INTRODUÇÃOO modelo sináptico da neurocomunicação no Sistema Nervoso Central (SNC) dominou os neurocientistas por mais de um século. Com o advento da biologia molecular e da retomada dos conceitos de plasticidade neuronal em adultos, tornou-se evidente a existência de mecanismos alternativos e econômicos na transmissão de informações. A neurotransmissão por difusão não sináptica (NDN), também chamada transmissão por volume, tem sido demonstrada como o principal mecanismo de transferência de informação no SNC e apresenta um importante papel na recuperação de áreas lesadas (1,2).
A perda bilateral da função vestibular ou arreflexia vestibular bilateral (AVB), definida como total ausência de resposta do sistema vestibular aos estímulos de movimento, resulta em múltiplos problemas no controle da postura e locomoção, instabilidade de marcha e dificuldade de equilíbrio. Suas etiologias mais comuns são toxicidade por drogas, trauma crânio-encefálico, meningite, infecção labiríntica, tumores bilaterais, otosclerose e vários outros fatores, inclusive os relacionados à idade (3). Os principais sintomas descritos por pacientes com AVB são a oscilopsia e desequilíbrio. O primeiro é a "falta de nitidez" da imagem conseqüente à perda de fixação do objeto na retina, resultante da inoperância do reflexo vestíbulo-ocular (4). Já o desequilíbrio intensifica-se em ambientes escuros e superfícies irregulares, uma vez que são necessários pelo menos dois sistemas de informação para que o equilíbrio corporal seja mantido. Na ausência de um sistema vestibular funcional, o SNC tem dificuldade de integrar corretamente informações conflitantes entre os sistemas visual e proprioceptivo.
Até hoje, o tratamento de escolha para esses doentes é a reabilitação vestibular (RV), que apresenta eficácia em 50% dos casos (5, 6). Uma vez realizada a terapia, o resultado final é definitivo, não havendo, até o momento, outras opções para recuperar as possíveis limitações residuais.
Apesar da exclusão da informação periférica, esses pacientes conservam os mecanismos centrais de integração sensorial para manter a estabilidade postural. Sendo assim, seria possível conectar um receptor artificial de movimento às estruturas cerebrais, relacionadas à percepção, integração e emissão de respostas referentes ao equilíbrio corporal, promovendo assim uma reorganização do mapa cortical e posterior compensação do sistema lesado (7). Uma vez conectados ao SNC através de uma interface homem-máquina (IHM), receptores artificiais podem fornecer informações e restaurar a normalidade funcional. Tais receptores seriam parte de um equipamento cujas informações o cérebro aceita e controla como parte natural do seu corpo (8, 9). A IHM forneceria às pessoas com danos sensoriais e motores uma forma de usar o SNC por meio de mecanismos artificiais com a finalidade de restabelecer habilidades perdidas (10). Esse processo de substituição sensorial torna-se possível graças à plasticidade neuronal.
Foi com esse propósito que TYLER, DANILOV E BACH-Y-RITA desenvolveram um sistema de substituição vestibular e demonstraram que a coordenação postural pode ser restabelecida usando uma IHM que emprega um padrão único de estimulação eletrotátil na superfície da língua. Esta nova forma de biofeedback foi possível através de um equipamento denominado BrainPort e é baseada nos conceitos atuais de NDN (11).
O equipamento BrainPort transmite ao cérebro informação sobre a posição da cabeça (normalmente fornecida pelo sistema vestibular) por meio de um canal de substituição sensorial: a superfície da língua. A utilização da língua como órgão sensorial ideal está bem estabelecida e embasada em suas características: densidade e sensibilidade elevadas de fibras nervosas, além das propriedades físicas que conferem recepção e manutenção do contato elétrico.
Para o cérebro interpretar corretamente a informação de um aparelho de substituição sensorial, não é necessário que a informação seja apresentada da mesma forma que o sistema sensorial natural. É preciso apenas codificar precisamente os potenciais de ação em um canal de informação alternativo. Com o treinamento, o cérebro aprende a interpretar adequadamente as informações e utilizá-las de acordo com os dados da percepção natural e normal (12,13).
OBJETIVO O presente estudo objetiva avaliar a eficácia do BrainPort como substituto sensorial do aparelho vestibular em pacientes com AVB que não apresentaram boa resposta à reabilitação vestibular convencional.
CASUÍSTICA E MÉTODOEste é um ensaio clínico, previamente julgado e aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa - CAPPesq da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Os pacientes foram selecionados a partir do Ambulatório de Otoneurologia, da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP após explanação, aceitação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
Foram incluídos os indivíduos com distúrbio equilíbrio corporal por AVB, devendo ter finalizado tratamento pela RV sem obter resultado satisfatório. Os critérios de exclusão foram lesões em cavidade oral e língua, tabagismo, implantes elétricos como marcapassos cardíacos, doenças neurodegenerativas, lesões ortopédicas de membros inferiores.
Os pacientes incluídos no estudo foram avaliados pela história clínica, exame otorrinolaringológico, exame dos pares cranianos, provas do equilíbrio e cerebelares, eletronistagmografia, prova rotatória pendular decrescente (PRPD) e pelo protocolo do Teste de Integração Sensorial (TIS) da Posturogafia Dinâmica Computadorizada (PDC).
Após a caracterização clínica, os pacientes foram então submetidos à intervenção com o equipamento BrainPort: Foram oferecidas aos pacientes tarefas que apresentam dificuldade progressiva de mudança postural durante a utilização do equipamento que duraram 15 minutos por sessão, em duas sessões diárias realizadas em intervalos de 3 a 4 horas. O treinamento foi realizado ao longo de 6 dias intercalados (3 vezes por semana, durante 2 semanas) totalizando 12 sessões. A avaliação da resposta clínica ao tratamento foi feita pelo TIS da PDC e por uma escala análogo-visual (EAV) que caracteriza a evolução dos sintomas segundo três critérios:
- remissão (R): corresponde a 100% de alívio dos sintomas.
- melhora parcial (MP): corresponde a alívio entre 50% e 90% dos sintomas.
- sem melhora (SM): corresponde a alívio percentual dos sintomas abaixo de 50%.
Para a análise dos resultados da PDC (TIS) foram considerados a análise sensorial e o índice de equilíbrio (IE).
EquipamentoDois componentes integram o aparelho BrainPort:
(1) uma placa de 2x2 cm acoplada a um acelerômetro contendo 100 eletrodos é colocada na superfície da língua e detecta a inclinação e movimentação da cabeça, de acordo com o deslocamento corporal;
(2) um dispositivo que contém microcontroladores, processador de sinal, bateria, timer e controle de uso (Figura 1).
Figura 1. Aparelho BrainPort: dispositivo oral e controlador.
A estimulação na superfície lingual é criada por uma seqüência de pulsos. O paciente controla o nível de voltagem e um circuito de segurança monitora a saída de estímulos desativando o sistema se o limiar de corrente pré-definido for ultrapassado. O paciente é capaz de ligar o equipamento, ajustar a intensidade de estimulação e centralizar o estímulo na placa de eletrodos utilizando os controles.
O uso do equipamento requer uma sessão de orientação na qual o paciente deve aprender como utilizar o estímulo percebido na língua e corrigir sua postura para mantê-lo no centro da placa. O paciente inicia o treinamento na posição sentada ou ereta com sua cabeça centralizada e esta posição é gravada por um sensor que a utilizará como referência-zero. Nesse momento, o estímulo é realizado no centro da placa e corresponde ao centro da língua. Com o deslocamento corporal, o estímulo também se move e o paciente será instruído a manter a estimulação centralizada - no meio da placa de eletrodos - como resposta a sua correção postural.
Protocolo de treinamento DIA 1 - Avaliação através da PDC
- 1ª sessão de 15 minutos de treinamento
- Intervalo de 3 a 4 horas.
- 2ª sessão de 15 minutos de treinamento
DIAS 2 a 6 - O procedimento foi repetido do segundo ao sexto dias de treinamento. Ao fim da segunda sessão no sexto dia, os pacientes foram submetidos à avaliação pela PDC e aplicação da EAV.
A análise estatística inclui um desenho de descrição dos casos.
RESULTADOS A amostra constituiu-se de 5 casos de arreflexia vestibular pós-calórica bilateral, 4 pacientes do sexo masculino e 1 do sexo feminino com idade que variou de 54 a 74 anos (média de 60,6).
Além de não apresentarem resposta à estimulação pós calórica bilateral, todos os pacientes estudados apresentaram ausência de resposta ao estímulo rotacional da PRPD.
O diagnóstico etiológico e a idade podem ser observados na Tabela 1.
O índice final de equilíbrio (IE) da PDC pré e pós tratamento tem sua distribuição representada na Tabela 2, com média de 34,8 pré e 61,0 pós treinamento.
Os resultados da melhora clínica com o tratamento proposto utilizando o equipamento BrainPort estão expostos no Gráfico 1, de acordo com os critérios da EAV. A melhora clínica ocorreu em 100% dos casos, 2 com remissão dos sintomas (40%) e 3 com melhora parcial (60%) no último dia de tratamento.
Gráfico 1. Distribuição dos pacientes quanto à melhora clínica após o tratamento com o BrainPort.
Os dados de PDC antes e após a utilização do BrainPort também foram registrados e são reportados aqui na Figura 2.
Figura 2. Análise Sensorial do paciente 5 pré e pós tratamento com o Brainport. SOM= função somatossensorial; VIS=função visual; VEST= função vestibular; PREF= preferência visual. Obs: as barras escuras representam desempenho inferior ao padrão de normalidade para a idade.
DISCUSSÃONa busca por terapias ainda mais efetivas no tratamento das doenças vestibulares, surgiu o equipamento BrainPort que realiza uma estimulação eletrotátil na superfície da língua - canal de substituição sensorial - e transmite ao SNC informações sobre o posicionamento da cabeça (12, 13). Provavelmente, o sistema de substituição sensorial de maior sucesso até o presente é o Braille, que possibilita a "leitura" de informações através da ponta dos dedos, substitutos sensoriais (9, 10). Com o treinamento, os indivíduos são condicionados a usar a informação proveniente de um equipamento de substituição sensorial recuperando informações de um sistema danificado. Assim, o SNC é capaz de reorganizar um dano ou perda sensorial. Todos estes aspectos citados fundamentam-se nos atuais conceitos de neurotransmissão por difusão não-sináptica (NDN).
A arreflexia vestibular bilateral (AVB) é uma condição clínica que impõe inúmeras limitações e oferece poucas possibilidades de melhora. Embora não seja freqüente em pacientes portadores de desequilíbrio corporal, sua morbidade exige que procuremos métodos, que se não resolutivos, ao menos ofereçam aos pacientes uma melhor qualidade de vida. As limitações impostas aos pacientes com AVB incluem a falta de nitidez da imagem que prejudica a leitura e a direção de veículos. Apresentam ainda importante desequilíbrio na marcha, que lhes tira a firmeza de deambulação, prejudicando seu deslocamento principalmente em ambientes externos (5,6,14).
Nossa intenção neste estudo foi avaliar a capacidade desse equipamento de substituição sensorial (BrainPort) melhorar os índices de equilíbrio na AVB em pacientes já submetidos à reabilitação vestibular convencional, a partir de onde não há tratamento preconizado. Neste estudo avaliamos uma amostra de 2 casos de ototoxicidade (40% da amostra) que se assemelha ao predomínio relatado em literatura (5, 6). Os demais correspondem às etiologias traumática, infecciosa e idiopática, que fazem parte das etiologias responsáveis pela AVB.
Quanto aos critérios de avaliação, utilizamos não só o exame eletronistagmográfico (ENG) como a PRPD. O exame mais utilizado na investigação de disfunções labirínticas é a ENG, que permite a análise da resposta de cada labirinto separadamente, mas, no entanto não documenta a faixa de freqüência fisiológica correspondente ao reflexo vestíbulo-ocular. Assim, para registro de baixas e altas freqüências de aceleração angular (0,1 a 1Hz), utilizamos a PRPD que possibilita a avaliação da função vestibular bilateralmente (17). A PRPD é o padrão-ouro para o diagnóstico das perdas vestibulares bilaterais, uma vez que é possível haver ausência de resposta à ENG, mas com resposta presente em outros testes.
A PDC permite testar e quantificar a estabilidade postural em diversas condições, medindo a participação e a interação de diversas aferências sensoriais (visual, vestibular e somatossensorial). Avalia objetivamente o impacto da perda vestibular e seleciona os sistemas comprometidos na manutenção do equilíbrio. Na AVB, o maior prejuízo é observado nas condições 5 e 6, tipicamente vestibulares, com perda rápida do equilíbrio e quedas. No exemplo de PDC (Figura 2) pós tratamento, não houve recuperação do sistema vestibular, mas a potencialização da participação visual e proprioceptiva foi decisiva na melhora clínica do paciente, bem como na elevação final do IE - 50 (18).
Em estudo prévio, quando avaliamos o resultado da Reabilitação Vestibular (RV) em pacientes com AVB, 87,5% dos indivíduos referiram melhora, e, mesmo com descrições diferenciadas, foram unânimes em relatar o aumento da estabilidade corporal (19). Neste novo estudo, dados preliminares sugerem que o BrainPort atuou de maneira eficiente como substituto sensorial na recuperação do equilíbrio corporal, superando a melhora previamente obtida pela RV convencional tanto na avaliação subjetiva da EAV, quanto na avaliação objetiva da PDC.
Os resultados iniciais comprovam que o tratamento é promissor e acreditamos que novas tecnologias possam ser desenvolvidas com o intuito de manter a estimulação sensorial, até em situações dinâmicas e de movimentação corporal. O estudo prosseguirá com maior número de pacientes para obter dados estatísticos que validem nossa hipótese.
CONCLUSÃONossos dados preliminares sugerem que o BrainPort atuou de maneira eficiente como substituto sensorial na recuperação do equilíbrio corporal, superando a melhora previamente obtida pela RV convencional.
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1. Mestre em Medicina. Médica Estagiária do Setor de Otoneurologia do HCFMUSP.
2. Doutor em Medicina. Assistente Doutor do Setor de Otoneurologia do HCFMUSP.
Instituição: Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Endereço para correspondência: Camila de Giacomo Carneiro Barros / Depto de ORL do HCFMUSP - Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP - Serviço do Prof. Ricardo Ferreira Bento
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Trabalho submetido e aplicada a definição
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da R@IO em 27 de maio de 2007 às 20:58:51. Artigo aceito em 12 de agosto de 2007 às 20:07:55.