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Ano: 2000  Vol. 4   Num. 3  - Jul/Set Print:
Case Report
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Petrificação do pavilhão auricular: relato de caso
PETRIFACTION OF THE AURICLE: A CASE REPORT
Author(s):
1Christian Wiikmann, 2Daniel Chung, 3Lucinda Simoceli, 4Tanit G. Sanchez, 5Rubens V. B. Neto, 6Ricardo F. Bento, 7Eloísa M. M. S. Gebrim
Palavras-chave:
petrificação, pavilhão auricular, doenças sistêmicas, tomografia computadorizada.
Resumo:

A petrificação do pavilhão auricular representa uma condição clínica incomum, na qual o pavilhão adquire consistência rochosa. Esse quadro pode decorrer da ossificação ou calcificação ectópica da cartilagem auricular. Geralmente surge após trauma local (congelação), mas também pode estar associado a algumas doenças sistêmicas como diabetes mellitus, gota, hipertensão arterial sistêmica, doença de Addison, alteração dos hormônios tireoideanos ou paratormônio e hipopituitarismo. Em função de seu quadro assintomático e do aspecto normal das orelhas externas, o diagnóstico de petrificação do pavilhão auricular em geral é acidental. Vale ressaltar, no entanto, que o conhecimento dos fatores sistêmicos associados é crucial, não tanto para o tratamento da alteração auricular, mas para o diagnóstico de alguma doença oculta.

INTRODUÇÃO

A orelha externa é uma estrutura de grande importância na estética facial, além de ter participação na função auditiva, sobretudo no que se refere à amplificação e localização de um som. Com o grande desenvolvimento da cirurgia da orelha média e interna e da otoneurologia nas últimas décadas, a orelha externa tem sido relegada a um segundo plano dentro da otologia.

A petrificação das estruturas cartilaginosas do pavilhão auricular representa um evento bastante raro (140 casos publicados na literatura médica entre 1866 e 1985)1. Em termos gerais, pode ocorrer devido a duas alterações patológicas: ossificação2 ou calcificação ectópica, sendo a primeira condição ainda mais rara, com apenas 11 casos documentados e comprovados histologicamente até 19851.

A ossificação ectópica é um processo biológico em que há desenvolvimento de tecido ósseo histologicamente idêntico ao osso lamelar em tecidos que normalmente não ossificam2. Pode ocorrer em diversas estruturas da cabeça e pescoço, por exemplo: cartilagens traqueais, tendão do músculo estapédio, membrana basilar, músculo esternocleidomastoideo e tecidos moles em geral. O envolvimento da orelha externa, na maioria das vezes, decorre de lesão térmica (congelação). Entre os 11 casos levantados por DiBartolomeo (1985), 4 pacientes haviam sofrido congelação das orelhas externas, 2 apresentavam pericondrite, 1 gota e em 4 situações a etiologia não havia sido esclarecida1.

Calcificação ectópica é um processo patológico supostamente mais comum que a ossificação. Resulta da deposição anormal de sais de cálcio, juntamente com menores quantidades de ferro, magnésio e outros minerais. Pode ocorrer em diversos tecidos do organismo e costuma ser classificada em primária e secundária1,4.

A calcificação primária, também chamada distrófica, ocorre em áreas de tecido lesado ou necrótico, pois em geral esses tecidos apresentam aumento da alcalinidade que favorece a deposição de cálcio. Via de regra, o metabolismo e os níveis séricos de cálcio e fosfato são normais. Entre suas principais causas, no que se refere à orelha externa, estão: congelação, trauma mecânico e afecções inflamatórias locais5,6. Contudo, algumas alterações sistêmicas como acromegalia, hipertensão arterial sistêmica, doenças do colágeno, diabetes mellitus, hipopituitarismo, hipotireoidismo, tratamento radioterápico e doença de Addison também podem estar envolvidas1,5.

A calcificação secundária, também chamada metastática, acomete tecidos normais e é associada a situações de hipercalcemia (produto cálcio fósforo > 70 mg/dL), como a insuficiência renal crônica, hiperparatireoidismo, sarcoidose, hipertireoidismo, hiperfosfatemia, intoxicação por vitamina D, síndrome milk-alkali e pseudo pseudohipoparatireoidismo4,3,7. Postula-se que afecções que predispõem a calcificação metastática também facilitem a deposição de cálcio em áreas de necrose1.

O objetivo deste artigo é relatar um caso de petrificação de pavilhão auricular, achado relativamente raro e de grande complexidade, uma vez que pode estar associada às condições patológicas acima citadas. Com isso, busca-se chamar atenção para a orelha externa enquanto objeto de estudo da otologia.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 62 anos, negra, dona de casa, natural e procedente de São Paulo. Foi encaminhada ao ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com queixa de hipoacusia bilateral progressiva há 1 ano, associada a endurecimento dos pavilhões auriculares e prurido discreto, sem otorréia, edema, dor ou hiperemia local. Ao exame físico, apresentava discreta hiperpigmentação dos pavilhões auriculares e consistência rígida (pétrea) dos mesmos, que se moviam lateralmente em bloco, com exceção dos lóbulos, que se apresentavam com características normais. A paciente ainda referia diminuição da sensibilidade bilateral à palpação. Como antecedentes pessoais, a paciente referiu diabetes mellitus tipo 2 e hipertensão arterial sistêmica tratada há três anos. No momento da consulta, estava em uso de glibenclamida (15 mg/dia), metformina (850 mg/dia), atenolol (25 mg/dia) e captopril (150 mg/dia). Referia controle adequado da pressão arterial, porém inadequado da glicemia. À otoscopia, observava-se discreta estenose de meato acústico externo e sem alterações na membrana timpânica.

A audiometria tonal limiar e a imitanciometria resultaram normais para a idade.

A tomografia computadorizada de ossos temporais demonstrou hiperatenuação difusa e homogênea de toda a porção cartilaginosa dos pavilhões auriculares (Figuras 1 e 2) e da porção cartilaginosa do meato acústico externo (Figuras 3 e 4). O restante do exame apresentava aspecto normal.


Figura 1. Corte coronal de ossos temporais em janela com atenuação de partes moles demonstrando a calcificação homogênea de ambos os pavilhões auriculares.


Figura 2. Corte axial de ossos temporais em janela com atenuação de partes moles demonstrando a calcificação homogênea de ambos os pavilhões auriculares.


Figura 3. Corte axial de osso temporal esquerdo em janela óssea demonstrando a consistência óssea do pavilhão auricular.


Figura 4. Corte axial de osso temporal direito em janela óssea demonstrando a consistência óssea de pavilhão auricular e porção cartilaginosa do meato acústico externo.


Os exames laboratoriais realizados foram: hemograma completo, uréia, creatinina, perfil lipídico plasmático, eletrólitos plasmáticos (sódio, potássio, cálcio, fósforo e magnésio), hormônios plasmáticos (PTH, calcitonina, cortisol, ACTH, hormônios tireoidianos), provas reumatológicas (fator reumatóide e fator antinúcleo), exames de atividade inflamatória (velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa) e urina I.

Com exceção da glicemia de jejum que resultou 249 mg/dL (normal: 70-110), da hemoglobina glicosilada 12,8% (normal: 5,5-8,5%) e da glicosúria de 1 g/L (normal: ausente), todos os exames pedidos apresentaram-se dentro dos padrões de normalidade. Não se observou proteinúria e o nível de cálcio urinário estava normal.

DISCUSSÃO

A orelha externa é sede freqüente de afecções que causam desconforto físico e insatisfação estética, motivando grande número de consultas ao especialista. Muitas dessas doenças são de fácil diagnóstico e tratamento. Contudo, em alguns casos, a orelha externa pode estar acometida por afecção grave ou rara, que muitas vezes está associada a condições patológicas sistêmicas.

A petrificação do pavilhão auricular é um fenômeno raro e, devido ao seu quadro assintomático e aparência normal, na maioria das vezes não é diagnosticada. Em ordem decrescente de incidência encontramos a exostose da porção óssea do meato acústico externo, calcificação do pavilhão e por último sua ossificação.

As causas podem ser divididas basicamente em dois grupos: a ossificação e a calcificação (primária e secundária), como descrito anteriormente. Alguns autores propõem outras modalidades de calcificação, como a idiopática, em que a deposição de cálcio ocorre sem que haja lesão tecidual ou alterações do metabolismo do cálcio8, e a iatrogênica, que resulta do uso de substâncias que contenham cálcio, por exemplo, gluconato de cálcio (utilizado no tratamento da hipercalemia). Postula-se que mesmo o simples contato com sais de cálcio possa originar deposição tecidual de cálcio9.

O diagnóstico do tipo de alteração envolvida num pavilhão endurecido pode ser sugerido a partir do achado no exame radiológico. A presença de calcificação é sugerida por presença de densidades ósseas ocupando o local em que se esperaria encontrar cartilagem1. De maneira geral, calcificações devido a fatores locais apresentam aspecto pontilhado grosseiro e estão confinadas às áreas afetadas da orelha externa. Calcificações decorrentes de doenças sistêmicas são normalmente mais extensas e bilaterais5. Por outro lado, a presença de ossificação é sugerida pela presença de trabeculações nos exames de imagem1. O diagnóstico de certeza, entretanto, só pode ser obtido através do estudo histopatológico da lesão1.

No caso apresentado, as porções cartilaginosas das orelhas externas apresentavam-se com hiperatenuação difusa e homogênea, sugerindo calcificação associada a doença sistêmica. Nossa hipótese diagnóstica, portanto, é de que a calcificação das cartilagens dos pavilhões auriculares e dos meatos acústicos externos esteja associado ao diabetes mellitus, uma vez que os exames laboratoriais indicaram normalidade do metabolismo do cálcio e a glicemia de jejum, hemoglobina glicosilada e glicose urinária se apresentavam sem controle satisfatório. Não foi realizado estudo histopatológico da lesão. O que mais chama a atenção no caso apresentado é que a alteração encontrada acometia também a porção cartilaginosa do meato acústico externo bilateralmente. Segundo revisão realizada por DiBartolomeo em 19851, todas as alterações patológicas estudadas neste texto apresentavam calcificação ou ossificação apenas do pavilhão auricular, sem inclusão do meato.

A petrificação auricular, mesmo sendo bastante incomum, deve ser avaliada minuciosamente pelo otorrinolaringologista, pois, apesar de não requerer nenhum tratamento específico, pode estar refletindo a presença de alguma doença sistêmica ainda não diagnosticada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. DiBARTOLOMEO, J. R. - The petrified auricle: comments on ossification, calcification and exostoses of the external ear. Laryngoscope, 95: 566-576, 1985.

2. KEWLARMANI, L. S. - Ectopic ossification. Am. J. Phys. Med., 56: 99-121, 1977.

3. TALMI, Y. T.; AMOS, M. C.; BAR-ZIV, J.; FINKELSTEIN, Y.; FLORU, S.; ZOHAR, Y. - Ossified auricle in Addison\'s disease. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 99: 499-500, 1990.

4. LELLIS, R. A. D. - in Robbins S.L., Kumar V., Cotran R.S. - Patologia Estrutural e Funcional, quarta edição, Rio de Janeiro, ed. Guanabara Koogan, 1991, 996-1055.

5. CHADWICK, J. M.; DOWHAM, T. F. - Auricular calcification. Int. J. Dermatol., 17: 799-801, 1978.

6. METZER, S. A.; GOODMAN, M. L. - Chondrodermatitis helicis: a clinical re-evaluation and pathological reVIEW. LARYNGOSCOPE, 85: 1402-1412, 1975.

7. COHEN, A. M.; TALMI, Y. P.; FLORU, S.; BAR-ZIV, J.; ZOHAR, Y.; DJALDETTI, M. - Ossification of the auricle in Addison\'s disease. J. Laryngol. Otol., 103: 885-886, 1989.

8. WALSH, J. S.; FAIRLEY, J. A. - Calcifying disorders of the skin. J. Acad. Dematol., 33: 693-706, 1995.

9. SCHOENFELD, R. J.; GREKIN, J. N.; MEHREGAN, A. - Calcium deposition in the skin: a report of four cases following electroencephalography. Neurology, 15: 477-480, 1965.

1- Médico Residente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
2- Médico Residente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
3- Médico Residente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
4- Médica Assistente Doutora da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
5- Médico Doutorando do Curso de Pós Graduação de Otorrinolaringologia da FMUSP.
6- Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
7- Médica Assistente do Setor de Tomografia Computadorizada do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
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