INTRODUÇÃOA privação auditiva interfere no desenvolvimento linguístico da criança, prejudicando a sua inserção na sociedade e produzindo consequências cognitivas e emocionais, caso ela não seja inserida em um programa educacional que leve em consideração a surdez e suas particularidades. O atraso na aquisição da linguagem reduz as ocasiões de contatos sociais e pode levar a déficits cognitivos, tornando-se fonte de frustrações para as crianças surdas e seus pais (1).
Diversos autores enfatizam a necessidade da detecção e intervenção precoce como fator essencial para que as crianças surdas consigam adquirir a linguagem de maneira eficiente e na idade adequada. Para esses autores, os primeiros anos de vida são ideais para a estimulação auditiva, pois é considerado o período de maturação neurológica, época em que as habilidades auditivas podem ser adquiridas mais eficientemente (2,3,4,5,6,7).
Ademais, os efeitos provocados pela intervenção tardia também influencia nos custos para a educação futura dessa criança. Experiências em países desenvolvidos demonstram que o custo pode ser três vezes maior quando essas crianças necessitam de escola especial (8). Por outro lado, a detecção da perda auditiva é ainda mais viável economicamente que o rastreio da fenilcetonúria, hipotireoidismo e anemia falciforme (9).
Tendo em vista os prejuízos causados pela detecção e intervenção tardia da surdez, foi criado, em 1998, o Grupo de Apoio à Triagem Auditiva Neonatal (GATANU). Uma organização não-governamental que tem como objetivo divulgar, normalizar, operacionalizar e cadastrar os serviços de Triagem Auditiva Neonatal Universal (TANU) no Brasil (10).
Em 1999, foi elaborada a resolução 01/99 pelo Comitê Brasileiro sobre Perdas auditivas da Infância (CBPAI). Segundo essa resolução, "todas as crianças devem ser testadas ao nascimento ou no máximo até os 03 (três) meses de idade e em caso de deficiência auditiva confirmada receber intervenção educacional até 6 (seis) meses." Para garantir o acesso da maioria das crianças à intervenção precoce o Comitê recomenda avaliá-las antes da alta da maternidade (8).
De acordo com o CBPAI, a incidência de perda auditiva em recém-nascidos saudáveis é estimada entre 1 a 3 neonatos em cada 1000 nascimentos, porém esse valor aumenta para cerca de 2 a 4% nos provenientes de Unidades de Terapia Intensiva (UTI´s). Devido a sua elevada prevalência, constitui-se em um verdadeiro problema de saúde pública (9). Possui, inclusive, maior prevalência quando comparada às doenças passíveis de triagem ao nascimento (8).
Em 2004, foi instituída pelo Ministério da Saúde a Política Nacional de Saúde Auditiva, através da portaria GM 2073/04. Essa política define as ações de atenção básica e de média e alta complexidade a serem executadas pelas três esferas de governo (11).
Levando-se em consideração a importância a detecção e intervenção precoce da surdez no desenvolvimento linguístico, social e cognitivo dos sujeitos, a alta incidência de indivíduos com perdas de audição, a ação das organizações não-governamentais e a elaboração das políticas públicas em saúde auditiva, o presente trabalho tem como objetivo caracterizar como ocorre esse processo de detecção precoce e de intervenção em crianças inseridas em escolas especiais para surdos da cidade de Salvador / BA.
MÉTODOForam avaliados os prontuários e realizada entrevista com as mães de 22 crianças surdas congênitas. Essa população se constituiu em 100% da população presente nas instituições que serviram de campo de pesquisa e que satisfaziam aos critérios de inclusão propostos.
Estabeleceu-se como critério de inclusão: a presença de perda auditiva congênita severa ou profunda, considerando os limiares auditivos da melhor orelha; a idade entre seis e oito anos, época em que todas as crianças já devem possuir linguagem oral e escrita desenvolvidas; e serem provenientes de lares de famílias ouvintes. O critério de exclusão foi a presença de diagnóstico médico que indique patologias neurológicas ou neuropsiquiátricas, além de deficiência múltipla.
Inicialmente foi realizada uma pesquisa entre as escolas especiais cadastradas na Secretaria de Educação da Bahia, com o objetivo identificar aquelas que possuíam classes específicas para a população surda. Detectaram-se quatro escolas, sendo duas públicas e duas particulares.
Foi, então, realizado um contato inicial com cada instituição com o intuito de esclarecer os objetivos do presente trabalho e solicitar a utilização do local como campo de pesquisa. Dessas, duas escolas satisfaziam aos critérios de inclusão e concordaram em participar do estudo. Foi então solicitada ao responsável legal de cada instituição, a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, conforme CNS 196/96 do Ministério da Saúde, autorizando a realização da pesquisa no referido local.
Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia, através do protocolo no 603060009437, os responsáveis legais por cada criança foram orientados quanto ao objetivo e ao método do estudo, sendo solicitada posteriormente a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
Os dados coletados eram sobre a idade de suspeita da surdez; o desenvolvimento da linguagem; acompanhamento fonoaudiológico; os laudos de exames realizados; a época em que a criança teve acesso à linguagem na modalidade auditivo-oral e/ou visuo-espacial, e se utiliza aparelho de amplificação sonora individual (AASI). Estes dados foram fornecidos através de entrevista com as mães ou responsáveis legais e complementadas com informações provenientes dos prontuários ou das fichas cadastrais de cada criança na instituição.
RESULTADOSOs dados sobre idade da suspeita de surdez, início do atendimento educacional e/ou terapêutico e início do uso de um sistema de amplificação sonora se encontram na Tabela 1.
A média de idade das crianças quando houve a suspeita da surdez é discretamente melhor que as encontradas por pesquisas realizadas com a população brasileira, de 1.3 anos (7) e 1.5 anos(5).
Em relação à idade dessas crianças quando foram inseridas em um programa de atendimento educacional e/ou terapêutico à população surda, observa-se valor idêntico ao relatado em outro estudo, com a população brasileira(7). Em pesquisa norte-americana, foi encontrada uma média de idade de 1.8 anos(4), 1.6 anos a menos que entre as crianças avaliadas. Comparando-se com a idade preconizada pelo CBPAI(8) para o início do processo terapêutico, o atraso é de 2.8 anos.
Ao analisar o uso de um sistema de amplificação sonora, observa-se que menos da metade das crianças utilizam o AASI e tiveram um acesso tardio à prótese auditiva. Esses valores encontram-se abaixo do encontrado em outra pesquisa, com população brasileira, que detectaram uma média de idade de 3.11 anos (5). Quando se compara com a pesquisa realizada em população norte-americana, observa-se uma média de idade de 1.10 anos nessa população (4). Para o CBPAI (8), o atraso é de 3.0 anos.
O tempo decorrido entre a suspeita da surdez e a inserção em um programa educacional específico ou o início do uso de ASSI é demasiado grande, em comparação ao preconizado pelo CBPAI (Tabela 2), o que pode interferir consideravelmente no desenvolvimento linguístico dessas crianças.
Sobre o perfil de atendimento terapêutico, apenas 37.5% fazem terapia fonoaudiológica, através de sessões individuais, com duração de 40 a 50 minutos, que ocorrem apenas uma vez por semana. Todas as crianças avaliadas utilizam a língua brasileira de sinais e apenas 9.1% é também oralizada.
DISCUSSÃOAs crianças surdas avaliadas tiveram acesso à linguagem, tanto oral quanto sinalizada, de maneira tardia, sendo que algumas não utilizam um sistema de amplificação sonora ou passaram a utilizar em idades mais avançadas e poucas fazem terapia fonoaudiológica, sendo privadas do contato efetivo com a linguagem durante os primeiros anos de vida.
Os pais, em geral, suspeitam que seus filhos têm problemas de audição por volta do início do segundo ano de vida, quando o atraso na aquisição de linguagem torna-se aparente. O fracasso em identificar as crianças com perda auditiva resulta em diagnóstico e intervenção em idades avançadas.
É importante salientar que, devido à privação sensorial auditiva que interfere na aquisição da linguagem oral, as crianças surdas filhas de pais ouvintes geralmente atingem a fase escolar sem possuir uma língua sistematizada e passam a adquiri-la apenas quando ingressam em um programa educacional que considere as suas especificidades. No caso da linguagem oral, a surdez dificulta o acesso à face sonora da língua e no caso da língua de sinais, a pouca prática com essa modalidade de linguagem, por parte dos pais ouvintes, prejudica o processo de interação com a criança surda (12, 13, 14, 15, 16).
Apesar do Programa Nacional de Saúde Auditiva preconizar a protetização e o início do programa terapêutico até os 3 anos de idade (11), sabe-se nessa idade perde-se a maior parte do período considerado essencial para que a linguagem se desenvolva de maneira eficaz (2,3,6,8,17). Segundo o CBPAI, o tratamento deve ser iniciado preferencialmente até os seis meses de vida (8).
Observa-se, também, que a maior parte das crianças foram inseridas em um programa educacional e/ou terapêutico mesmo sem o uso do AASI. O uso tardio ou a não utilização de um sistema de amplificação sonora, por sua vez, dificulta a aquisição da linguagem oral, pois a audição residual presente não é suficiente para a percepção e discriminação efetiva das informações sonoras presentes no ambiente (6,18,19,20).
Ademais, a terapia fonoaudiológica, caso estivesse sendo utilizada por todos os sujeitos da pesquisa ou caso essas sessões utilizassem maior número de horas semanais, poderia facilitar a aquisição da linguagem oral nessas crianças. A terapia fonoaudiológica, através do uso de estratégias específicas para desenvolvimento das habilidades auditivas e da construção do espaço dialógico, criará condições para que a criança surda desenvolva a linguagem oral (21,22,23).
É importante salientar que foram avaliados os aspectos relativos à detecção e intervenção precoce em crianças que estão inseridas em um programa de atendimento educacional e/ou terapêutico e matriculadas em escolas especiais. Dessa maneira, não estão foram analisadas as crianças que permanecem excluídas desse processo, o que poderia demonstrar resultados ainda mais distantes do ideal preconizado pela CBPAI.
A realização da Triagem Auditiva Neonatal Universal (TANU) de rotina, iniciada ainda nas maternidades, possibilita a identificação precoce da perda de audição, minimizando os efeitos decorrentes da intervenção tardia(10). A TANU vem sendo considerada como o melhor método para diagnóstico e intervenção precoce da deficiência auditiva, já que abrange um grande número de recém-nascidos, por ser iniciada ainda na maternidade, além de ser rápida e eficaz. Portanto, é necessário que a realização da TANU seja obrigatória para todas as crianças, logo nos primeiros dias de vida, sendo incluída a primeira etapa em todas as maternidades do estado.
As etapas seguintes à triagem, por sua vez, precisam ser realizadas em locais especializados. Para isso, é essencial a estruturação de um sistema de referência para encaminhamento das crianças que falharam no teste auditivo, de maneira que todas recebam o diagnóstico audiológico e se submetam ao processo de protetização e terapia fonoaudiológica. Além disso, todas essas etapas precisam se realizadas o mais precocemente possível, por isso esse sistema de referência precisa ser adequadamente estruturado para que se torne eficiente e cumpra o seu objetivo final.
De acordo com a portaria GM 2073/04, deve-se promover a ampla cobertura no atendimento aos portadores de deficiência auditiva no Brasil, garantindo a universalidade, a equidade, a integralidade e o controle social da saúde auditiva (11). No entanto, essa realidade não foi encontrada na população estudada.
CONCLUSÃOConsiderando-se as relações de custo x benefício e a qualidade de vida dos portadores de surdez, são evidentes as vantagens da detecção precoce das alterações auditivas, assim como do esclarecimento da população sobre este assunto.
Dessa maneira, o trabalho em saúde pública deve inserir em suas ações a realização de atividades educativas voltadas para a prevenção e a detecção precoce da surdez, através de ações integradas com os diversos profissionais que lidam com a saúde coletiva e materno-infantil. Os serviços e os profissionais de saúde, em articulação com os organismos governamentais e a sociedade, precisam atuar na implementação das políticas públicas direcionadas à saúde auditiva na população pediátrica e neonatal, possibilitando a atenção integral, universal e de qualidade.
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1. Especialização sob a forma de Residência Multiprofissional em Neonatologia. Mestranda em Saúde Pública pela UFBA.
2. Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana. Professora da Unijorge.
Instituição: Universidade do Estado da Bahia. Salvador / BA - Brasil.
Endereço para correspondência:
Lavínia Santos de Carvalho
Rua Alberto Fiúza, 270 - Imbuí
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Artigo recebido em 26 de Maio de 2009.
Artigo aprovado em 12 de Junho de 2009.