apresentem elevada incidência nos dias de hoje, são pouco descritos casos nos quais projéteis se comportem como corpos estranhos nas fossas nasais (5).
Na literatura consultada observamos somente um caso, relatado por DAYAL e SINGH (6) , no qual constatou-se a presença de objeto metálico na rinofaringe.
O diagnóstico dos corpos estranhos nasais não apresenta maiores dificuldades. Além do quadro típico de obstrução nasal unilateral e/ou rinorréia hialina ou purulenta fétida, dependendo do tempo de evolução, o exame otorrino¬la¬ringológico e, em casos selecionados, a nasofibros¬copia e a tomografia computadorizada de seios paranasais desvendam o diagnóstico (1,10,11) .
Em nosso relato a anamnese e os exames físico e de vídeo foram essenciais ao revelarem o desvio septal bilateral e a hipertrofia de conchas predominante à direita, entretanto, somente após a realização do exame de imagem o diagnóstico foi concluído. O que nos deixou profundamente intrigados foi como esse projétil se alojou no interior da concha inferior, sendo que seu orifício de entrada foi único e ocorreu na região occipital. Haveria um outro orifício de entrada? A paciente afirmou veementemente que não. É realmente surpreendente como não ocorreram lesões em estruturas nobres e demais seqüelas após o acidente. Uma explicação convincente e aceita seria a migração espontânea do corpo estranho, situação esta já observada e relatada por SALVATI et al (7) e por ILKKO et al (8) . A ausência de estilhaços nos cortes da tomografia computadorizada é argumento a favor desta explicação proposta.
A conduta ideal na presença de um corpo estranho nasal é a sua imediata remoção, já que esta é uma urgência otorrinolaringológica (9,11) . Diante de um projétil de arma de fogo presente na fossa nasal, a retirada do mesmo também é o mais indicado, porém, quando ele não gera desconforto ao paciente ou quando a sua retirada implicará em riscos maiores que os benefícios pode-se optar por conduta conservadora (1,3,4) .
Nossa paciente apresentava queixa obstrutiva nasal causada inicialmente pelo desvio septal bilateral e pela hipertrofia de conchas. Estes sintomas não eram tão intensos antes do acidente, mas a presença do corpo estranho intensificou a queixa obstrutiva da paciente. Sendo assim, para completo alívio dos sintomas, preferimos realizar a retirada do projétil junto da septoplastia e da turbinectomia parcial inferior bilateral no mesmo ato operatório. Torna-se necessário mencionar que antibioticoterapia pós - operatória foi imprescindível pelo risco de infecção da cartilagem septal.
CONCLUSÃO
Os acidentes por arma de fogo podem não trazer de imediato prejuízo à saúde do paciente, não necessitando, então, da remoção do projétil. Este, algumas vezes, pode se comportar como corpo estranho após uma possível migração através dos tecidos. Havendo sintomas ou risco de vida, será pertinente a sua remoção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Reiss M, Reiss G, Pilling E: Gunshot injuries in the head and neck area - basic principles, diagnosis and managment. Schweiz Rundsch Med Prax, 1998, 87 (24): 832-8.
2. Brasil registra mais mortes por armas de fogo do que conflitos armados internacionais. Disponível em http: www.unescobrasil.org.br . Acessado em 09 de dezembro de 2005.
3. Castro C, Santos S, Fernandez R, Labella T: Non-fatal firearm injuries of the head and neck. An Otorrinolaringol Ibero Am, 1989, 16 (3): 257-70.
4. Ogunleye AO, Adeleye AO, Ayodele KJ, Usman MO, Shokunbi MT: Arrow injury to the skull base. West Afr J Med, 2004, 23 (1): 94-6.
5. Sobrinho FPG, Jardim AMB, Sant'Ana IC, Lessa HA: Corpo estranho na nasofaringe: a propósito de um caso. Rev Bras Otorrinolaringol, 2004, 70 (1): 24 -8.
6. Dayal D, Singh AP: Foreign body nasopharynx. J Laryngol Otol, 1970, 84: 1157-60.
7. Salvati M, Cervoni L, Rocchi G, Rastelli E, Delfini R: Spontaneus movement of metallic foreign bodies. Case Report. J Neurosurg Sci, 1997, 41 (4): 423 - 5.
8. Ilkko E, Reponen J, Ukkola V, Koivukangas J: Spontaneus migration of foreign bodies in the central nervous system. Clin Radiol, 1998, 53 (3): 221 - 5.
9. Hong D, Chu YF, Tong KM, Hsiao CJ: Button batteries as foreign bodies in the nasal cavities. Int J Pediatr Otorrinolaryngol, 1987, 14 (1): 15-9.
10. Duarte AF, Soler RC, Zavarezzi F: Endoscopia nasossinusal associada a tomografia computadorizada de seios paranasais no diagnóstico de obstrução nasal crônica. Rev Bras Otorrinolaringol, 2005, l 71 (3): 361-3.
11. Pinheiro SD, Freitas MR. Obstrução nasal. In: Campos CAH, Costa HOO. Tratado de Otorrinolaringologia Vol 3. 1ª ed. São Paulo: Roca; 2003, p. 166-74.