INTRODUÇÃO
O nervo laríngeo inferior recorrente tem importante função ao suprir todos os músculos intrínsecos da laringe, com exceção do cricotireóideo. Este nervo é o responsável também pelo suprimento sensitivo da região laríngea logo inferior às pregas vocais. A denominação recorrente se deve à sua disposição anatômica, já que é uma alça do nervo vago, recorrendo inferiormente à artéria subclávia do lado direito e ao arco aórtico no lado esquerdo. (1)
Por ser uma estrutura essencial às funções laríngeas e pela sua íntima relação com a glândula tireóide, a identificação e preservação do nervo laríngeo recorrente são passos importantes nas tireoidectomias e paratireiodectomias. A sua lesão e conseqüente paralisia de prega vocal é uma das complicações destas cirurgias, podendo acarretar no pós-operatório imediato quadros importantes de disfonia e até mesmo de insuficiência respiratória, quando a injúria é bilateral. (2,3,4) Exames de videolaringoestroboscopia podem ser ultilizados no perío¬do pós-cirúrgico para se avaliar a mobilidade das pregas vocais, confirmando ou não a integridade da estrutura nervosa. (4)
O nervo laríngeo inferior não-recorrente é uma rara variação anatômica associada a anomalias também anatômicas das artérias subclávias. Em certos indivíduos a artéria subclávia direita, devido alterações de origem embriológica, é retroesofageana, explicando assim a ausência de recorrência do nervo deste mesmo lado.(4,5)
Sua presença, segundo a maioria dos autores, é estimada em torno de 1%, e a chance de lesão é maior durante os procedimentos cirúrgicos que envolvem a região cervical, devido o completo desconhecimento desta variação por parte do cirurgião ou à dificuldade técnica em reconhecer e preservar o nervo nesses casos. (4,6,7,8)
Neste trabalho relatamos a detecção do nervo laríngeo inferior não-recorrente à direita durante uma tireoidectomia total e discutimos a necessidade de sua identificação e preservação, sendo recorrente ou não, durante as cervicotomias.
RELATO DE CASO
JRB, feminina, 44 anos, branca, profissão doméstica, natural e procedente de Bragança Paulista / SP, procurou o Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário São Francisco com diagnóstico de bócio multinodular atóxico, segundo punção aspirativa por agulha fina realizada em outro serviço. A paciente referia sensação de compressão cervical e dispnéias episódicas há 4 meses.
Durante o exame físico foi palpada tireóide aumentada de tamanho às custas, principalmente, de lesões nodu¬lares de 6 x 5 cm em lobo tireoideano esquerdo e de 4 x 4 cm em lobo tireoideano direito. Essas lesões nodulares apresentavam consistência fibroelástica, superfícies lisas e limites bem definidos. Os hormônios tireoideanos, assim como os anticorpos antitireoperoxidase e antitireoglobulina estavam dentro da normalidade. Foi indicada tireoidectomia total.
O procedimento cirúrgico transcorreu normalmente, entretanto, durante a dissecção para identificação do nervo laríngeo inferior direito, foi detectado que este não era recorrente, emergindo diretamente do nervo vago à laringe (Figura 1).
A peça cirúrgica (Figura 2) foi enviada para exame histopatológico, tendo como diagnóstico tireoidite linfocítica crônica. No momento a paciente apresenta-se assintomática, em uso de hormônio tireoideano e com exames laboratoriais normais.
DISCUSSÃO
O nervo laríngeo inferior não-recorrente apresenta-se mais comumente à direita (0,2 a 4%) e de forma mais rara à esquerda (0,07%). (4) HENRY et al (8), analisando uma série de 3791 cervicotomias, confirmou esta distribuição predominante à direita. Nesta série os autores observaram 17 casos do nervo não-recorrente (0,54%) em 3098 cervicotomias à direita e 2 casos (0,07%) em 2846 cervicotomias à esquerda.
A presença de anomalias da artéria subclávia parece estar sempre presente, sendo a causa direta da não recorrência do nervo laríngeo inferior. A artéria subclávia direita, devido alterações de ordem embriogênica, pode ser retroesofageana, impedindo, então, que o nervo seja recorrente. A mesma situação não é observada à esquerda, já que a recorrência ocorre inferiormente ao arco aórtico. Somente na vigência de uma dextrocardia poderemos evidenciar um nervo laríngeo inferior esquerdo não-recorrente, explicando assim o menor número de casos deste lado. (5,9)
A ausência de recorrência em seu trajeto aumenta a chance de lesão do nervo laríngeo inferior durante as tireoidectomias e outras cirurgias que acessam a região cervical. (6,10)
Segundo SPARTA et al (7) , só a identificação sistemática do nervo laríngeo inferior assegura ao cirurgião que não houve a sua lesão. Assim, compreende-se a necessidade do conhecimento anatômico e de possíveis variações para a realização de cervicotomias com o menor risco possível de injúrias a esta nobre estrutura.
O diagnóstico desta variação anatômica raramente é feito no pré-operatório e somente uma tomografia computadorizada de tórax evidenciando uma artéria subclávia retroesofageana nos fará suspeitar da sua ocorrência. Quase sempre a detecção de um nervo anômalo é intra-operatória e incidental. (4,10)
Neste caso observamos no intra-operatório um nervo laríngeo inferior não-recorrente à direita durante uma tireoidectomia total. Apesar de certa dificuldade, o nervo foi corretamente identificado e preservado, como é rotina no nosso serviço.
Então, alertamos mais uma vez os cirurgiões que atuam na região cervical, principalmente em tireoidectomias, da importância da exposição do nervo laríngeo inferior, evitando-se assim a sua lesão acidental.
CONCLUSÃO
A lesão do nervo laríngeo inferior é uma complicação das cirurgias das glândulas tireóide e paratireóides e o risco desta ocorrência cresce quando o nervo é não-recorrente. Desse modo, somente a sua dissecção e identificação assegura ao cirurgião que esta nobre estrutura foi completamente preservada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Moore KL: O Pescoço. In: Moore KL. Anatomia Orientada Para a Clínica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1994, p. 710 - 73.
2. Steffen N, Herter NT, Martha VF. Tireoidectomias. In: Campos CAH, Costa HOO. Tratado de Otorrinolaringologia Vol 5. 1ª ed. São Paulo: Roca; 2003, p. 557 - 77.
3. Gleischman S, Uyeda RY, Dunkelman D, Catz B, Karlan MS: A safe technique for thyroidectomy with complete nerve dissection and parathyroid preservation. Head Neck Surg, 1984, 6 (6): 1014 - 9.
4. Leite WP, Castro Júnior FM, Ferreira LAA, Holanda ME, Fernandes E, Silva V, Farias JF, Lima SB, Surimã WS, Mesquita Neto JWB, Santos BGR, Muniz VV, Figueiredo LL. Nervo laríngeo inferior não-recorrente: relato de 3 casos e revisão da literatura. Anais do 10ª Congresso Brasileiro de Cirurgia de Cabeça e Pescoço; 2005 Set 3 - 6; Salvador, Brasil.
5. Lages L: Nervo laríngeo inferior não-recurrente e artéria subclávia direita retroesofageana (Importância desta anomalia do ponto de vista clínico-cirúrgico). Rev Bras Otorrinolaringol,1946, 14 (6): 486 - 522.
6. Arantes A, Gusmão S, Rubinstein F, Oliveira R: Anatomia microcirúrgica do nervo laríngeo recorrente: aplicações no acesso cirúrgico anterior à coluna cervical. Arq Neuro-Psiquiatr,2004, 62 (3): 22 - 6.
7. Sparta C, Cossu ML, Fais E, Palermo M, Cossu F, Ruggiu M, Noya G: Non-recurrent inferior laryngeal nerve: anatomy, frequency and surgical considerations. Minerva Chir, 2004, 59 (6): 555-61.
8. Henry JF, Audiffrit J, Plan M: The nonrecurrent inferior laryngeal nerve: A propos of 19 cases including 2 on the left side. J Chir (Paris), 1985, 122 (6-7): 391-7.
9. Pisanu A, Pili S, Uccheddu A: Non-recurrent inferior laryngeal nerv. Chir Ital, 2002, 54 (1): 7-14.
10. Abboud B, Aouad R: Non-recurrent inferior laryngeal nerve in thyroid surgery: report of three cases and review of the literature. J Laryngol Otol, 2004, 118 (2): 139-42.