INTRODUÇÃO A ingesta de corpos estranhos constitui um diagnóstico relativamente comum nos serviços de emergência de otorrinolaringologia, ocorrendo principalmente em indivíduos de baixa condição sócio-econômica e de idade avançada devido ao uso de prótese dentária. Cerca de 8090% dos corpos estranhos que alcançam o trato gastrintestinal serão eliminados espontaneamente, 10-20% necessitarão de intervenções não-cirúrgicas e 1% de cirurgia (1). As complicações relacionadas à ingesta de corpos estranhos são a perfuração esofágica, formação de abscesso cervical e migração do corpo estranho, sendo de baixa prevalência, no entanto potencialmente graves (2).
Apresentamos um caso de abscesso retrofaríngeo de evolução tardia após ingesta de corpo estranho.
RELATO DO CASO Paciente do sexo feminino, 56 anos, parda, procura o serviço de emergência de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) com história de ingesta de corpo estranho (espinha de peixe) há 48 h evoluindo com odinofagia e dor cervical. Foi realizada na ocasião uma radiografia de pescoço em perfil, demonstrando corpo estranho radiopaco no nível do cricofaríngeo (Figura 1) e endoscopia digestiva alta (EDA) com retirada de corpo estranho do segmento faringoesofágico (Figura 2) e visualização de discreta laceração local. A paciente evoluiu com melhora parcial da disfagia e da cervicalgia após o procedimento, recebendo alta com anti-inflamatório nãoesteroidal e orientada quanto aos sinais de alerta.
Cerca de um mês após, a paciente retorna ao serviço referindo piora gradativa da disfagia, dor a movimentação cervical ântero-posterior e esquerda, sensação de corpo estranho em faringe, sem qualquer episódio de febre. No exame físico encontrou-se uma leve dificuldade de mobilização cervical e perda da crepitação laríngea. Foi então colhido um hemograma, com 4930 leucócitos sem presença de desvio à esquerda e realizado uma radiografia de pescoço em perfil, demonstrando um alargamento dos tecidos moles pré-vertebrais e perda da lordose cervical (Figura 3). Deste modo foi solicitada uma tomografia computadorizada (TC) de pescoço que evidenciou uma coleção multiloculada com intenso realce periférico após injeção de contraste e com pequena quantidade de líquido interno ocupando região retrofaríngea mediana e paramediana esquerda (Figura 4).
Diante dos achados, foi introduzida antibioticoterapia com ceftriaxone e clindamicina, hidrocortisona e optado por abordagem cirúrgica para drenagem do abscesso, via laringoscopia de suspensão. Durante o procedimento foi visualizado abaulamento de parede posterior da faringe, desde altura de aritenoides até poucos milímetros superiormente a transição faringo-esofágica, realizado secção longitudinal de mucosa com saída de secreção purulenta em pequena quantidade, seguida pela passagem de sonda nasogástrica (SNG). No material enviado para cultura, houve crescimento de Staphylococcus coagulase negativo e Streptococcus bovis.
A paciente evoluiu com melhora clínica e laboratorial, com TC de controle no 6º dia pós-operatório sem coleções ou edema, recebendo alta no 8º dia pós-operatório com alimentação via oral.
Figura 1. Radiografia de pescoço em perfil demonstrando corpo estranho radiopaco impactado no nível do M. cricofaríngeo.
Figura 2. Corpo estranho retirado na endoscopia.
Figura 3. Radiografia de pescoço em perfil demonstrando alargamento dos tecidos moles pré-vertebrais e perda da lordose cervical.
Figura 4. Tomografia computadorizada de pescoço eviden-ciando uma coleção multiloculada ocupando região retrofaríngea mediana e paramediana esquerda.
DISCUSSÃO Infecções que acometem o espaço retrofaríngeo podem originar-se por contiguidade ou secundária a trauma penetrante. Na primeira, pode haver supuração de linfonodos retrofaríngeos, que drenam infecções de vias aéreas superiores ou extensão a partir do acometimento de outros espaços cervicais. Já na segunda via, a infecção é secundária a um trauma penetrante, que pode ser ingesta de corpo estranho e até mesmo iatrogênico após endoscopia digestiva alta (EDA), intubação orotraqueal, laringoscopia e passagem de sonda nasogástrica (SNG) (3).
Considerando-se como complicações o desenvolvimento de abscesso cervical, perfuração esofágica e a necessidade de abordagem cirúrgica, LAI et al encontrou como fatores preditivos de complicação após ingesta de corpo estranho a presença de mais de dois dias de história, a visualização de corpo estranho na radiografia de pescoço no perfil e a presença de corpo estranho impactado em cricofaríngeo ou esôfago superior (devido ao maior risco de perfuração) (2).
A tomografia computadorizada apresenta alta sensibilidade e especificidade tanto para localização do corpo estranho como para avaliar a presença de possíveis complicações (4,5,6).
Segundo CIRIZA et al a instalação imediata de sintomas após ingesta de corpo estranho, disfagia e ausência de localização faríngea foram fatores preditivos de achado de corpo estranho impactado na EDA (1).
No caso apresentado, chama a atenção o longo intervalo de tempo observado entre a ingesta do corpo estranho e a manifestação do abscesso retrofaríngeo. É possível que um pequeno fragmento do corpo estranho tenha permanecido nos tecidos retrofaríngeos após remoção de sua maior parte, causando o abscesso local. Outros estudos relatam a ocorrência tardia de abscesso retrofaríngeo após ingesta de corpos estranhos biologicamente menos ativos, como o vidro (7,8). O abscesso permaneceu limitado e com poucas manifestações sistêmicas, tais como febre e leucocitose, outro aspecto interessante do caso apresentado. A drenagem cirúrgica pode ter permitido extrusão não identificada deste fragmento e resolução do quadro.
COMENTÁRIOS FINAIS Abscesso retrofaríngeo pode ocorrer várias semanas após ingesta de corpo estranho. Ausência de febre e leucocitose não exclui o diagnóstico mesmo em pacientes imunocompetentes. Um alto grau de suspeição conduz à realização de exames diagnósticos e conduta adequados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Ciriza C, García L, Suárez P, Jiménez C, Romero MJ, Urquiza O, Dajil S. What predicitve parameters best indicate the need for emergent gastrintestinal endoscopy after foreign body ingestion? J Clin Gastroenterology. 2000, 31(1):23-28.
2. Lai ATY, Chow TL, Lee DTY, Kwok SPY. Risk factors predicting the development of complications after foreign body ingestion. Br J Surg. 2003, 90:1531-1535.
3. Sennes LU, Tsuji DH, Imamura R, Angélico Junior FV. Head and Neck Space Infections: A prospective study. Otolaryngol Head Neck Surg. 2000, 123(2):255-256.
4. Lue AJ, Fang WD, Manolidis S. Use of plain radiography and computed tomography to identify fish bone foreign bodies. Otolaryngol Head and Neck Surg. 2000, 123(4):435-438.
5. Palme CE, Lowinger D, Petersen AJ. Fish Bones at the Cricopharyngeus: A Comparison of Plain-Film Radiology and Computed Tomography. Laryngoscope. 1999, 109(12):1955-1958.
6. Frizzarini R, Wiikmann C, Imamura R, Tsuji DH, Sennes LU. Achados Radiológicos de Corpo Estranho de Esôfago. Limitação da Radiografia Simples para o Diagnóstico Diferencial com Abscesso Retrofaríngeo. Int Arch Otorhinolaryngol., 2003, 7(4):254.
7. Allotey J, Duncan H, Williams H. Mediastinitis and retropharyngeal abscess following delayed diagnosis of glass ingestion. Emerg Med J. 2006, 23(2):e12.
8. Woolley SL, Smith DR. History of possible foreign body ingestion in children: dont forget the rarities. Eur J Emerg Med. 2005, 12(6):312-6.
1. Medical Doctor. Otorrhinolaryngology Third-year resident at Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2. PhD (Assistant Doctor at Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. )
3. PhD (Collaborator Professor at the Otorrhinolaryngology Discipline from the Universidade de São Paulo Assistant Doctor at Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo)
Instituição: Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo / SP - Brasil. Endereço para correspondência: Henrique Faria Ramos - Rua Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 255. Secretaria do Departamento de Otorrinolaringologia - São Paulo / SP
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Artigo recebido em 30 de Agosto de 2008. Artigo aceito em 05 de Março de 2009.