INTRODUÇÃO
O zumbido é um sintoma que acomete milhares de indivíduos por todo o mundo. Estatísticas norte-americanas revelam que cerca de 40% de seus habitantes queixam-se de zumbido em algum momento de suas vidas. Repercussões sociais e econômicas diretas e indiretas fazem do zumbido, portanto, um problema de saúde pública.1
Uma diversidade de entidades clínicas podem cursar com zumbido, tais como doenças otológicas, neurológicas, endocrinológicas/metabólicas, vasculares, odontológicas e até mesmo psíquicas.2,3 Não é raro, ainda, encontrar em um mesmo paciente mais de uma das causas citadas. Por este motivo, há a necessidade de pensar no paciente portador de zumbido de uma maneira mais abrangente e de buscar na história, avaliação otorrinolaringológica e exames laboratoriais todas estas possíveis causas. Identificá-las e tentar um tratamento adequado tem sido a nossa preocupação.
A orelha interna é praticamente isenta de reservas energéticas. Seu metabolismo depende diretamente de suprimento de oxigênio e glicose oriundas do nosso débito sanguíneo. Assim, alterações do fluxo ou dos metabólitos sangüíneos, por mínimas que sejam, são sensivelmente detectadas pela homeostase do nosso órgão auditivo.4
Muitos trabalhos clínicos têm sido realizados procurando estabelecer a relação entre os distúrbios metabólicos e a orelha interna. Entre eles, destacam-se aqueles que versam sobre os hidratos de carbono, lipídeos e hormônios tireoideanos.5-7
O objetivo desse trabalho foi avaliar a freqüência da presença de tais distúrbios em pacientes com zumbido.
MATERIAL E MÉTODO
Um total de 358 pacientes atendidos no Grupo de Zumbido do Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo entre janeiro de 1995 e junho de 1999 foram retrospectivamente avaliados. Do protocolo médico-audiológico utilizado neste ambulatório, foram extraídos os seguintes dados: dosagens de glicemia de jejum, colesterol total, triglicérideos e de hormônios tireoideanos. Destes pacientes, 221 (61,73%) eram do sexo feminino e 137 (38,27%) do sexo masculino.
Nos 83 casos em que a anamnese sugeria a presença de distúrbio de metabolismo de hidratos de carbono (piora do sintoma com períodos de jejum prolongado, cefaléia, tonturas tipo instabilidade, hábito de comer doces e/ou compulsão por doces, assim como antecedente familiar de diabetes), a glicemia de jejum foi substituída por uma curva glicêmica e insulinêmica de 3 horas.
Os exames foram realizados no mesmo laboratório, cujos parâmetros de normalidade são os seguintes: glicemia de jejum entre 70-110mg/dl, colesterol e triglicerídeos até 200mg/dl, T3 de 70-200ng/dl, T4 de 4.5-12mg/dl e TSH entre 0.5-4.2mU/ml. Para interpretação da curva glicêmica e insulinêmica de 3 horas, foram adotados os seguintes padrões (adaptados da curva de Kraft): na curva glicêmica, valorizou-se como patológico qualquer glicemia abaixo de 55mg/dl, bem como a glicemia da segunda hora acima de 145mg/dl; na curva insulinêmica, insulina de jejum acima de 50U/ml e a soma da insulinemia da segunda e terceira hora acima de 75U/ml.
Nos casos em que o sangue de determinado frasco foi coagulado ou hemolisado durante a colheita, o exame foi excluído da análise final.
A freqüência de cada um dos distúrbios analisados foi comparada com estudos populacionais representativos realizados no Brasil e no exterior, extraído de fontes seguras como o Ministério da Saúde, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Organização Mundial da Saúde.
A análise estatística adotada em cada parâmetro foi o qui quadrado (x2) com nível de significância de 95%, como preconizado para testes biológicos.
RESULTADOS
A. Metabolismo glicídico
Dos 286 exames de glicemia avaliados, 236 (82,51%) foram normais e 50 (17,49%) foram elevados (>110mg/dl), como pode ser visto no Gráfico 1. Não houve casos de glicemia de jejum < 70mg/dl.
A comparação de freqüência foi realizada com dados da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. Os primeiros mostram que a hiperglicemia afeta 7% dos homens e 8,9% das mulheres na população mundial. Já no Brasil, o Ministério da Saúde estima que a hiperglicemia afete 7,6% dos indivíduos de 39 a 69 anos. Assim, nosso grupo de pacientes apresentou uma freqüência significativamente maior de alteração na glicemia do que o esperado para a população geral (p=0,016).
Uma visão ainda mais interessante pode ser obtida ao analisarmos a curva glicêmica e insulinêmica de 3 horas, a qual foi realizada apenas nos 83 indivíduos com dados de anamnese sugestivos de distúrbio de metabolismo de hidratos de carbono e que não tinham o diagnóstico prévio de diabetes mellitus. Surpreendentemente, dos 83 exames realizados, 75 (90,36%) mostraram-se alterados (Gráfico 2). Não encontramos na literatura dados sobre a prevalência de tais alterações na população geral.
B. Metabolismo lipídico
Dos 311 exames de colesterol avaliados, 177 (56,91%) estavam alterados e 134 (43,09%) normais, como pode ser visto no Gráfico 3.
Segundo dados da literatura, aproximadamente 40% da população de 30 a 69 anos tem hipercolesterolemia 8. No Brasil, os dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia revelam que 42% da população adulta apresenta hipercolesterolemia, considerando-se como tal a presença de níveis maiores do que 200 mg/dl. Assim, nosso grupo de pacientes apresentou uma freqüência significativamente maior de hipercolesterolemia do que o esperado na população geral (p < 0,05).
Com relação ao nível de triglicerídeos, foram realizados 308 exames, sendo 48 (15,58%) alterados e 260 (84,42%) normais.
Segundo dados da literatura, aproximadamente 30,4% das mulheres e 27,6% dos homens apresentam hipertrigliceridemia. 9 Assim, essa alteração não foi significativa em nosso grupo de pacientes.
C. Hormônios tireoideanos
Dos 200 exames analisados, 170 (85%) eram normais e 30 (15%) alterados. A prevalência de alteração de hormônios tireoideanos na população é de cerca de 10%.22 Comparando estas estatísticas populacionais com o nosso grupo de pacientes, não observamos uma freqüência significativamente maior alterações de hormônios tireoideanos do que na população geral (p=0,23).
Gráfico 1. Prevalência das alterações da glicemia de jejum em nosso estudo.
Gráfico 2. Prevalência das alterações da curva glicêmica e insulinêmica em nosso estudo, segundo os parâmetros adotados por Kraft.
Gráfico 3. Prevalência das alterações do colesterol em nosso estudo.
DISCUSSÃO
Em 1864, Jordão pela primeira vez associa a glicose à doença da orelha interna, descrevendo uma surdez neurossensorial em paciente diabético e estabelecendo o vínculo entre o distúrbio metabólico e a perda auditiva 10. Koide, em 1960, cita que a glicose é um dos principais fatores na manutenção da atividade funcional da orelha interna.11
A significativa prevalência de distúrbios da glicose em nosso grupo de pacientes quando comparados com a população em geral corrobora esses fatos. É interessante realçar a enorme positividade de alterações da curva glicêmica e insulinêmica de 3 horas (90,36%) nos pacientes com suspeita de tais distúrbios através da anamnese, dando informações que a simples glicemia de jejum é incapaz de fornecer. Assim , é nossa opinião de que esse exame, por ser longo e dispendioso, não deve ser solicitado de rotina, mas sim nos casos com história sugestiva, devendo-se adotar a glicemia de jejum nos demais pacientes. Isso valoriza ainda mais nossa idéia de que a anamnese detalhada em pacientes com zumbido pode enriquecer muito a suspeita das prováveis etiologias do zumbido em cada paciente.
A bomba de Na-K-ATPase encontrada nas células ciliadas têm o importante papel de carrear ativa e continuamente o pótassio para o extracelular e sódio para o intracelular. A atividade dessa bomba pode ser comprometida tanto por alterações da glicemia como da insulinemia12, resultando em maior acúmulo do sódio na endolinfa. Consequentemente, podem surgir sintomas compatíveis com hidropisia endolinfática, como instabilidade ou vertigem, perda auditiva flutuante, zumbido e plenitude auricular. Isto é o que basicamente ocorre nestes pacientes com curva glicêmica ou insulinêmica alterada. Na diabetes propriamente dita, a fisiopatologia do zumbido associa-se também à microangiopatia e às neuropatias.13
A curva glicêmica e insulinêmica de 3 horas nos permite fazer o diagnóstico da diabetes in situ, também chamada de pré-diabetes ou intolerância à glicose. O fato é que estes pacientes (que ainda não apresentam a diabetes instalada) respondem muito bem ao tratamento dietoterápico, tanto em nossa experiência clínica como na de Fukuda, alcançando até 90% de sucesso terapêutico.4 Daí a grande vantagem de se suspeitar e fazer o diagnóstico do distúrbio de metabolismo de hidratos de carbono antes da instalação da diabetes propriamente dita, pois as alterações encontradas nesses casos são mais fáceis de serem revertidas com medidas simples do que quando já ocorreu o estabelecimento de microangiopatias e de neuropatias.
As alterações das taxas de lipídeos são outra classe de distúrbios metabólicos que também estão implicados no prejuízo do funcionamento da orelha interna.14,15 Rosen e Olin, em 1965, estudando uma comunidade com dieta "frugal" no Sudão, perceberam que esta população tinha melhor acuidade auditiva, bem como menor risco de coronariopatia do que as comunidades industriais.16 Em 1973, Spencer cita pela primeira vez a associação de zumbido em pacientes com hiperlipoproteinemia.15
Pullec, em 1997, documentou casos de hipoacusia, zumbido e tonturas relacionados a distúrbios do metabolismo dos lipídeos, inclusive com recuperação dos limiares auditivos após correção da hiperlipoproteinemia, seja hipercolesterolemia ou hipertrigliceridemia.17
Nossos pacientes portadores de zumbido tiveram uma prevalência maior de hipercolesterolemia do que a população em geral, embora isso não tenha ocorrido em relação aos triglicérideos. Portanto, há uma concordância com a literatura corrente quanto ao fator colesterol como possível etiologia do zumbido.
Acredita-se que a fisiopatologia das doenças cócleo-vestibulares nos indivíduos com distúrbios lipídicos pode estar relacionada à obstrução crônica dos capilares da estria vascular, causando isquemia e conseqüente hidropisia (vide mecanismo descrito para o metabolismo glicídico), assim como ao aumento da viscosidade sanguínea, lentificando o fluxo nos capilares da orelha média.17,18
Os hormônios tireoideanos também apresentam relação com a orelha interna. Estudos em camundongos mostraram que receptores específicos alfa e beta para hormônios tireoideanos expressam-se no ouvido logo no início da embriogênese, sendo fundamentais para a morfologia e a maturação deste órgão, uma vez que sua deficiência na embriogênese pode acarretar aparecimento de várias doenças otológicas congênitas19.
Desde o início do século, alguns autores já relataram evidências da associação entre os distúrbios tireoideanos e os de orelha interna. Em 1907, King descreveu um paciente com disfunção tireoidea e episódios de disacusia que reverteram com reposição hormonal 20. Para Moehlig, o zumbido pode ser um sintoma presente no hipotireoidismo e deve corresponder a um "sinal de alerta" 21. Em 1977, Bathia estudou 72 pacientes com hipotireoidismo, encontrando uma incidência de 7% de zumbido em seus casos. Além disso, relacionou a presença de sintomas cócleo-vestibulares com os casos de gravidade moderada ou severa da doença.22
De um modo geral, todos os distúrbios metabólicos/endocrinológicos estudados (envolvendo os hidratos de carbono, colesterol, triglicérides e hormônios tireoideanos) foram achados comuns em nosso grupo de pacientes com zumbido, embora só tenham apresentado prevalência significativa no caso dos dois primeiros. É difícil determinar até que ponto tais distúrbios podem estar realmente implicados na gênese do zumbido ou se são apenas mera coincidência nestes pacientes. Nossa conduta é considerar que o zumbido pode ser multifatorial no mesmo paciente, de modo que não desprezamos informações sobre doenças sistêmicas. De qualquer maneira, enquanto a dúvida persiste na literatura, é de bom senso que tais alterações sejam investigadas e tratadas adequadamente, uma vez que a melhora dos hábitos alimentares em relação aos açúcares e gorduras é uma medida simples, sem efeitos colaterais e que pode ajudar na melhora das condições da orelha interna de um modo geral e do zumbido em particular.
CONCLUSÕES
Em nosso estudo, as alterações metabólicas foram bastante freqüentes em pacientes com zumbido, especialmente aquelas relacionadas à glicose e ao colesterol. Assim, o otorrinolaringologista deve incluir essa avaliação na rotina de atendimento desses pacientes, referindo os casos de alteração para avaliação multidisciplinar com a intenção de revertê-los e obter melhores resultados no controle do zumbido.
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Trabalho desenvolvido na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Dra. Tanit Ganz Sanchez - Rua Pedroso Alvarenga, 1255, cj.27 Itaim Bibi, São Paulo - SP - 04531-012 - Tel: (11)3167-6556 - Fax: (11)3079-6769 - E-mail: tanitgs@attglobal.net
Artigo recebido em 1º de dezembro de 2000. Artigo aceito em 18 de dezembro de 2000.
1- Professora Colaboradora da Faculdade de Medicina da USP e Médica Assistente Doutora da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2- Doutorando do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Georges Fassolas, Aluno do 6º ano da Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3- Aluno do 6º ano da Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
4- Aluno do 6º ano da Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
5- Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.