INTRODUÇÃO
Conhecida como otomicose, a otite externa fúngica é uma infecção micótica que acomete o meato acústico externo e a membrana timpânica, sendo documentada pela primeira vez em 18441.
Poucos trabalhos documentam a incidência de otomicose, dentre eles citamos Mugliston et al, que em 1985, observaram a ocorrência de 9% de otite externa fúngica dentre 12000 pacientes com afecções no ouvido externo3.
As referências a este tema são escassas e nos últimos anos houve pouca evolução quanto a conduta terapêutica e medidas de profilaxia de recorrências desta afecção, comum em pacientes imunocomprometidos. O aumento da incidência de doenças sistêmicas que afetem o sistema imunológico, bem como proporcionem substrato para proliferação patológica dos diversos microorganismos no meato acústico externo enfatiza a importância da discussão deste tema na atualidade.
ETIOLOGIA
A otomicose é mais comumente causada por fungos do gênero Aspergillus niger, Aspergillus fumigatus, Aspergillus flavus, Candida spp e mais raramente o Penicillium spp., sendo o Aspergillus fumigatus o principal agente etiológico.
Devemos lembrar que mesmo no ouvido considerado normal pode haver o crescimento de fungos saprófitas de pouca patogenicidade. No entanto, proliferação patológica é achada principalmente quando há infecção bacteriana crônica e entidades obstrutivas como corpo estranho ou tumor do meato acústico.
Kikuchi et al em 1994 descreveram a otomicose associada a diversas entidades clínicas em otologia como otite média aguda, otite média crônica, otites externas, miringites agudas e crônicas, câncer de ouvido médio, colesteatomas e traumatismo cranioencefálico2.
Na Tabela I temos os percentuais de ocorrência dos diversos tipos de fungos de acordo com o trabalho de Maher et al, que estudou 180 casos nos quais realizou cultura do material removido do conduto auditivo dos pacientes na tentativa de encontrar o agente ou agentes específicos causadores da doença1.
FISIOPATOLOGIA
Há fatores importantes na fisiopatologia da moléstia, por exemplo: umidade, altas temperaturas, má higiene, obstrução de conduto devido à polipose ou tumores, uso prolongado de corticóides tópicos, imunossupressão, alterações metabólicas, doenças crônicas como diabetes e dermatoses atópicas, presença de micoses em outras regiões do corpo, uso de quimioterápicos antineoplásicos e cirurgias otológicas prévias como a mastoidectomia.
É bom lembrar que em pacientes diabéticos a predisposição a infecções fúngicas é marcante, principalmente no que tange à otomicose por Candida.
A utilização de algumas modalidades de associações medicamentosas tópicas pode estar relacionada com a exacerbação da otomicose em indivíduos suceptíveis. Oliveri em 1984 percebeu uma proporção direta entre a incidência de otomicose e utilização de antibioticoterapia tópica associada com corticóides ao contrário de Mugliston et al que não encontraram tal resultado em 20 anos de estudos nesta área3,4.
Senturia et al descreveram que fatores como ausência de cerume propiciam a infecção fúngica. No entanto, outros relatos como o de Ferguson et al observaram aumento de colonização fúngica na presença de cerume5.
Devemos salientar que pacientes com atopias são acometidos frequentemente por dermatites eczematosas ou seborréicas, as quais podem se tornar sítios de infecções por fungos, por alterações na integridade da pele e estase líquida local devido a exsudação com alterações flogísticas.
Jones em 1965 observou que pacientes com recidivas de otite externa bacteriana após repetidos tratamentos com antibióticos na realidade tinham otomicose subclínica, ocasionando reincidência da colonização bacteriana do conduto6.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico será obtido através de anamnese, na qual as principais queixas serão o prurido otológico em fases iniciais. Nas fases mais avançadas, a otalgia e otorréia predominam devido à existência de infecção bacteriana secundária, assim como a sensação de plenitude e congestão ocasionando por vezes hipoacusia condutiva por processo obstrutivo. Na otoscopia visualizam-se facilmente os micélios fúngicos, que podem ter coloração esbranquiçada, acinzentada, esverdeada ou preta. Há hiperemia e edema pouco pronunciados, mas os restos epiteliais inerentes à existência da infecção podem causar dificuldade de visualização.
Na Tabela II fazemos uma comparação entre dois autores e seus respectivos achados de sintomatologia em pacientes com otite externa fúngica.
No diagnóstico diferencial da Otomicose podemos citar: dermatite seborréica, psoríase, dermatite eczematóide de contato, carcinoma de conduto auditivo externo, entre outros.
Laboratorialmente é possível identificar a etiologia com material fixado em hidróxido de potássio 10 a 20%, e cultura em meio de ágar Sabouraud com glicose.
Tabela I
Percentual de ocorrência dos diversos tipos de fungos achados em culturas positivas.
FUNGOS PERCENTUAL(%)
Aspergillus niger 30,8
A. terreus 5,8
A. flavus 3,2
A. giganteus 1,6
A. sydowi 1,6
A. fumigatus 1,0
Outros Aspergillus 4,5
Penicillium citrinum 2,1
P. variabile 1,6
P. lanosum 1,6
Outros penicillium 11,0
Candida albicans 5,9
Outros Candida 29,3
Fonte: modificado de Maher et al, 19821.
Tabela II
Sinais e sintomas mais comuns em otomicose.
Sintomas Paulose et al 1989 Than et al 1980
prurido 88% 70%
dor 87,5% 54%
otorréia 30% 35%
zumbido 11,4% 50%
hipoacusia Não há dados 35%
Fonte: modificado de Lucente, 19847.
Tabela III
Demonstra a efetividade de alguns antifúngicos utilizados por Lucente em seu trabalho de 1993.
FUNGO CLOTRIMAZOL NISTATINA TOLFTANATO ANFOTERICINA B
A. niger ++ + - +
C. albicans ++ ++ - ++
Penicillium ++ + + +
-: sem efeito, +: efetivo, ++: muito efetivo.Fonte: modificado de Lucente, 19937.
TRATAMENTO
Trabalhos como o de Lucente et al em 1993, expuseram a inexistência de um consenso mundial a respeito de padronização de medidas terapêuticas na otite externa fúngica. Nos primeiros 75 anos deste século pouco progresso foi obtido no tratamento desta doença7.
Como medida básica e inicial, tem-se valido da simples remoção mecânica dos micélios e do macerado epitelial, muitas vezes eficaz como medida isolada se realizada adequada e frequentemente.
Nos casos onde a simples remoção mecânica por meio de aspiração mediante microscopia ótica e o controle dos fatores predisponentes não são suficientes para regressão da infecção, utilizam-se alternativas medicamentosas como antissépticos tópicos, antimicrobianos, antimicóticos e corticosteróides tópicos ou por via oral.
Em nosso meio, a terapia mais difundida consiste na remoção mecânica. Na falha desta, objetivando tornar o meio hostil à colonização fúngica empregamos soluções de timerosal, o mertiolate incolor, acetato de cresil, violeta de genciana, cremes antimicóticos, ácido bórico e ácido acético. Tais medidas, além de tentar eliminar diretamente o fungo, promovem acidificação do meio tornando-o hostil ao parasita. Entretanto só podem ser utilizados se a membrana timpânica estiver íntegra, caso contrário pode haver lesão de estruturas do ouvido médio.
Nos pacientes imunossuprimidos pode ser necessária a utilização de antifúngicos de uso parenteral para combater o comprometimento de estruturas do ouvido médio e adjacências.
Alguns estudos como o de Stern et al, demonstram eficácia do Tiomersal e do M-cresyacetato em detrimento à má resposta terapêutica do Clotrimazole e Nistatina8.
O trabalho de Maher et al em 1982, realizado no Egito, demonstrou eficácia do clotrimazole, polimixina B, iodocloridroxicina. No entanto sua validade em nosso meio é discutível em virtude de os mesmos não terem utilizado a Candida como alvo terapêutico1.
Kikuchi et al enfatizaram que nem sempre se observa uma correspondência direta entre efetividade terapêutica de drogas antifúngicas "in vitro" e seu emprego clínico2.
Falser em seu estudo cita o Bifonazole como uma droga efetiva e livre de riscos9.
Bezjak e Arya observaram um sucesso terapêutico em 60% dos casos tratados com nistatina tópica10.
Mc Gonigle et al e Bear utilizaram antifúngicos tópicos como iodocloridroxicina pura e associada com corticóide ou propilenoglicol, sendo efetivo o tratamento11,12.
Abdou et al em 1967 usou 5-fluouracil em otomicose por A. niger com 60% de cura clínica. Posteriormente em 1980 Than et al observaram o emprego desta mesma droga para o tratamento de otomicose como sendo o de maior efetividade para erradicação de fungos do gênero Aspergillus em otite externa13,14.
Mc Gonigle e Jilson, ao testarem o uso de Anfotericina B para o tratamento de otomicose corroboraram que a sua administração tópica em solução a 3% era o melhor tratamento para otomicose por fungos do gênero Aspergillus11.
Lopez e Evans empregaram o complexo de oxitetraciclina-polimixina para o tratamento de otomicose por Aspergillus e observaram um índice de cura total de 70%15.
Maher et al, em trabalho comparativo utilizando clotrimazol, sulfato de polimixina B, iodoclohidroxicina, fluonilide e tolftanato, notou eficácia prevalente no uso de clotrimazol e tolftanato em relação às outras drogas empregadas. Utilizando como parâmetro laboratorial a concentração inibitória mínima nas diluições séricas, houve analogia nos resultados do estudo "in vitro" e clínico1.
Nos pacientes imunossuprimidos, a otomicose pode levar a complicações como a destruição do Órgão de Corti e outras estruturas da orelha média e interna, bem como problemas sistêmicos. Desta forma, o diagnóstico no paciente com AIDS deve ser precoce e o tratamento o mais agressivo e eficaz.
Em nosso Serviço a terapia mais utilizada é a remoção mecânica associada a soluções de tiomersal, mertiolate incolor, cremes antimicóticos, ácido bórico e ácido acético. Tais medidas tentam eliminar diretamente o fungo, promovendo acidificação do meio e tornando-o hostil ao parasita. É importante observar a integridade da membrana timpânica, evitando lesões a nível de orelha média.
REFERÊNCIAS Bibliográficas
1 - Maher A, Bassiouny MK, Hendawy DS. Otomycosis: An experimental evaluation of six antimycotic agents. The Journal of Laryngology and Otology , 96:205-13, 1982.
2 - Kikuchi A, Funakubo T, Kohsyu H. Acta Otolaryngol, 511:224-7, 1994.
3 - Mugliston T, O'Donoghue G. Otomycosis - a continuing problem. J Laryngol Otol,; 99:327-33, 1985.
4 - Oliveri S. Otomicosi: Etiologia ed analisi di alcuni fattori predisponenti. Boll Ist Sieroter Milan, 63:537-42, 1984.
5 - Senturia BH, Marcus MD, Lucente FE. Diseases of the External Ear. Ed.New York: Grune & Stratton 1980.
6 -Jones EH. External otitis, diagnostic and treatment. Ed. Charles C. Thomas, USA, 50-1, 1965.
7 - Lucente FE. Fungal infections of the external ear. Otolaryngologic Clinics of North America, 26:995-1006, 1993.
8 - Stern JC, Lucente FE. Otomycosis. Ear Nose Throat J, 67:804-10, 1988.
9 - Falser NL. Fungal infection of the ear. Dermatologica, 169:135-40, 1984.
10 - Bezjak V, Arya OP. Otomycosis due to Aspergillus niger. East Afr Med J, 47:247-53, 1970.
11 - Mc Gonigle JJ, Jillson OF. Otomycosis: an entity. Arch Dermatol, 95:45-6, 1967.
12 - Bear VD. Otitis externa: immediate and long-term results with flumethasone pivalate/iodochlorhydroxyquine ear drugs. Med J Aust, 273-76, 1969.
13 - Abdou MH. Studies on fungus infection of the external ear. J Laryngol Otol, 81:1005-23, 1967.
14 - Than KM, Naing KS, Min M. Otomycosis and its treatment. Am J Trop Med Hyg, 29:620-23, 1980.
15 - Lopez L, Evans RP. Drug therapy of aspergillosis otitis externa. Otolaryngol Head Neck Surg, 88:649-51, 1980.
16 - Pickup J, Willians G. Textbook of diabetes, Londres, ed. Blackwell Science 1997.
17 - Rios JBM, Carvalho LP. Alergia Clínica Diagnóstico e Tratamento, Rio de Janeiro, ed. Revinter 1995.
18 - Hungria H. Otorrinolaringologia, Rio de Janeiro, ed. Guanabara-Koogan 1995.
19 - Costa SS, Cruz OLM, Oliveira JAA. Otorrinolaringologia princípios e prática, Porto Alegre, ed. Artes Médicas 1994.
20 - Stark AK, Jafek BW, Segredos em otorrinolaringologia, Porto Alegre ed. Artes Médicas 1998.
Endereço para correspondência: Rua Lobo da Costa 290, ap. 201 - Azenha - Porto Alegre - RS - CEP: 90050-110 - Telefone: (0xx51) 224-1382 ou (0xx51) 9911-2769 - E-mail: vwoehl@cpovo.net
1- Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do H. São Lucas da PUC - RS.
2- Médico Estagiário do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do H. São Lucas da PUC - RS.
3- Médico Estagiário do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do H. São Lucas da PUC - RS.