INTRODUÇÃO
Chamamos de Síndrome Cervical a associação de vários sinais e sintomas que envolvem o crânio e a região cérvico-escapular, tais como desequilíbrio e tonturas, que apresentam origem no segmento cervical, ou na transição crânio-vertebral1. Embora haja ainda muitas controvérsias a respeito de sua definição, incidência e sintomatologia, entre ortopedistas, neurologistas e otorrinolaringologistas, a Síndrome Cervical é, para o otoneurologista, quadro estabelecido, e seu tratamento correto leva a sucesso terapêutico indiscutível2.
Para a maioria dos autores, são três os mecanismos que explicam a relação entre a região cervical e a geração do nistagmo e da vertigem: estimulação do simpático cervical posterior, insuficiência vértebro basilar e disfunção proprioceptiva1. Tais descrições, embora datem de muitos anos, continuam respeitadas até hoje. Seus quadros clínicos variam de acordo com a etiologia, se vascular ou proprioceptiva, sendo os quadros de comprometimento vascular mais graves.
De forma geral, os quadros proprioceptivos são mais brandos. O diagnóstico, nesses casos, pode tornar-se difícil ao médico inexperiente, que busca, nos exames subsidiários, a "causa" para os sintomas, sentindo-se completamente desorientado na condução do caso, e acabando por rotular o paciente como portador de distúrbio neurovegetativo, diagnóstico totalmente equivocado3,4.
Qualquer processo gerador de desequilíbrio tem seqüência natural, que leva, com freqüência, ao isolamento social secundário, ao medo de sair e apresentar tontura, dirigir, tomar ônibus etc. Aos poucos, o medo passa a limitar também a vida doméstica, o que leva também ao isolamento familiar. Geralmente, desanimado após tomar vários medicamentos, sem alívio de seus sintomas, e sem saber o que o acomete, o paciente vai tornando-se cada vez mais deprimido e isolado.
A primeira finalidade deste artigo é demonstrar como um problema postural pode levar ao estado de desequilíbrio que, por sua vez, pode comprometer a qualidade de vida do paciente. Outro propósito do tema é demonstrar que o raciocínio otoneurológico é fundamental no diagnóstico e condução desses quadros.
DESCRIÇÃO DO CASO
RCP, feminino, 36 anos, médica veterinária, procurou o HC-FMUSP com histórico de tontura por dois anos, após crise de contratura dolorosa da musculatura cérvico-escapular direita. De início, a tontura foi caracterizada como vertigem incapacitante e, atualmente, adquiriu caráter limitante, com sensação de instabilidade constante, e vertigens desencadeadas pela movimentação da cabeça. Sem queixas auditivas.
As dores cervicais iniciaram-se há alguns anos, e culminaram em processo espástico há dois anos (torcicolo), quando passou a apresentar tontura que perdura até hoje. Descreve a tontura como sensação de "cabeça leve", com vertigens à movimentação da cabeça, como olhar para cima, abaixar a cabeça, ou qualquer movimento que envolva a rotação cervical. Com a evolução do quadro, adquiriu postura rígida, não move o pescoço, e pende a cabeça lateralmente para a direita, como defesa contra a dor. Adquiriu limitações de vida, tais como: levantar o prato para comer, beber refrigerantes com canudinho, não abaixar a cabeça para escovar os dentes, não ficar em pé sem apoio por muito tempo. Deixou de sair com amigos, pois não consegue guiar ou fazer a refeição normalmente. Deixou de fazer exercícios físicos, ganhando aproximadamente 8 quilos no período, o que piorou sua dor cervical.
Durante a evolução, procurou vários profissionais, entre otorrinolaringologistas, neurologistas e ortopedistas, que solicitaram os mais variados exames clínicos como: hemograma, função tireoideana, colesterol total e frações, triglicérides, GTT com insulinemia, provas de função reumática, hormônios ovarianos, todos normais. Entre os exames de imagem, trazia o RX de coluna cervical em três posições, sem anomalias anatômicas, mas que mostrava retificação da lordose fisiológica, CT de crânio e ossos temporais, RNM de crânio e coluna cervical, na busca de lesões estruturais mínimas e doppler de artérias vertebrais e carótidas, também normais. Trazia ainda eletronistagmografia e BERA, do início do quadro, ambos normais.
Nos dois anos de investigação, a paciente tomou vários medicamentos depressores do sistema vestibular e moduladores de fluxo sangüíneo, sem melhora. O único alívio que apresentou, no período, foi através de fisioterapia, indicada por ortopedista. No momento da consulta, estava em uso de antidepressivos, receitados por psiquiatra, e tem indicação de infiltração de toxina botulínica em região escapular.
EXAME: Ao exame cínico, chamava a atenção a contração contínua dos músculos cérvico-escapulares, postura rígida, com movimentação do corpo em monobloco, lembrando um robô. Seu exame ORL era normal.
Ao exame otoneurológico, foram observados: audiometria normal, com reflexos presentes, bilateralmente (Figura 1); provas de equilíbrio estático e coordenação normais, com rotação de 60º à direita, na prova de Fukuda.
Figura 1. Audiometria tonal e pesquisa do reflexo estapediano.
Figura 2. A) Ausência de nistagmo espontâneo; B) Presença de nistagmo de torção cervical à direita.
À eletronistagmografia, foi observado nistagmo de torção cervical para a direita, estando o restante dentro dos limites da normalidade (Figura 2).
DIAGNÓSTICO: Com a tríade de dor cervical com nistagmo de torção, retificação da coluna cervical e audiometria normal, foi feito o diagnóstico de síndrome cervical proprioceptiva, sem lesão estrutural.
PROPOSTA DE TRATAMENTO: Reabilitação vestibular, associada a trabalho de conscientização e reeducação postural.
EVOLUÇÃO: Primeira semana: exercícios diários, através de contração e descontração contínua, com utilização de exercícios neurointegrativos, com e sem movimentos de cabeça e exercícios de equilíbrio.
2a semana: exercícios de força e tonicidade, trabalhando a musculatura flexora, extensora e estabilizadora, em progressão de dois minutos, até chegar a 30 minutos; mesmos exercícios vestibulares.
3a semana: a paciente já referia poder olhar para cima, comer normalmente, escovar os dentes, referindo discreta melhora.
4a semana: início de exercícios físicos em grupo, para melhorar o fator emocional; referia 50% de melhora, podendo passar roupa e andar um pouco mais rápido.
6a semana: melhora notável de 80%, fazendo exercícios aeróbicos, com ritmo de dança; mudança da fisionomia visível, conversando, sorrindo com a musculatura facial mais relaxada; refere ainda dormir com dois travesseiros.
8a semana: persiste leve mal-estar ao movimentar a cabeça, quando deitada; hesita em retirar o segundo travesseiro; como terapia para o medo, realizamos a prova de Halpike, demonstrando que não havia tontura, com a cabeça pendente e torção cervical, e, portanto, o segundo travesseiro poderia ser retirado.
10a semana: bem, persistindo ainda contratura da musculatura cérvico-escapular; retirou o travesseiro, voltou a sair com amigos e ter vida normal; apresenta leves tonturas ao deitar.
A partir de então, a proposta foi manter o condicionamento físico, sem o que, a postura viciosa voltaria e, com ela, a dor e a tontura. O domínio básico do corpo pode levar, aproximadamente, um ano.
Em um ano de seguimento, a paciente continua realizando exercícios aeróbicos (caminhada) três vezes por semana, durante 1 hora, continuando assintomática.
DISCUSSÃO
A tensão muscular é produzida pela contração de fibras musculares, devendo existir certo grau de tonicidade, para que isso ocorra. Para que haja funcionamento adequado, a musculatura deve permanecer relaxada, quando não está em uso. Manter a tensão muscular, em repouso, provoca dispêndio desnecessário de energia, que poderia estar disponível para o funcionamento normal do organismo5.
O excesso de tensão é produzido por duas causas básicas: emocional e mecânica. É difícil estabelecer qual o fator causal e, assim, as duas causas acabam interrelacionando-se. Os fatores mecânicos incluem os maus hábitos, má postura e alinhamento inadequado do corpo. A tensão excessiva compromete o bom funcionamento dos proprioceptores cervicais, levando à informação errônea a respeito da situação de equilíbrio5. Além disso, alguns autores advogam o fato de que o estímulo desses proprioceptores provocaria espasmo arterial no território vértebro-basilar, levando a isquemia da orelha interna6,7. Após ter sido estabelecida a origem proprioceptiva do processo, o tratamento escolhido estará sempre associado a algum tipo de procedimento físico que vise relaxar a musculatura e corrigir eventuais erros posturais8.
A rigidez apresentada pela paciente era causada, portanto, por excesso de tensão, que interferia no processo normal de relaxamento muscular. Como já referido anteriormente, não havia lesões anatômicas da coluna cervical. A tensão produzida, interferia não apenas no relaxamento dos ombros, como também dos peitorais, diafragma e músculos abdominais, comprometendo o processo de respiração, e tendo, como conseqüência, a má oxigenação tissular.
Embora a paciente apresentasse quadro postural típico, facilmente detectável pela retificação da coluna cervical, neste caso, os exercícios vestibulares são importantes, pois a tontura apresentada à movimentação da cabeça impede a realização dos exercícios musculares. Aliar os dois programas constituiu-se na forma ideal para a obtenção do melhor resultado possível, no menor espaço de tempo.
Portanto, estamos diante da apresentação de um caso de tontura, sem alterações anatômicas, ou sorológicas, com a finalidade de alertar o otorrinolaringologista para o fato de que a determinação do fator etiológico é de fundamental importância no correto tratamento da patologia. O uso de drogas sedativas vestibulares só é permitido se houver a preocupação em procurar a causa desencadeante dos sintomas. O uso indiscriminado de drogas de ação no sistema vestibular, não só não resolve o problema, como também piora o prognóstico do doente, que se vê perdido entre os sintomas e a medicação. A permanência do quadro vertiginoso faz com que o paciente se torne deprimido, amedrontado, e acaba por piorar suas queixas e sintomas.
A reabilitação vestibular tem-se mostrado excelente tratamento coadjuvante para casos como esse, onde o medo passa a fazer parte do dia a dia do doente, agravando o problema de base. Muitas vezes, apenas o fato de explicar ao paciente o que se passa já é o bastante para que ele se sinta melhor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BOTTINO, M. A. - Síndrome Cervical. XXX Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia & XXIII Congresso Brasileiro de Endoscopia Peroral, Rio de Janeiro, 1990 - ANAIS.
2. GLAM, R.; RITTMEISTER, M.; SCHIMITT, E. - Vertigo in patients with cervical spine disfunction. Eur Spine J, 7(1):55-8, 1998.
3. KALBERG, M.; MAGNUSSON, M. - Asymmetric optocinetic after nystagmus induced by active or passive sustained head rotations. Acta Otolarryngol (Stockh), 116(6):647-51), 1996.
4. BRANDT, T. - Cervical vertigo reality or fiction? Audiol Neurootol, 1(4):187-96, 1996.
5. YANKER, G.; BURTON, K. - Walking Medicine: the lifetime guide to preventive and rehabilitative exercisewalking programs, McGraw - Hill Publishing Company, 1990
6. GANONG, W. F. - Fisiologia Médica - El Manual Moderno, México, 1965.
7. BOTTINO, MA. Doenças do ouvido interno in Bento, RF; Miniti, A; Marone, SAM - Tratado de Otologia, EDUSP, 1998.
8. KALBERG, M.; MAGNUSSON, M.; MALMSTRON, E. M.; MELANDER, A.; MORITZ, U. - Postural improvement after phisiotherapy in patients with dizziness of suspected cervical origin Arch Phys Med Rehabil, 77(9):874-82, 1996.
1- Assistente Doutor do Setor de Otoneurologia.
2- Fonoaudióloga responsável pela Reabilitação Vestibular do Setor de Otoneurologia.
3- Bachelor of Science, University of Michigan
4- Assistente Doutor do Setor de Otoneurologia.
5- Professor Doutor da FMUSP, chefe do Setor de Otoneurologia.
Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP - Serviço do Professor Aroldo Miniti