INTRODUÇÃO
Epidermólise bolhosa congênita (EB) representa grupo heterogêneo de patologias de caráter genético caracterizada pela formação de bolhas na região cutâneo-mucosa, após trauma mínimo, como resultado de fragilidade mecânica do epitélio1,2,7. Há, também, uma forma adquirida que não é relacionada à que descreveremos5.
Mais de 20 subtipos têm sido descritos, de acordo com o tipo de padrão genético, distribuição regional das lesões e aparência individual destas, presença ou não de atividade extracutânea e achados ultraestruturais e imunohistoquímicos.
Estes subtipos são divididos em três categorias: eb simplex, EB juncionalis e EB distrófica6. Alguns dos subtipos são relativamente comuns, porém outros são bastante raros como a forma juncional progressiva, com apenas 18 casos na literatura. É imperativo que estas crianças sejam acompanhadas, já que elas podem apresentar obstrução de vias aéreas superiores e/ou disacusia.
RELATO DE CASO
Apresentamos criança com 18 meses de idade, sexo feminino, procedente de São Paulo, cujos pais são primos em segundo grau. Não há relato de casos semelhantes na família, nem história de descendência européia. A criança apresentava bolhas hemorrágicas na boca e disfonia, desde os primeiros dias de vida. Na evolução, as bolhas apareceram também na face, tronco e mãos, além de distrofia ungueal e cáries. Não havia relato de surdez por parte dos pais.
O exame físico revelava bolhas hemorrágicas na face, tronco e extremidades (Figura 1). Havia atrofia da pele no dorso das mãos, com perda parcial de impressões digitais e hiperqueratose em mãos e pés.
Na cavidade oral, apresentava lesões bolhosas polimórficas nas regiões jugal, vestibular e vermelhidão nos lábios (Figura 2). O esmalte dentário era defeituoso, com cáries. O exame endoscópico revelou processo inflamatório não característico na mucosa laríngea, sem formação de bolhas. A audiometria de tronco cerebral era normal. A criança era pequena em relação à idade e nenhum acometimento sistêmico foi encontrado.
A biósia de pele revelou EB juncionalis progressiva. À microscopia óptica, encontrou-se formação de bolha dermoepidérmica com conteúdo seroso (Figura 3). Notou-se, também, vasodilatação e infiltrado inflamatório. A microscopia eletrônica mostrou separação entre o estrato basal e a lâmina lúcida cacterizando este tipo de patologia (Figura 4).
A criança evoluiu com aparecimento de vários ciclos de formação de bolhas, geralmente com infecção secundária.
DISCUSSÃO
EB progressiva é raro subtipo de epidermólise bolhosa, descrita inicialmente por Gedde-Dahl6. EB simplex é mais prevalente, enquanto a forma juncional é bastante rara . A forma simplex é transmitida de maneira autossômica dominante; a juncional de forma autossômica recessiva e a distrófica tem padrão variável5.
Fisiopatologicamente, é causada pela adesão anômala entre os componentes do epitélio, o que pode ocorrer em diferentes níveis, depedendo do subtipo em questão. Na forma juncional, a ruptura ocorre na lâmina lúcida da membrana basal e, na distrófica, na lâmina densa. Devido à pequena coesão, há formação de bolhas após trauma mínimo.
Para o otorrinolaringologista, as formas juncional e distrófica são importantes porque podem ocorrer lesões nas vias aéreas e esôfago. Na forma juncional, raramente, pode ocorrer disacusia.
As primeiras manifestações geralmente ocorrem na infância ou adolescência, e são caracterizadas pela formação de bolhas na pele, difusas pelo corpo, principalmente onde o atrito é maior, como ocorre em nosso caso. Com exceção da forma distrófica, na há cicatrizes. Distrofia ungueal pode ocorrer nas formas juncional e distrófica4 .
Nestes dois subtipos, a cavidade oral é susceptível a injúrias, como erosões, bolhas e eventual desnudamento da língua12, além de anquiloglossia e microstomia. A presença de acometimento do esmalte dentário é característica da forma juncional10,12.
No caso apresentado, notamos presença de lesões polimórficas na mucosa oral e na língua. Não havia evidência de desnudamento da língua, nem anquiloglossia, talvez por tratar-se da forma mais branda de acometimento, ou devido ainda ao pequeno tempo de evolução.
O envolvimento laríngeo, usualmente, ocorre nos primeiros dois anos de vida e pode ter caráter indolente ou severo. Inicialmente, manifesta-se como rouquidão intermitente e pode levar à estenose laríngea, sendo a traqueostomia necessária nestes casos4. Lesões laríngeas típicas não foram encontradas em nosso caso. Alguns pacientes podem desenvolver lesões no trato digestivo, onde estenose esofágica ou bolhas perianais podem aparecer3,8,11.
Apesar das manifestações clínicas sugerirem o diagnóstico, ele só é confirmado pelo estudo histopatológico, onde o plano de clivagem indica o subtipo envolvido. A EB juncional mostra, à microscopia óptica bolhas subepidérmicas e perda das papilas dérmicas; na microscopia eletrônica, ruptura na região da lâmina lúcida. Não são encontrados depósitos eletrodensos em todos os casos. Os hemidesmossomos podem estar em número diminuído ou ausentes1,9.
Na primeira descrição desta patologia, por Gedde-Dahl, o paciente apresentava disacusia neurossensorial e o autor acreditou que seria parte da síndrome. Porém, outros estudos mostraram que a disacusia era entidade diferente, ligada a outro gene, mas transmitida de forma intimamente ligada ao gene da epidermólise na população norueguesa. Por isto, é importante avaliar se há presença de hipoacusia nestes pacientes. Em nosso caso, a audição revelou-se normal.
O tratamento é multidisciplinar e, infelizmente, nenhum tipo específico de terapêutica existe. Deve-se evitar traumas cutâneo-mucosos; as infecções secundárias devem ser tratadas com antimicrobianos tópicos e/ou sistêmicos e a dieta rica em proteínas, ferro e zinco. Acompanhamento odontológico é imperativo. O uso de difenilhidantoína e vitamina E é baseado em estudos em que se assinala a inibição da síntese de colágeno, mas seu uso é controverso6.
Os otorrinolaringologistas devem estar familiarizados com esta patologia no diagnóstico diferencial de lesões bolhosas da cavidade oral e vias aéreas superiores e também no diagnóstico das disacusias.
REFERÊNCIAS
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3. Feurle, G. E.; Weisdauer, H.; Bauldauf, G.; Brancs, T. - Management Of Esophageal Stenosis in Recessive Dystrophic Epidermolysis Bullosa. Gastroenterol). 87: 1376-80 (1984)
4. Fine, J. - Inherited Epidermolysis Bullosa. In: Fine, J (1992). Bullous Diseases. Igakushoin. New York-Tokyo (1992) ppl. 135-153
5. Fonseca, J. and Obadia, L. - Epidemólise bolhosa: Recentes Avanços. An.Bras. Dermatol. 65: 171-174 (1990).
6. Gedde-Dahl, T. - Epidermolysis Bullosa: A Clinical, Genetic and epidemiological Study. Baltimore. The Johns Hopkins Press (1971) pp135-153
7. Gedde-Dahl, T. Jr. - Epidermolysis Bullosa. In: Emery, A E H; Rimson, DL. Principles and Practices of Medical Genetics vol 1. New York. Churchill Livingstone (1983) ppl. 672-87
8. Gryboski, D. et al. - Gastrointestinal Manifestations of epidermolysis Bullosa in Children . Arch Dermatol. 124: 746-521(1988).
9. Haber, R. et al. - Epidermolysis Bullosa Progressiva. Journal of the American academy of dermatologv. 16:195-200 (1987).
10. Nowark, A. J. - Oropharyngeal Lesions and their Management in Epidermolysis Bullosa. Arch Dermatolol 124:742-45 (1988).
11. Tidman, M. J. et al. - Oesophageal Web Formation in Dystrophic Epidermolysis Bullosa. Clin Exp Dermatol. 13: 279-81(1981).
12. Wright, J. T.; Johnson, L. B. - Oral Soft Tissues in Hereditary Epidermolysis Bullosa. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 71: 440-44(1991).
Trabalho apresentado na 11º Reunião da Sociedade Brasileira de Otologia e 2º Encontro Brasileiro de Trabalhos Científicos em Otorrinolaringologia no Período de 1-4 de novembro de 1995. Belo Horizonte, Brasil.
Endereço para correspondência: Departamento de Otorrinolaringologia do HCFMUSP - Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 255, sala 6002 - CEP 04531-012 - São Paulo - SP - Telefax: 011- 2800299
1- Médico Assistente do Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
2- Médico do Curso de Pós Graduação (Doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
3- Médico do Curso de Pós Graduação (Doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
4- Médica Assistente do Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
5- Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.