INTRODUÇÃO E REVISÃO DE LITERATURA A síndrome da apnéia obstrutiva do sono (SAOS) é uma condição patológica que implica em sérias repercussões negativas à saúde e funcionalidade do indivíduo como, sonolência excessiva diurna (SED), arritmias cardíacas, hipertensão arterial, além de conseqüências comportamentais e sociais. A alta prevalência e amplo espectro de comprometimento impõem o tratamento dessa condição (1).
Dentre as condutas existentes para o tratamento da SAOS destacam-se a pressão positiva em vias aéreas superiores (CPAP) que é reconhecidamente eficaz e, usualmente, o método de primeira escolha, as dietas, os aparelhos ortodônticos intra-orais e as cirurgias que têm indicação em casos especiais (2, 3). A terapia miofuncional oral fonoaudiológica pode representar uma nova opção terapêutica para pacientes roncadores com ou sem SAOS como será referenciado mais adiante (4, 5).
O CPAP, idealizado por SULLIVAN et al. (6), é o tratamento de pressão positiva contínua nas vias aéreas superiores (VAS) por meio de uma máscara nasal ou oronasal. Esta modalidade terapêutica é considerada a mais eficaz nos casos de pacientes portadores de SAOS, principalmente aqueles que apresentam queda expressiva da saturação de oxigênio (SaO
2), SAOS moderada e SAOS grave. Algumas limitações à sua utilização estão ligadas à máscara que pode causar desconforto, rejeição pelo cônjuge, vazamento de ar gerando alergias e irritações cutâneas que ocorrem em pacientes respiradores orais em decorrência de obstrução nasal o que pode culminar com a baixa adesão.
A perda de peso corporal por meio de dietas ou cirurgias é outra opção terapêutica. Reduções ponderais de 10% do peso corporal podem levar à redução de até 50% do índice de apnéia/hipopnéia (IAH), e com 20% de perda do peso corporal, o paciente pode tornar-se assintomático. Esse fato é explicado pela perda de tecido adiposo em todo o corpo, incluindo na região orofaríngea. Entretanto, as taxas de sucesso a longo prazo são desanimadoras com recuperação do peso e reaparecimento ou agravamento da SAOS (7).
Os aparelhos intra-orais, retentores linguais e posicionadores mandibulares, são indicados para pacientes portadores de SAOS leve a moderada e retrognatas que não estejam acima do peso ideal e que não tenham grave dessaturação da oxihemoglobina. Além dessas contra-indicações, pacientes com número insuficiente de dentes para ancorar o aparelho, uso de próteses extensas, problemas periodontais, disfunção aguda da articulação temporomandibular (ATM) e portadores de alterações anatômicas importantes nas VAS, não devem ser tratados com o aparelho intra-oral por não alcançarem bons resultados (8).
As técnicas cirúrgicas variam desde cirurgias otorrinolaringológicas a cirurgias ortopédicas funcionais dos maxilares, que apresentam resultados variáveis. Os procedimentos mais comuns atingem entre 40% e 50% de eficiência (9), e muitas vezes devem ser combinadas mais de uma técnica no mesmo tempo cirúrgico ou em dois tempos separados para que os resultados possam ser mais satisfatórios (10).
As modalidades de tratamento descritas anteriormente podem atuar apenas de maneira paliativa, uma vez que podem não tratar efetivamente o fator que principiou a instalação da SAOS ou são de difícil adesão pelos pacientes (alto custo, difícil manutenção a longo prazo, etc.). Assim, na busca de outros métodos terapêuticos, levantou-se a hipótese da intervenção fonoaudiológica em pacientes roncadores com e sem SAOS por meio da terapia miofuncional oral trazer benefícios para estes pacientes.
A terapia miofuncional constitui-se, inicialmente, da conscientização do problema e da necessidade de sua correção, da melhora da postura corporal, da realização dos exercícios básicos e, por fim, de um período de reforço visando a manutenção dos novos padrões alcançados nas etapas anteriores. Divide-se em exercícios de relaxamento e respiração, exercícios específicos para estimular e adequar as funções do sistema estomatognático e exercícios orofaciais e articulatórios (11).
A contribuição da fonoaudiologia nesses casos fundamenta-se no fato de que pacientes roncadores e apneicos apresentam um comprometimento neuromuscular e/ou estrutural de suas VAS, culminando em uma redução significativa do tônus muscular e aumento da resistência das VAS durante o sono (12, 13). Acredita-se também que a força dilatadora dos músculos das VAS é a única força responsável por contrabalançar as forças que promovem o colapso, representadas pela pressão negativa transmural da faringe e pelo peso das estruturas formadoras das VAS (14, 15), fato que justifica a reabilitação da musculatura orofacial e faríngea desses indivíduos.
Portanto, a terapia miofuncional oral direcionada a pacientes roncadores com e sem SAOS visa à adequação da postura, da sensibilidade e propriocepção e do tônus e mobilidade da musculatura orofacial e faríngea. As estruturas priorizadas nesse trabalho são aquelas que podem estar relacionadas com a obstrução pelo colapso das VAS durante o sono: assoalho da cavidade oral, língua, especialmente o músculo genioglosso; músculos mastigatórios, bucinador, masseter, pterigóideo lateral e medial, digástrico; palato mole e úvula; músculos supra-hióideos e infra-hióideos; musculatura faríngea e as funções de respiração, mastigação e deglutição (4, 5).
O objetivo desse estudo foi relatar a eficácia da terapia miofuncional oral em 2 pacientes com SAOS grave a partir da análise das variáveis da polissonografia (PSG) antes e após a intervenção fonoaudiológica como a redução do IAH, normalização ou melhora da oxigenação sanguínea, da arquitetura do sono bem como da avaliação da pontuação na Escala de Sonolência de Epworth (ESE) e Escala de Roncos (ER).
RELATO DOS CASOSCaso Clínico 1Paciente masculino, 37 anos, índice de massa corporal (IMC) 26,29 kg/m² com queixa de roncos, paradas respiratórias em sono, despertares freqüentes, alterações do humor, dificuldade de concentração e déficit de memória. Ao exame polissonográfico o paciente apresentava IAH de 48,5 eventos por hora (e/h), saturação de oxigênio (SaO
2) média de 92%, SaO
2 mínima de 79%, com T 90 (tempo percentual em que a SaO
2 situa-se abaixo de 90%) de 5,9%. O paciente apresentava índice de microdespertares (MD) de 32/h, ESE = 12 e ER = 3. A ER é graduada de 0 a 4, sendo 0 = ausência de roncos, 1= ressonar (respiração forte), 2 = ronco leve, 3 = ronco que incomoda o cônjuge, 4 = ronco que incomoda os familiares (extrapola o quarto). Na avaliação otorrinolaringológica foi verificado apenas discreto aumento de conchas nasais inferiores e na avaliação fonoaudiológica foi observada crepitação na região da ATM direita, assimetria de bochechas com maior volume à esquerda, discreta redução de mobilidade de bochechas, língua e lábios e marcas internas nas bochechas e na língua.
A partir do diagnóstico de SAOS grave foi indicado o tratamento com o uso do CPAP nasal. Entretanto, o paciente não se adaptou e recusou o tratamento inclusive pelo seu elevado custo. Dessa forma, o paciente foi encaminhado ao serviço de Fonoaudiologia do Hospital Universitário de Brasília. A intervenção fonoaudiológica consistiu em 16 sessões de terapia miofuncional realizadas pela mesma fonoaudióloga quando o paciente foi orientado a realizar diariamente exercícios isométricos, para o aumento do tônus muscular, isotônicos, para a melhora da mobilidade, e isocinéticos, indicados para o relaxamento e coordenação específicos para a musculatura do assoalho da cavidade oral, língua, bucinador, masseter, pterigóideo lateral e medial, digástrico, palato mole e úvula; músculos supra e infra-hióideos e musculatura faríngea. O paciente recebeu, ainda, orientações quanto à importância da respiração nasal. Após a terapia miofuncional, foram realizadas nova polissonografia (PSG), avaliação fonoaudiológica, aplicação da ESE e ER.
O paciente relatou, à avaliação subjetiva, melhora do sono, da memória e melhor desempenho no trabalho. Houve redução dos roncos e das paradas respiratórias durante o sono, segundo o relato da esposa, muito embora, o paciente não tenha referido redução significativa da intensidade dos roncos, ER = 2 (Tabela 1). Na PSG de controle foi constatada uma redução do IAH (8,6 /h); SaO
2 média (94%); SaO
2 mínima (87%) e T90 (0%) (Tabela 2). Quanto à fragmentação do sono, foi verificada uma redução do índice de microdespertares/h para 18 /h. Na ESE, o paciente apresentou redução da pontuação para 10 pontos (Tabela 1). É válido fazer referência ao IMC pós-tratamento, fator considerado preditivo para SAOS, que aumentou para 27,68 kg/m
2 em razão de um ganho ponderal de 4 kg. Na avaliação fonoaudiológica constatou-se de forma subjetiva redução discreta da assimetria de bochechas, melhora do tônus e mobilidade das estruturas orofaciais e não foram mais observadas crepitações na ATM, apesar de não ter sido realizado nenhum exercício específico direcionado à ATM.
Caso Clínico 2Paciente feminina, 55 anos, IMC 22,2 kg/m² com queixa de roncos intensos, dificuldade respiratória durante o sono, lapsos de memória freqüentes e SED. A PSG inicial mostrava: IAH = 40,4/h, SaO2M = 88%, SaO2m = 77%, T90 = 86,7%, MD = 25,5/h. Os questionários subjetivos aplicados evidenciaram: ESE = 13 e ER = 3. Em razão da inadaptação ao CPAP e ao aparelho intra-oral, a paciente foi encaminhada à avaliação e intervenção fonoaudiológica, no ambulatório de fonoaudiologia do Hospital Universitário de Brasília. O exame otorrinolaringológico evidenciou discreto desvio de septo nasal, aumento da base da língua e leve retrognatia. Na avaliação fonoaudiológica, a paciente apresentava redução de tônus e mobilidade de bochechas, língua, lábios e palato mole, bem como, incoordenação fonoarticulatória e respiração nasal e superficial.
A intervenção fonoaudiológica consistiu em 16 sessões de terapia miofuncional realizada pela mesma fonoaudióloga, quando foram abordados os padrões inadequados e os padrões corretos de postura e movimentação dos órgãos fonoarticulatórios objetivando a conscientização das alterações apresentadas pelos pacientes e foram propostos exercícios específicos que deveriam ser realizados diariamente pela paciente. Os exercícios foram divididos em isométricos, isotônicos e isocinéticos. A paciente recebeu, ainda, orientações quanto à importância da respiração nasal.
Após as 16 semanas de terapia miofuncional realizou-se nova PSG, avaliação fonoaudiológica e aplicação da ESE e da ER. Não houve variação no IMC. A paciente reduziu a pontuação na ESE para 7 e na ER para 2 (Tabela 1). A comparação dos resultados da primeira e da segunda PSG demonstra clara melhora das variáveis estudadas: IAH 3,3/ h, SaO2M 94%, SaO2m 83%, T90 1,6%, MD 6,9/h (Tabela 2). A avaliação fonoaudiológica subjetiva constatou melhora do tônus e mobilidade das estruturas orofaciais, assim como melhora da coordenação fonoarticulatória. Subjetivamente, a paciente relatou melhora dos lapsos de memória e da SED, que eram queixas importantes anterior ao tratamento.
DISCUSSÃOO uso da terapia de motricidade orofacial voltada para pacientes roncadores com e sem SAOS ainda é incipiente, entretanto, alguns autores demonstraram resultados favoráveis como os apresentados por GUIMARÃES (3) e PITTA (4). Existe uma estreita relação entre a fisiopatologia da SAOS e o objeto de estudo da motricidade orofacial, especialidade da fonoaudiologia, que são os aspectos estruturais e funcionais das regiões orofacial e cervical usualmente comprometidos em pacientes com SAOS. No entanto, essa afirmativa merece ressalvas e necessita de maior investigação objetivando comprovar a eficácia da terapia miofuncional nessa população.
É válido salientar que os dois pacientes que participaram deste estudo foram informados quanto à indicação do tratamento de primeira escolha, o CPAP, e quanto ao aparelho intra-oral, terapêuticas já consolidadas cientificamente, mas por questões financeiras e de inadaptação optaram por realizar a terapia miofuncional oral, a partir da assinatura de um termo de consentimento livre e informado.
Nos casos estudados foi constatada uma redução expressiva do IAH retornando a valores considerados dentro dos padrões de normalidade, tendência ou efetiva normalização da saturação de oxigênio, redução do índice de microdespertares, e subjetivamente, verificou-se redução da sonolência excessiva diurna e dos roncos, entretanto não houve variação ou melhora significativa na arquitetura do sono. A melhora das variáveis respiratórias analisadas objetivamente por meio da PSG sugere algum grau de eficácia da terapia miofuncional oral proposta. É necessário ressaltar que a terapia miofuncional oral foi aplicada como monoterapia, isto é, os pacientes não realizaram outro tratamento concomitante, nem apresentaram mudanças nas atividades cotidianas que pudessem comprometer os resultados obtidos.
Os resultados pré e pós-terapia miofuncional oral corroboraram com a hipótese da existência de uma hipotonia da musculatura das VAS em pacientes com SAOS favorecendo ao colapso da orofaringe e obstrução do fluxo aéreo. O prefil retrognata da paciente do caso 2 configura mais um fator de risco para o desenvolvimento da SAOS, uma vez que reduz o espaço das VAS e projeta a língua, nesse caso com uma base aumentada, para uma posição mais posterior. Entretanto, a terapia miofuncional não possui nenhuma interferência na mudança do perfil craniofacial da paciente, salvo a musculatura orofacial e faríngea que foram trabalhadas.
CONSIDERAÇÕES FINAISA Fonoaudiologia é uma ciência da área da saúde relativamente nova, que vem expandindo suas possibilidades terapêuticas de forma a alcançar áreas até então inusitadas. Este é o caso da inter-relação entre Fonoaudiologia e Medicina do Sono, mais especificamente, os distúrbios respiratórios do sono.
Essa relação remonta ao fato de que as estruturas envolvidas nos distúrbios respiratórios obstrutivos, como a SAOS e os roncos, são unidades neuromusculares, ou seja, o objeto de estudo e intervenção da área de Motricidade Orofacial.
Por fim, os resultados obtidos nesse estudo de caso sugerem que a terapia miofuncional oral pode representar uma alternativa no tratamento de pacientes portadores da SAOS grave que não aderiram ao CPAP, tratamento de primeira escolha já consolidado na comunidade científica. Entretanto, concluímos ser necessário dar prosseguimento a essa pesquisa aumentando o número de casos estudados e acompanhando-os de forma longitudinal.
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15. Séries F. Upper airway muscles awake and sleep. Sleep Med Rev, 2002, vol. 6, nº.3, 229-242.
1. Mestre. Docente Fonoaudióloga Clínica.
2. Doutor. Docente Fonoaudiólogo Clínico.
3. Doutor. Otorrinolaringologista.
4. Doutor. Neurologista Sonologista.
5. Mestre. Psicóloga.
6. Doutor. Professor Titular de Pneumologia da Universidade de Brasília.
Instituição: Laboratório do Sono do Hospital Universitário da Universidade de Brasília, Brasília / DF.
Endereço para correspondência: Danielle Barreto e Silva Pitta
SHIN QI 06 - Conj 11 - Casa 06 - Brasília / DF - CEP 71520-110
Telefone: (61) 8445-2184 / 3468-3853 - E-mail:danielle.pitta@hotmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da R@IO em 22 de outubro de 2006 . Cod. 175. Artigo aceito em 26 de fevereiro de 2007.