|
|
|
|
|
|
Ano: 2008 Vol. 12 Num. 1 - Jan/Mar
|
Print: |
|
|
|
|
Perspectivas no Tratamento da Perda Auditiva com Células-tronco |
Perspectives in the Treatment of Hearing Loss with Stem Cells |
Como citar este Artigo |
|
|
Author(s): |
Luiz Carlos de Melo Barboza Junior 1, Jeanne Oiticica 2, Ana Carla Batissoco 3
|
|
|
Palavras-chave: |
cóclea, perda auditiva, células-tronco, células cultivadas, células pilosas, terapia biológica |
|
|
|
Resumo: |
Introdução: Dano e perda de células ciliadas na orelha interna é a causa mais freqüente de perda auditiva, desde que a perda das células ciliadas de mamíferos é irreversível. O tratamento da perda auditiva consiste do uso de aparelhos de amplificação sonora ou implantes cocleares, porém ambos restauram a audição com limitado sucesso. Os esforços das atuais pesquisas estão focalizados na manipulação de genes, terapia gênica e transplante de células-tronco na intenção de reparar ou substituir as células ciliares lesadas da cóclea de mamíferos.
Objetivos: Esta revisão abordará os últimos achados e técnicas do tratamento com células-tronco na orelha interna.
Conclusões: As recentes descobertas sobre a terapia baseada em células-tronco têm aberto uma nova e estimulante avenida para o desenvolvimento de estratégias para restabelecimento da audição.
|
|
|
INTRODUÇÃO
A surdez congênita apresenta alta incidência (1:1000 nascidos e 1:1000 desenvolvendo surdez no decorrer da infância). Com o crescimento da expectativa de vida da população, a prevalência da surdez adquirida tem aumentado. Estima-se que um terço dos adultos com mais de 65 anos apresenta hipoacusia incapacitante. Constitui-se um dos transtornos crônicos mais freqüentes, com mais de 250 milhões de afetados em todo o mundo (1).
A maioria das perdas auditivas adquiridas ou congênitas decorre de dano ou perda das células ciliares cocleares ou dos seus neurônios associados. A irreversibilidade da surdez em mamíferos é devido à incapacidade de substituição das células perdidas, seja por divisão celular ou por regeneração de células endógenas no epitélio da orelha interna. Clinicamente, a função das células ciliadas perdidas pode ser parcialmente restaurada por estimulação elétrica do nervo auditivo, sendo possível com o uso dos implantes cocleares. Outras alternativas terapêuticas baseadas biologicamente estão sendo exploradas (2,3).
Um dos objetivos da terapia da surdez é a restauração das células danificadas tanto cocleares como neurais. Duas possibilidades são atualmente consideradas: estimulação de células endógenas por injeção de agentes exógenos (por exemplo, fatores de crescimento ou vetores virais manipulados por engenharia genética) ou injeção de células progenitoras ou células-tronco para substituição do tecido perdido (4). Nesta revisão, a seleção dos artigos foi realizada através de uma busca eletrônica da literatura nas bases de dados MEDLINE e do site da Organização Mundial da Saúde. Foram inclusos estudos que enfatizaram o potencial uso terapêutico das células-tronco aplicadas no tratamento da perda auditiva.
REVISÃO DE LITERATURA
As células-tronco (CT) possuem as propriedades de auto-replicação e diferenciação em uma variedade de tipos celulares. Esta potencialidade tem sido explorada para buscar a regeneração das células ciliadas de mamíferos. Um importante avanço nas perspectivas para a utilização das CT para substituir as células do ouvido interno foi a descoberta da geração de células ciliadas a partir de CT embrionárias, CT adultas de orelha interna, CT de medula óssea e CT neurais (5,6,7,8). Tais células são pluripotentes, logo, em teoria, poderiam originar todos os tipos celulares da orelha interna. Além disso, essas células se integraram ao embrião estrutural e funcionalmente, quando colocadas em fases iniciais do período embrionário. Portanto, pode-se pensar na possibilidade de aplicações clínicas dessas CT em orelhas surdas.
Atualmente as CT estão sendo pesquisadas em diversas doenças. São usadas experimentalmente para gerar células musculares e vasos coronários para cardiopatias, neurônios motores para lesão em medula espinhal, células insulino-secretoras para diabetes e neurônios dopaminérgicos para Doença de Parkinson (4).
Existem 3 fontes principais de CT para regeneração das células ciliadas: CT embrionárias, CT isoladas da própria orelha interna e CT obtidas de outros órgãos como cérebro, pele e medula óssea.
Células-tronco isoladas da própria orelha interna
Há aproximadamente duas décadas, observou-se recuperação estrutural e funcional da audição após trauma acústico ou medicamentoso em aves (9,10). Após a morte das células ciliadas, as células de suporte não-sensoriais recebem sinais moleculares ou genéticos, que desencadeiam proliferação ou transdiferenciação em células ciliadas imaturas. Finalmente, há reinervação das células ciliadas ocorrendo a aferência sensorial. A demonstração da regeneração de células ciliadas em aves tem inspirado e aumentado o interesse na elucidação deste processo reparador, pois tal fenômeno não ocorre em mamíferos (11).
Em 2003, LI et al descobriram que o epitélio utricular de mamíferos adultos contém células de suporte com propriedades progenitoras (6), enquanto, no órgão de Corti maduro, somente foi observada transdiferenciação de células não sensitivas em células ciliadas com indução de genes. (12,13,14)
Quando as células são isoladas do epitélio sensitivo do utrículo de rato adulto, há produção de esferas proliferadoras de células. Estas esferas se renovam e produzem diversos tipos de células com características morfológicas e marcadores biológicos de células ciliadas, como myosin VIIa e Brn-3.1; e de células de suporte, como p27kip1. À luz dos conhecimentos biológicos atuais, tais dados sugerem que as células de suporte utriculares possam ser consideradas como células-tronco. Quando estas células foram implantadas em vesículas óticas (orelhas em desenvolvimento) de embrião de galinhas, elas foram integradas com sucesso expressando características de células ciliadas. Além disso, quando transplantadas para músculos e fígado de embrião de galinha em desenvol¬vimento, essas células foram totalmente incorporadas, logo sugerindo características multipotentes destas células-tronco (5,6).
Em 2002, MALGRANGE et al isolaram esferas formadoras de células originadas de órgão de Corti de ratos recém-nascidos e, mais recentemente, LOU et al conseguiram reproduzi-las em ratos jovens, porém a cóclea e o Órgão de Corti ainda estavam imaturos, ou seja, não tinham completado todo o processo de diferenciação. Tais esferas possuíam CT multipotentes com a capacidade de se diferenciar em todos os tipos de células da orelha interna (12,13).
Células-tronco embrionárias
Essas células são provenientes de um conjunto celular do interior do blastocisto. São precursoras de todas as linhagens embriológicas, pois possuem a capacidade de se diferenciar em células mesodérmicas (osso, sangue, músculos), endodérmicas (intestino) e ectodérmicas (pele, nervo, células ciliadas). Por esse poder de gerar múltiplos tipos de células, são caracterizadas como células-tronco pluripotentes.
LI et al, em 2003, conseguiram in vitro produzir células de orelha interna a partir de CT embrionárias de rato. Estas CT, cultivadas com determinados fatores de crescimento, expressaram uma combinação de genes marcadores específicos que é característica de células ciliadas (5).
Recentemente, COLEMAN et al realizaram um xenotransplante de CT embrionárias de ratos em cobaias surdas. A implantação dessas células foi realizada via escala timpânica por meio de uma cocleostomia. A sobrevivência e a compatibilidade tecidual foram avaliadas nas primeiras 4 semanas. Além de células flutuando na perilinfa e aderidas na citoarquitetura coclear, observou-se migração das células transplantadas para o canal de Rosenthal. Outro achado interessante foi a expressão de marcadores neurais NF-L, evidenciando uma diferenciação das CT embrionárias (15).
Uma característica intrigante deste experimento foi a ausência de resposta inflamatória da cóclea em relação ao xenotransplante. Por esta propriedade peculiar, alguns autores consideram a cóclea um santuário imunológico (15).
Células-tronco neurais
A integração parcial das CT neurais introduzidas em tecidos lesados, como na Doença de Parkinson e lesão de medula espinhal em modelos animais, justificou a aplicação desta técnica no tratamento da perda auditiva neurossensorial.
As CT neurais possuem a capacidade de se diferenciarem nos principais tipos de células neurais: neurônios, astrócitos e oligodendrócitos. CT neurais de rato adulto foram xenotransplantadas para a orelha interna de cobaias adultas para avaliá-las quanto à taxa de sobrevivência e ao grau de diferenciação. As CT neurais sobreviveram por no mínimo 4 semanas após implantação e migraram para regiões funcionalmente importantes: órgão de Corti, gânglio espiral e nervo auditivo. Houve diferenciação em neurônios por expressão de marcadores específicos TUJ1, entretanto não ocorreu expressão de marcadores de células ciliadas tipo miosina VIIa (16).
As CT neurais geralmente são captadas na parede lateral do ventrículo lateral e giro denteado, porém o epitélio olfatório também pode ser considerado uma fonte destas células. O epitélio olfatório tem uma característica ímpar, pois é a única junção entre o sistema nervoso central e periférico que contém células-tronco neurais. PATEL, em 2006, introduziu essas CT neurais em cóclea de ratos e observou que sobreviveram e cresceram nos 3 giros cocleares e nos fluidos peri e endolinfáticos (17).
Células-tronco mesenquimais da medula óssea
As CT mesenquimais de medula-óssea também são possíveis candidatas no tratamento da surdez neurossensorial. Elas possuem o poder de diferenciação em vários tipos celulares (osteoblastos, condrócitos, mioblastos, adipócitos e neurônios) e são facilmente obtidas. Essas CT podem ser utilizadas na orelha interna em 3 possíveis estratégias: restauração das células perdidas, produção de fatores de crescimento e introdução de genes.
NAITO et al, em 2004, após implantação de células autólogas de medula-óssea em orelha interna de ratos com surdez induzida, demonstraram sobrevivência e migração das células injetadas em diversas regiões da cóclea: escalas vestibular e timpânica, ligamento espiral, estria vascularis e modíolo, incluindo gânglio espiral e nervo coclear. Além da implantação, as células se diferenciaram em neurônios pela observação de expressão de marcadores neurais como o NF200 (18). Em outro experimento similar, algumas das células implantadas expressaram conexina-26, uma proteína constituinte da junção intercelular das células de suporte e fibroblastos do órgão de Corti e crucial na manutenção do potencial endococlear. Este achado indica um possível uso do transplante das CT da medula óssea para a restauração das junções intercelulares dos tecidos conjuntivos cocleares (19).
DISCUSSÃO
O uso experimental de células-tronco no tratamento da surdez já mostra resultados promissores para aplicação clínica futura. Apesar das boas expectativas, existem vários obstáculos dessa terapia, surgindo várias questões a serem respondidas: qual será a melhor CT? Pode haver rejeição imunológica em transplantes celulares? Qual será a melhor maneira de implantação das células sem lesar ainda mais a citoarquitetura da orelha interna? Como contornar o potencial de crescimento tumoral das CT? E as novas células ciliadas formadas, serão reinervadas? A provável terapia com CT substituirá os atuais implantes e aparelhos de amplificação sonora? Será viável a reconstrução de todo o mapa tonotópico da cóclea?
Na escolha da mais adequada CT para a restauração celular na orelha interna, teoricamente as CT embrionárias seriam boas candidatas, pois possuem a capacidade de gerar células dos 3 folhetos germinativos e já foram empregadas com relativo êxito em experimentos com outras doenças (Diabetes Melitus, Doença de Parkinson e lesões de medula espinhal). Entretanto existem evidências que algumas linhagens de CT embrionárias sejam capazes de se transformarem em tumores, originando tecidos indesejáveis após o transplante celular (20). Além disso, a destruição de embriões, durante a captação das CT, é questionada sob o ponto de vista ético.
As CT neurais são capturadas de órgãos, logo o seu uso seria eticamente plausível. Pela íntima relação anatômica e embriológica entre a orelha interna e o cérebro, as CT neurais podem ser utilizadas na restauração das células ciliadas da cóclea. Outra aplicação seria no tratamento das neuropatias auditivas (21).
Entretanto o limitado acesso às CT neurais poderá comprometer o seu uso clínico, pois são encontradas em regiões profundas do cérebro. Já as CT mesenquimais de medula óssea são de fácil obtenção e, no seu processo de diferenciação, também geram neurônios. Estes, com as neurotrofinas produzidas, aumentariam o número de neurônios e forneceriam suporte ao gânglio espiral, com possível melhora na eficácia do implante coclear (7).
A comparação in vitro do potencial de diferenciação em células ciliadas das CT neurais com o das CT adultas de orelha interna evidenciou duas diferenças. Primeiro, as CT de orelha interna diferenciaram-se 100 vezes mais que as CT neurais (10% contra 0.1%). Segundo, as CT de orelha interna diferenciaram-se mais completamente em células ciliadas que as CT neurais. (6) Diante destas evidências, considera-se apropriado o uso de CT do próprio órgão como instrumento de reparo biológico. Logo, a CT de orelha interna seria a melhor escolha.
CONCLUSÃO
A utilização de células-tronco no tratamento da surdez neurossensorial ainda parece uma realidade distante. Ainda existem muitos questionamentos a serem respondidos. No entanto, os passos iniciais já foram dados na tentativa de compreender os mecanismos envolvidos na regeneração celular da orelha interna.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. www.who.org
2. Pellicer M, Giráldez F, Pumarola, Barquinero J. Células madre en el tratamiento de la sordera. Acta Otorrinolaringol Esp 2005; 56: 227-232.
3. Parker MP, Cotanche DA. The potential Use of Stem Cells for Cochlear Repair. Audiol Neurotol 2004; 9: 72-80.
4. Brownstein Z, Avraham KB. Future Trends and Potencial for Treatment of Sensorineural Hearing Loss . Seminars in Hearing 2006, 22 (3): 187-98.
5. Li H, Roblin G, Liu H, Heller S. Generation of hair cells by stepwise differentiation of embryonic stem cells. PNAS 2003,100 (23), 13495-13500.
6. Li H, Liu H, Heller S. Pluripotent stem cells from the adult mouse inner ear. Nat Med. 2003, 9(10):1257-9.
7. Naito Y, Nakamura T, Nakagawa T, Iguchi F, Endo T, Fujino K, et al. Transplantation of bone marrow stromal cells into the cochlea of chinchillas. Neuroreport. 2004, 19;15(1):1-4.
8. Tateya I et al. Fate of neural stem cells grafted into injured inner ears of mice. Neuroreport. 2003, 14, 1677-81.
9. Cotanche DA. Regeneration of hair cell stereociliary bundles in the chick cochlea following severe acoustic trauma. Hear Res. 1987;30(2-3):181-95.
10. Cruz RM, Lambert PR, Rubel EW. Light microscopic evidence of hair cell regeneration after gentamicin toxicity in chick cochlea. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1987;113(10):1058-62.
11. Matsui JI. Hair cell regeneration: An exciting phenomenon. But will restoring hearing and balance be possible? JRRD 2005,. 42 (4), Sup.2, 187-98.
12. Malgrange B, Belachew S, Thiry M, Nguyen L, Rogister B, Alvarez ML. Proliferative generation of mammalian auditory hair cells in culture. Mech Dev. 2002, 112 (1-2),79-88.
13. Lou X, Zhang Y, Yuan C. Multipotent stem cells from the young rat inner ear. Neuroscience Letters. 2007, 416, 28-33.
14. Batts SA, Raphael Y. Transdifferentiation and its applicability for inner ear therapy Hearing Research. 2007, 227, 41-47.
15. Coleman B, et al. Fate of embryonic stem cells transplanted into the deafened mammalian cochlea. Cell Transplant. 2006, 15(5), 369-80.
16. Hu Z, et al. Survival and neural differentiation of adult neural stem cells transplanted into the mature inner ear. Experimental Cell Research 2005, 302, 40-47.
17. Patel NP. Olfactory progenitorcell transplantation into the mammalian inner ear. New South Wales, 2006, p.92 (tese de mestrado-University of New South Wales).
18. Naito Y, Nakamura T, Nakagawa T, Iguchi F, Endo T, Fujino K, et al. Transplantation of bone marrow stromal cells into the cochlea of chinchillas. Neuroreport. 2004, 19;15(1), 1-4.
19. Sharif S, Nakagawa T, Ohno T, Matsumoto M, Kita T, Riazuddin S, Ito J.The potential use of bone marrow stromal cells for cochlear cell therapy. Neuroreport. 2007, 5;18(4), 351-4.
20. Di Cristofano A, Pesce B, Cordon-Cardo C, Pandolfi P. Pten is essential for embryonic development and tumour suppression. Nat Genet. 1998, 19, 348-55.
21. Parker M, Cotanche D. The potencial use of stem cells for cochlear repair. Audiol Neurootol. 2004, 9, 72-80.
1 Médico Otorrinlaringologista pelo Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 2 Médica Doutora pelo Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 3 Farmacêutica e Doutoranda do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Rua Silva Paulet, 772 - Aldeota - Fortaleza / CE - CEP: 60120-020 - Telefone: (85) 3224 3858 / (88) 3571 2549 - E-mail: carlosluiz@hotmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da R@IO em 12 de outubro de 2007. Cod. 342. Artigo aceito em 9 de janeiro de 2008.
|
|
|
|
Print: |
|
|
|
|
|
|
|
All right reserved. Prohibited the reproduction of papers
without previous authorization of FORL © 1997-
2024
|
|
|
|
|