INTRODUÇÃO
Vai longe o tempo em que havia um balconista, conhecido como o "Zé da Farmácia", conselheiro da população do bairro de Santo Amaro, na capital paulista, que recebeu como homenagem a denominação da Avenida Vereador José de Oliveira Almeida Diniz. Naquela época, em que os médicos e os medicamentos eram escassos, cabia ao balconista atuar como agente de saúde, não apenas tratando, mas também educando a população de sua comunidade.
Por outro lado, a prescrição de medicamentos pelos balconistas de farmácias, jocosamente denominada "empurroterapia", é problema crônico no Brasil. Muitas vezes, esse tipo de prescrição leiga ocorre como única alternativa entre populações que não têm acesso aos serviços públicos de saúde, muitos dos quais sequer contam com atendimento médico especializado. Contudo, a motivação puramente comercial de alguns balconistas, a desinformação da população e a falta de fiscalização governamental acabam por tornar as "consultas de balcão" perigoso meio de mercantilização da saúde, com "receitas" inadequadas para o tratamento das mais diversas doenças, colocando em risco a saúde do próprio paciente. Nessa conjuntura, temos que o Brasil é o 9o maior mercado consumidor mundial de medicamentos.
Outro ponto a ser considerado pelos otorrinolaringologistas é que muitas medicações ototóxicas (sobretudo aminoglicosídeos e outros antimicrobianos) ainda estão sendo vendidas indiscriminadamente, sem que os balconistas tenham conhecimento desse efeito colateral. Estudos revelam que a segunda causa de disacusia severa ou profunda, em crianças, no Brasil, é o uso de drogas ototóxicas (Bento e cols., 1986), só perdendo para as doenças infecciosas.
A Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo realizou quatro estudos com o objetivo de investigar as características da prescrição dos balconistas de farmácias para o tratamento de afecções comuns das vias aéreas superiores: A) otite média aguda, B) sinusite aguda e C) rinite alérgica em crianças. Para tanto, os pesquisadores percorreram diversas farmácias, escolhidas aleatoriamente, apresentando aos balconistas o caso fictício de uma criança com sintomas típicos dessas doenças, pedindo conselhos quanto à conduta em cada caso e tomando cuidado para não induzir respostas.
Nesta resenha, apresentamos alguns dos resultados obtidos, alertando os otorrinolaringologistas para que intervenham junto à população e aos agentes de saúde de suas comunidades, no sentido de esclarecer sobre os riscos da prescrição leiga de medicamentos.
SINUSITE AGUDA EM CRIANÇAS
Estudo realizado em 30 farmácias da capital e outro em 25 farmácias do interior paulista mostraram resultados bastante semelhantes. A minoria dos balconistas aconselhou os pesquisadores a levar a "criança" ao médico (36.67% das farmácias da capital e 16% das do interior), enquanto boa parte preferiu prescrever algum medicamento no momento da "consulta" (70% na capital e 84% no interior).
Chamou nossa atenção a negligência dos balconistas quanto a dados importantes para a prescrição de medicamentos, como o peso do paciente e alergias a medicamentos utilizados previamente. Em nenhuma, das 25 farmácias do interior consultadas, os balconistas perguntaram aos pesquisadores se a "criança" era alérgica a algum tipo de droga, e apenas 15% perguntaram quanto o paciente fictício pesava para calcular a dose da medicação prescrita. Com relação ao conteúdo das prescrições, foi nítida a ineficácia da maioria dos tratamentos propostos (e cabe lembrar que a sinusite é passível de complicações graves -orbitárias ou intracranianas - quando não tratada de forma correta!). As razões da ineficácia foram:
a) a falta de antimicrobianos (predominaram os tratamentos com uso exclusivo de analgésicos, descongestionantes sistêmicos e vasoconstritores nasais);
b) a escolha de antimicrobianos considerados ineficazes no tratamento da sinusite aguda (penicilina V oral, por exemplo);
c) a posologia incorreta (em apenas 1 das 20 prescrições feitas no interior, a posologia era adequada) ou
d) o tempo de tratamento inadequado (a imensa maioria dos tratamentos tinha duração indeterminada, devendo ocorrer "até acabar o frasco do remédio" ou "até melhorar").
Alguns episódios ocorridos durante a pesquisa demonstraram a falta de informação dos balconistas quanto à sinusite aguda. Em uma farmácia da capital, o balconista afirmou categoricamente que "criança não tem sinusite", mas, mesmo assim, prescreveu vasoconstritor tópico para o paciente fictício. Em outra, o balconista explicou à pesquisadora que "o catarro da sinusite vem do pulmão", e o paciente necessitava de "muita inalação".
RINITE ALÉRGICA EM CRIANÇAS
Um caso fictício de rinite alérgica em criança de 4 anos de idade foi apresentado aos balconistas de 40 farmácias da capital. Apenas 35% dos balconistas consultados orientaram para o encaminhamento da criança ao médico, enquanto 65% instituíram algum tipo de tratamento. Os medicamentos mais utilizados foram: anti-histamínicos (34.61%), gotas nasais (30.77%) e descongestionantes sistêmicos (19.23%). Foram encontrados erros de posologia e duração do tratamento em todos os casos, e apenas 7.7% dos balconistas orientaram os pesquisadores quanto aos possíveis efeitos colaterais das medicações que estavam sendo prescritas. Fato curioso é que um dos balconistas fez questão de perguntar se a pesquisadora possuía algum animal de pêlo em casa, e concluiu: "Coitado do cachorro, a senhora vai ter que se livrar dele".
Complementando esse estudo, os autores buscaram, junto ao Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, informações sobre a ocorrência de intoxicações por medicamentos utilizados no tratamento das rinites. Foram encontrados resultados assustadores: no período de 5 anos, 84% das intoxicações por anti-histamínicos, 65.5% das intoxicações por descongestionantes sistêmicos e 100% das intoxicações por vasoconstritores tópicos ocorreram em crianças de zero a 12 anos, na sua maioria causadas por ingestão acidental dos medicamentos, havendo participação das prescrições leigas em cerca de 3% dos casos de intoxicação. Assim, temos mais uma forte razão para coibir as práticas da automedicação e prescrição leiga nas farmácias.
OTITE MÉDIA AGUDA EM CRIANÇAS
Novamente, através de "consultas" a balconistas de 41 farmácias da capital, foi avaliada a conduta dos mesmos em mais 2 casos fictícios: A) de uma criança de 3 anos, com febre de 39oC há 2 dias, acompanhada de otalgia e B) de uma criança de 3 anos, com febre de 39oC há 2 dias, com otalgia e otorréia à direita.
No caso de otite média aguda, apenas 16% dos balconistas orientaram os pesquisadores a levar a "criança" a algum serviço médico, enquanto 32% prescreveram antibióticos para uso oral (88% dos quais por tempo insuficiente e metade em dosagem incorreta) e 52% em gotas otológicas. No caso de otite média aguda supurada, apenas 19% dos vendedores orientaram sobre a necessidade de procurar auxílio médico, enquanto a metade recomendou o uso de antimicrobianos, 25% prescreveram apenas gotas otológicas e 6% apenas analgésicos.
Atualmente, encontramos resquício do comportamento solidário dos balconistas em algumas farmácias do interior do estado, numa das quais, o balconista insistiu para que a pesquisadora levasse o medicamento prescrito por ele para tratar a sinusite de seu "sobrinho" fictício, e pagasse quando pudesse; afinal, o importante era começar logo o tratamento da "criança" para evitar complicações. Os resultados obtidos nos nossos trabalhos, porém, apontam para a deterioração do sistema de comercialização de medicamentos no Estado de São Paulo, predominando a prescrição leiga para medicamentos destinados à venda exclusiva sob prescrição médica, com tratamentos ineficazes e dosagens incorretas das medicações, expondo a população (e as crianças em especial) aos riscos das intoxicações.
Fica, portanto, reiterado o alerta aos especialistas, aos balconistas, aos Serviços de Vigilância Sanitária, aos educadores e à população, em geral, quanto aos riscos da prescrição de medicamentos nos balcões das farmácias. Somente com esse esforço conjunto é que alguns balconistas deixarão de ser levados pelo interesse comercial, e mais "Zés da Farmácia" teremos a homenagear.
BIBLIOGRAFIA
1. Estudo sobre a prescrição de medicamentos em farmácias: sinusites. Balbani APS, Santos Jr. RC, Sanchez TG, Butugan O. Rev Bras Otorrinolaringol 1996; 62(3): 241-244.
2. Tratamento da sinusite aguda em crianças nas farmácias do interior de São Paulo. Balbani APS, Sanchez TG, Butugan O. Rev Paul Pediatria 1996; 14(4): 158-162.
3. Tratamento da rinite alérgica em crianças: prescrição leiga de medicamentos e intoxicações. Balbani APS, Nascimento EV, Sanchez TG, Mello Jr. JF, Butugan O, Duarte JG. Rev Pediatria (São Paulo) 1997; 17(4): 249-256.
4. Utilização de medicamentos para otalgia sem prescrição médica: estudo em farmácias. Bento RF, Di Francesco RC, Granizo AC, Voegels RL, Miniti A. Rev Bras Otorrinolaringol1997; 63(5): 461-4.
1- Doutoranda do Curso de Pós-Graduação da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2- Médica Assistente Doutora da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3- Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.