Introdução
A vibração das pregas vocais constitui a fonte sonora fundamental para a produção da voz. Doenças de origem orgânica e funcional que provocam distúrbios no padrão vibratório normal resultam, quase sempre, em alterações vocais, que podem ser mais ou menos perceptíveis (objetiva ou subjetivamente), dependendo da sua extensão.
A vibração da mucosa das pregas vocais é movimento muito rápido e de difícil observação. Diversos métodos são hoje empregados para a avaliação específica dessa vibração. Entre estes, a estroboscopia de laringe representa, incontestavelmente, o método mais amplamente utilizado do ponto de vista clínico. Este fato se deve à facilidade de sua aplicação e à sua capacidade de documentar em detalhes os fenômenos da vibração, principalmente com a introdução da videoestroboscopia, descrita por Yoshida et al. em 1977. Este método consiste na observação da vibração cordal utilizando-se de fonte de luz estroboscópica (luz intermitente de forma periódica), a qual permite captar, sucessivamente, as diferentes fases de cada ciclo vibratório, que se sucedem. Isso resulta em efeito óptico de câmara lenta, possibilitando observar com detalhes os diversos parâmetros que caracterizam os ciclos vibratórios, que incluem a freqüência fundamental, a periodicidade dos ciclos, a onda mucosa, a amplitude de vibração, o fechamento glótico, as fases de vibração das pregas vocais e o tempo de duração de cada uma delas. Entretanto, sabe-se que estes parâmetros só podem ser observados com precisão pela estroboscopia nas vibrações periódicas. Caso contrário, os "flashes" luminosos incidem aleatoriamente, e não sucessivamente, a cada ciclo vibratório, não permitindo que se observem as diferentes fases da vibração, de forma seqüencial. Assim, os fenômenos que caracterizam as vibrações cordais aperiódicas, ou os momentos de aperiodicidade, durante a fonação, tornam-se impossíveis de serem estudados de forma segura e confiável com o uso da estroboscopia.
Os métodos mais eficientes para a investigação detalhada dos fenômenos que ocorrem em cada ciclo vibratório são a filmagem ultra-rápida (onde se obtém mais de 3.000 registros fotográficos por segundo) e os modernos sistemas digitais de alta velocidade. Dessa forma, apesar do ciclo vibratório ser fenômeno muito rápido, pode ser registrado em suas diversas fases, de forma real. Entretanto, estes métodos requerem equipamentos de custo elevado e a análise das milhares de imagens obtidas a cada segundo da fonação, representando trabalho árduo, cuja aplicação clínica de rotina é inviável.
A videoquimografia, desenvolvida por Svec e Schuttle (1996), consiste em novo método de vídeo-documentação, que permite avaliar diretamente as características de cada ciclo vibratório que compõe a vibração cordal. Possibilita observá-los mesmo naquelas vibrações aperiódicas, onde a fonte estroboscópica não é capaz de sincronizar-se com a freqüência vibratória. É método de boa aplicabilidade clínica, mas que não deve ser utilizado isoladamente, e sim como exame complementar à estroboscopia.
Instrumental e Técnica de Exame
O equipamento de videoquimografia (Model 8900 - Kay Elemetrics Corp., manufaturada pela Lambert Instruments Company - Holanda) é constituído de uma câmera de vídeo (preto e branco) modificada, capaz de funcionar em dois modos:
1 - Vídeo-câmera convencional: funciona como vídeo-câmera convencional (preto e branco), captando 30 imagens por segundo, no sistema NTSC (Figura 1a). Na verdade, cada uma dessas 30 imagens captadas é composta por inúmeras linhas escaneadas seqüencialmente (dependendo da resolução da mesma), apresentadas sucessivamente na tela do monitor.
Para entender melhor: uma câmera de vídeo inicia a captação da imagem, escaneando a primeira linha do campo, da esquerda para a direita. Quando concluída essa linha, inicia o escaneamento da linha imediatamente inferior, também da esquerda para direita, e assim sucessivamente, até a extremidade direita da última linha do campo. Somente nesse momento é que temos a formação da imagem completa vista no monitor. Então, reinicia-se novamente o escaneamento da primeira linha, seguida pelas demais, para formar a segunda imagem. Esse processo é muito rápido, e como o olho humano não consegue perceber esses pequenos intervalos de tempo, temos a impressão de estar visualizando a imagem absolutamente contínua. Entretanto, quando temos imagens que se alteram muito rapidamente, como a prega vocal em vibração (cerca de 100 a 200 vezes por segundo), não existe registro de todos os detalhes desse movimento.
2 - Videoquimografia: a câmera tem a capacidade de escanear somente uma linha das inúmeras que formariam a imagem completa na câmera convencional. Assim, quando o escaneamento chega à extremidade direita da primeira linha, ao invés de iniciar o escaneamento da linha imediatamente inferior, reinicia o escaneamento da mesma linha. Deste modo, ao invés de fornecer 30 imagens completas por segundo, obtidas pela câmera convencional, fornece 7.812,5 imagens de uma mesma linha, em um segundo. Isso significa que, ainda que a imagem gerada pelo quimografo seja a de apenas uma única linha, este fornece, em um segundo, mais de 250 vezes o número de imagens das pregas vocais fornecidas pela câmera convencional. Assim, esta alta velocidade de captação gera uma imagem praticamente contínua, capaz de captar movimentos muito rápidos, como o das pregas vocais em vibração.
A linha escaneada pelo equipamento corresponde à primeira linha superior na tela do monitor, que deve ser posicionada para registrar a região da prega vocal a ser estudada (Figura 1b). Essas linhas captadas são apresentadas sucessivamente na tela do monitor, de cima para baixo, mostrando fielmente o padrão vibratório da região selecionada da prega vocal (Figura 1c). É importante entender que, quando as imagens da quimografia são gravadas em vídeo, no padrão VHS - NTSC, estas gravações são feitas na razão de 30 quadros/segundo. Portanto, cada imagem que se visualiza no monitor é formada por dezenas de linhas captadas pelo quimógrafo, na razão de 7.812,5 linhas/segundo.
A alternância entre os modos de funcionamento da câmera ocorre acionando-se um pedal, que converte a imagem normal em preto e branco para o sistema quimográfico de escaneamento.
Os instrumentos necessários para a realização deste exame são: a câmera de videoquimografia, com o pedal de conversão, a lente com adaptador para telescópio (Figura 2), o telescópio de laringe, fonte de luz fria, vídeo gravador, monitor de vídeo e vídeo impressora (opcional).
O exame de quimografia deve ser realizado da mesma maneira que a laringoscopia com o telescópio. O paciente deve estar na posição sentada, com o mento ligeiramente elevado e a língua exposta confortavelmente. O examinador deve fixar a língua com o dedo polegar e o médio, tracioná-la delicadamente e introduzir o telescópio. A emissão das vogais /e/ ou /i/, durante a fase de introdução do telescópio, amplia o espaço na região da orofaringe, facilitando sua introdução e, conseqüentemente, a visualização da laringe. Uma vez visualizada a laringe em imagem convencional, a região da glote a ser examinada com a quimografia deve ser escolhida (Figura 1a). Em seguida, o telescópio deve ser mobilizado de tal forma que o limite superior da imagem visualizada no monitor venha a ser a região da glote selecionada para o exame (Figura 1b). Nesse momento, o pedal deve ser acionado, obtendo-se, com isso, a imagem quimográfica (Figura 1c). Essa imagem mostra, claramente, os ciclos vibratórios que se sucedem em tempo real, captando todos os ciclos vibratórios. Podemos visualizar os ciclos vibratórios e as 4 fases que compõem cada um destes ciclos: a fase fechada, a fase de abertura, a fase de abertura máxima e a fase de fechamento. Em cada um desse ciclos, podemos ainda observar os diversos parâmetros que os caracterizam como: a amplitude de vibração de cada prega vocal, simetria de fases, estado da onda de mucosa em cada lado (lábio superior e inferior), fechamento glótico e tempo de duração de cada fase do ciclo vibratório. Ainda: ao observarmos a sucessão dos ciclos vibratórios, podemos perceber a periodicidade regular ou não da vibração. A Figura 3 mostra, esquematicamente, esses diversos parâmetros da vibração cordal visualizados pela quimografia.
Figura 1 a. Imagem completa das pregas vocais obtida no modo convencional.
Figura 1 b. A linha escaneada corresponde à primeira linha superior da imagem.
Figura 1 c. As linhas escaneadas são apresentadas sucessivamente no monitor - vibração normal.
Figura 2. Câmera de quimografia, adaptador de telescópio e pedal.
Figura 3. Representação esquemática de dois ciclos vibratórios captados pelo quimógrafo e os parâmetros vibratórios que os caracterizam.
Figura 4. (a) Imagem estroboscópica obtida de paciente submetido à decorticação bilateral, onde se pode observar a presença de onda mucosa na prega vocal direita.
Figura 4 b. Videoquimografia do mesmo paciente; notar a maior onda mucosa na prega direita.
Figura 5. Paciente com periodicidade de vibração irregular.
Discussão
Do ponto de vista clínico, a videoestroboscopia de laringe consiste em exame dos mais poderosos para avaliação de alterações orgânicas e funcionais presentes ao nível das pregas vocais. A possibilidade de ver os ciclos vibratórios (ainda que seja por imagem composta) permite observar as diversas características da vibração cordal, como a periodicidade, a onda mucosa, a amplitude de vibração de cada prega vocal, a concordância ou não das fases de vibração e o grau de fechamento glótico. Entretanto, essas características são notadas de maneira subjetiva por parte do examinador e, como tal, a interpretação correta depende diretamente da sua experiência prévia e do uso do conhecimento da fisiologia da fonação. Pequenas assimetrias de amplitude e, especialmente, de fases entre as pregas, são particularmente difíceis de serem notadas, mesmo sob a visão de experiente profissional. Tanto é que, para estudo preciso e objetivo, é necessária a análise quadro a quadro das imagens videográficas, seguida de representação gráfica da vibração (Tsuji, 1997). Entretanto, esse tipo de representação requer trabalho infindável de análise, tornado-se inviável do ponto de vista prático, em nível ambulatorial. Além dessas dificuldades, a estroboscopia realizada durante a vigência de vibrações aperiódicas, resulta em imagens distorcidas do ciclo vibratório, impedindo a análise quantitativa e confiável dos diversos parâmetros.
Diante dessas dificuldades, a videoquimografia pode ser considerada importante complemento do exame estroboscópico. Suas imagens devem ser interpretadas da mesma forma que a representação gráfica dos ciclos vibratórios estroboscópicos, com a vantagem de que cada ciclo registrado corresponde ao ciclo real, e não a um ciclo composto, como ocorre na estroboscopia (Figuras 4a e 4b). Esse aspecto representa grande vantagem em relação ao método de quantificação dos parâmetros da vibração proposta por Isogai (1993), que se baseia em imagens estroboscópicas e, portanto, em ciclos vibratórios compostos.
Tsuji (1997) realizou estudo experimental da vibração cordal, analisando imagens estroboscópicas obtidas de laringes excisadas submetidas à tireoplastia tipo I unilateral. Nesse estudo, representou graficamente as diferentes fases da vibração cordal, baseando-se na análise quadro a quadro, de aproximadamente 120 quadros de imagens estroboscópicas digitalizadas de cada laringe. Esse árduo trabalho poderia ser facilmente dispensado com a utilização da videoquimografia, que oferece representação gráfica quase instantânea da vibração, acrescido da grande vantagem de mostrar ciclos reais.
Algumas limitações da videoquimografia devem ser lembradas. A primeira é o fato da linha escaneada pelo equipamento corresponder à primeira linha da tela. Conseqüentemente, nem sempre é possível obter a imagem quimográfica da região cordal desejada, pois ao mobilizar o telescópio para trazer a primeira linha da tela para a região desejada, alguns fatores, como a presença da epiglote, língua posteriorizada etc., podem impedir a visualização. Outra limitação está relacionada à impossibilidade do controle visual da região cordal escaneada, durante o modo de quimografia. Isso pode fazer com que pequenos movimentos do trato vocal e do telescópio resultem em escaneamento de regiões que nem sempre correspondem à região pré-selecionada. Estas limitações podem ser facilmente contornadas nos estudos experimentais da vibração cordal, com a utilização de laringes excisadas, onde os obstáculos anatômicos podem ser eliminados e a posição do telescópio fixada por meio de um tripé.
Mesmo com estas limitações, a videoquimografia representa poderoso complemento da estroboscopia, permitindo melhor compreensão da fisiologia da vibração cordal e o estudo de vibrações com periodicidade irregular (Figura 5). Especialmente em estudos experimentais com laringe excisadas, este método pode ser considerado como meio quase indispensável para o registro da vibração cordal, a custos reduzidos. Acreditamos que sua utilização poderá ser ainda mais ampliada e aperfeiçoada com novos desenvolvimentos tecnológicos que venham, por exemplo, permitir efetivamente a seleção da linha da tela a ser escaneada, oferecendo, maior precisão e versatilidade no exame. Ainda, a possibilidade de se fazer este tipo de exame em cores facilitaria o reconhecimento das estruturas (p.e., lesão vascular) e fenômenos vibratórios, como a onda de propagação mucosa.
Conclusão
A videoquimografia pode ser considerada método diagnóstico complementar à estroboscopia de laringe, possibilitando maior compreensão dos fenômenos vibratórios. Vislumbra-se ampla possibilidade de sua aplicação prática; entretanto, novos estudos clínicos e experimentais deverão ser realizados para maior compreensão da aplicabilidade desse método propedêutico.
Bibliografia
1. Svec, J.G.; Schutte, H.K. - Videokymography: high-speed line scanning of vocal fold vibration. J voice 1996; 10:201-5.
2. Schutte, H.K.; Svec, J.; Sram, F. - Videokymography: research and clinical aspects. Log Phon Vocol 1998; 22:152-6.
3. Schutte, H.K.; Svec, J.; Sram, F. - First results od clinical application of videokymography. Laryngoscope 1998; 108:1206-10.
4. Isogai, Y. - Analysis of the vocal fold vibration by the laryngostrobography - improvements of the analytic function. Larynx Japan 1993; 8:27-32.
5. Tsuji, D. H. - Tireoplastia tipo I - Estudo experimental da vibração de pregas vocais com videoestroboscopia. Tese de doutorado apresentada a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - 1997; 112p.
6. Lambert instruments - Kymocam Manual - NTSC version; 1-4.
Assistente Doutor da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
Trabalho realizado no Laboratório de Investigação Médica da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (LIM-32) (Laringologia Experimental).