Introdução
A imunoglobulina A (IgA) é uma molécula produzida por linfócitos B, cuja função é compor a defesa imunológica do organismo. Sua produção é estimulada por antígenos polissacárides (ex. cápsula bacteriana) que sensibilizam os linfócitos B. Observa-se duas subclasses de IgA: IgA monomérica encontrada no soro e IgA dimérica ou secretora encontrada nas secreções, sobretudo na saliva, lágrima, muco nasal, colostro, secreções pulmonares, trato gastrointestinal e urogenital. No soro, a IgA corresponde a 15% do total de imunoglobulinas. A IgA secretora é a principal imunoglobulina encontrada nas secreções mucosas e corresponde à primeira linha de defesa das superfícies expostas aos microrganismos. Esta subclasse parece ser produzida principalmente ao nível das amígdalas e adenóides1..
A imunodeficiência primária em crianças pode ser dividida didaticamente em 4 grupos2:
1 - Imunodeficiência de células B, caracterizada por alterações da imunidade humoral, apresentando manifestações clínicas diversas,responsabilizando-se nestas condições pelo surgimento de pneumonias recorrentes, infecções de vias aéreas superiores, septicemias e meningites. Pode ocorrer sem apresentar aumento da freqüência de infecções.
2 - Imunodeficiência de células T, correspondendo a alterações da imunidade celular, associada a pior prognóstico e ocorrência de pneumonias por Pneumocystis carinii . A associação de imunodeficiência de células B e T indica pior prognóstico.
3 - Deficiência do sistema complemento: pode levar a aumento da incidência de infecções e doenças do colágeno.
4 - Deficiência do sistema fagocitário: pode acarretar erros no reconhecimento e destruição das bactérias diminuindo a resistência a infecções.
A imunodeficiência seletiva de IgA é a manifestação mais freqüente das imunodeficiências primárias podendo ser distinguidos dois subgrupos:
1 - Forma completa que se traduz por níveis de IgA indetectáveis (IgA < 5mg/dl),
2 - Forma parcial que apresenta níveis de IgA abaixo do normal para a idade, porém detectáveis. A freqüência dessa condição na população varia entre 1:400 e 1:3000 em diferentes países16. A suscetibilidade está relacionada a genes HLA classe III e defeitos no cromossomo 18, mas os fatores que determinam sua expressão não foram determinados.
Os pacientes portadores de imunodeficiência seletiva de IgA apresentam clinicamente infecções recorrentes, principalmente do trato respiratório, causadas por bactérias capsuladas (Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, Neisseria meningitidis).
Crianças apresentando infecções das vias aéreas superiores (otites,sinusites, adenofaringoamigdalites) de repetição constituem um elevado número de pacientes que procuram serviços de otorrinolaringologia. Os principais fatores predisponentes destas infecções de repetição são anormalidades anatômicas ou funcionais como desvio septal, obstrução do complexo osteomeatal, disfunção tubária, hipertrofia adenoamigdaliana e alergias3. Entretanto, estas infecções podem ser predispostas por patologias sistêmicas como fibrose cística, discinesia ciliar primária e imunodeficiências.
O objetivo deste trabalho consiste em relatar 4 casos de imunodeficiência seletiva de IgA, realizando revisão de literatura e alertando o especialista para esta patologia que pode estar sendo subdiagnosticada na prática clínica.
Apresentação dos Casos
Crianças com infecção do aparelho respiratório superior de repetição, foram avaliadas no ambulatório de otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFBA e exames laboratoriais identificaram 4 pacientes com níveis de IgA indetectáveis. Destes pacientes, 3 são do sexo masculino e 1 do sexo feminino, com idade variando entre 1 e 4 anos (média 2,7 anos). O quadro clínico foi caracterizado pela recorrência de infecções do aparelho respiratório superior. Todas as crianças foram submetidas a dosagem de imunoglobulinas, subclasses IgG, complemento sérico total e frações e posteriormente consulta com o serviço de imunologia.
Caso 1: BDLB, 1 ano, com história de otites de repetição, de periodicidade mensal, amigdalites e uso freqüente de antibiótico. Ao exame físico observou-se membrana timpânica hiperemiada, edemaciada, opacificada pela presença de secreção no ouvido médio; fossas nasais com secreção amarelada bilateralmente e orofaringe sem alterações. Dosagem de imunoglobulinas com níveis indetectáveis de IgA.
Caso 2: TDDS, 3 anos, com história de vários episódios de otites e rinossinusites e suspeita de hipoacusia. Ao exame físico observou-se membranas timpânicas retraídas, opacas, com líquido em ouvido médio, sem sinais de inflamação aguda, fossas nasais e orofaringe sem alterações. Timpanometria revelou curva tipo B com ausência de reflexo estapediano. A avaliação laboratorial revelou IgA indetectável.
Caso 3: GOM, 3 anos, com história de infecções de vias aéreas superiores e inferiores de repetição, tosse produtiva e uso freqüente de antibióticos. Secreção purulenta em ambas as fossas nasais, ouvido e orofaringe sem alterações. Dosagem de IgA indetectável.
Caso 4: TDS, 4 anos, com história de refluxo gastro-esofágico, alergia respiratória, vários episódios de otites e rinossinusites, amigdalites esporadicamente. Ao exame físico, ouvido direito com hiperemia, abaulamento de membrana timpânica com secreção purulenta em ouvido médio. Secreção catarral em ambas as fossas nasais, orofaringe sem alterações. A radiografia apresentava hipertrofia adenoideana e velamento maxilar bilateral. Dosagem de IgA indetectável.
Discussão
A imunodeficiência primária altera significativamente a capacidade de defesa dos indivíduos frente às infecções, principalmente quando estas alterações atingem a imunidade celular e humoral simultaneamente. Corresponde a uma parada na diferenciação de linfócitos B 4. Crianças com infecções persistentes e recorrentes do ouvido, nariz, seios paranasais e faringe devem ser avaliadas pelo otorrinolaringologista quanto à possibilidade diagnóstica de imunodeficiência primária, contribuindo para uma melhor compreensão dos fenômenos fisiopatológicos destas infecções e adequada abordagem terapêutica.
Haddad et al.2, estudando 75 crianças com imunodeficiência primária, encontraram 55 (73,3%) com deficiência humoral, 5 (6,7%) com deficiência celular, 4 (5,3%) com associação de deficiências humoral e celular, 3 (4%) com alterações no sistema complemento e 8 (10,7%) com defeitos no sistema fagocítico. O diagnóstico mais comum foi imunodeficiência seletiva de IgA, seguida de hipogamaglobulinemia, imunodeficiência variável e deficiência de IgG. Das 55 crianças com imunodeficiência humoral, 46 (84%) apresentavam infecções de repetição de ouvidos, nariz e faringe. Estes dados são concordantes com os achados dos pacientes citados no presente estudo que apresentaram infecções de repetição de vias aéreas superiores. Este estudo revelou ainda, que 80% das crianças com imunodeficiência primária apresentavam infecções em ouvidos, seios paranasais ou faringe, onde 65% apresentavam otite média crônica como infecção mais comum, seguida de sinusite (43%). Kowalczyk et al.5 , avaliaram a imunidade humoral de 6280 crianças com infecções de repetição, encontrando níveis baixos de imunoglobulinas em 4,5% dos casos. Destes casos 49,4% apresentavam deficiência de IgA e 27,17% apresentavam deficiência seletiva de IgA.
A ocorrência de vários episódios de infecções otorrinolaringológicas em crianças com imunodeficiência primária é encontrada de forma sistemática na literatura. Zonis6 encontrou 4 casos de imunodeficiência seletiva de IgA em 42 crianças americanas nativas com otite média crônica. Sala7 et al., estudando 73 adultos e crianças que apresentavam infecções recorrentes de ouvido e vias aéreas superiores, encontraram 12 (16,43%) com diminuição de IgM, 12 (16,43%) com diminuição de IgG e 8 (10,95%) com diminuição de IgA. Karma et al.18 encontraram diminuição dos níveis de imunoglobulina em 21 (37,5%) de 59 pacientes com otite média crônica. Segundo de Garcia et al.9 pacientes com imunodeficiência de IgA podem ser sintomáticos ou assintomáticos sendo que os sintomáticos frequentemente apresentam associação com deficiência de subclasses de IgG (48% dos casos, sendo a IgG2 a principal subclasse). Pongracz et al.14, encontraram alta freqüência de infecções respiratórias em 33 pacientes com imunodeficiência seletiva de IgA e enfatizaram a importância do diagnóstico precoce e da investigação de familiares. De acordo com De Laat et al.15, infecções do trato respiratório incluindo otites médias de repetição, foram freqüentes em 40 crianças com imunodeficiência seletiva de IgA.
Kruszewska et al.10, evidenciaram a coexistência de doença celíaca (16%) e intolerância à proteína do leite (50%) em pacientes com imunodeficiência seletiva de IgA. Em 60 pacientes avaliados com deficiência de IgA no "Instituto da Criança"18 da Universidade de São Paulo, as principais queixas foram: infecções de repetição (50%), alergias (34%) e doenças autoimunes (10%), sendo o sistema respiratório o mais afetado nas infecções, e asma e rinite os mais freqüentes sintomas alérgicos. Koskinen11, estudando 204 doadores de sangue com imunodeficiência de IgA identificou que 80% apresentavam infecções respiratórias, alergia a drogas, doença autoimune ou atópica. Citopenias autoimunes são comumente observadas em pacientes portadores de deficiência seletiva de IgA12. Segundo Fiore et al.13, fatores genéticos associados a genes dos subtipos DR4 e DR13 parecem estar envolvidos no desenvolvimento de deficiência de IgA e de autoanticorpos, o que sustenta a hipótese da associação entre a imunodeficiência de IgA e doenças autoimunes.
O diagnóstico diferencial deve ser realizado com outras causas sistêmicas de infecções de repetição, dentre elas a imunodeficiência adquirida, fibrose cística e a discinesia ciliar primária3.
Em 1300 crianças estudadas por Salomon et al.17, portadoras de doenças respiratórias crônicas ou recorrentes, 36 apresentavam deficiência de IgA plasmática e/ou salivar, tendo como anormalidades associadas: alergia, refluxo gastro-esofágico (como encontrado no Caso 4) e deficiência de alfa-1-antitripsina. Os achados deste estudo coincidem com a literatura ao afirmar que imunodeficiência primária está frequentemente associada a infecções otorrinolaringológicas de repetição em crianças e o otorrinolaringologista deve ter alto grau de suspeição para o diagnóstico diferencial que é essencial para uma abordagem terapêutica adequada dos pacientes.
Conclusões
A imunodeficiência seletiva de IgA é um importante diagnóstico a ser considerado nos casos de infecções otorrinolaringológicas recorrentes.
A avaliação laboratorial, incluindo dosagem de imunoglobulinas, subclasse de IgG(principalmente IgG2), complemento total e frações, deve ser realizada principalmente em crianças com otites e sinusites de repetição.
Referências Bibliográficas
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Instituição: Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia.
Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia-1998.
Endereço para correspondência: Edson Bastos Freitas - Rua Demétrio Tourinho, 210 - Apto. 901 - Jardim Apipema - CEP: 40155-010 Salvador /BA.
1- Professor Auxiliar da Disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorando do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
2- Professor Adjunto e Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
3- Médico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
4- Médico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).