INTRODUÇÃOMucopolissacaridoses (MPS) representam um grupo de doenças caracterizadas pela deficiência de enzimas lisossomais que degradam glicosaminoglicanos (GAGs), que são polímeros de carboidrato e proteínas. Fazem parte de um grupo de doenças metabólicas hereditárias conhecidas como erros inatos do metabolismo. As MPS são doenças raras isoladamente, mas em conjunto tem incidência estimada de 1:10000 a 1:25000 (1).
São conhecidos sete tipos de mucopolissacaridoses, baseados nas características clínicas e na enzima deficiente (Tabela 1). Todos apresentam herança autossômica recessiva, exceto pelo tipo II (síndrome de Hunter) que apresenta herança ligada ao X. O acúmulo destes metabólitos causa alterações variadas, e em geral, estas crianças nascem sem estas alterações e as desenvolvem progressivamente (2).
O diagnóstico é feito pelo padrão de GAGs na urina e confirmado pela análise de enzimas lisossomais no sangue, leucócitos ou fibroblastos da pele e estudo genético. Em casos suspeitos a amniocentese e biópsia de vilosidades coriônicas permitem o diagnóstico pré-natal (3).
A apresentação clínica pode ser bastante variada, sendo as manifestações mais comuns: alterações esqueléticas, cardíacas, retardo mental, organomegalia e fácies característica (3).
As alterações otorrinolaringológicas destes pacientes podem ser divididas em três grupos: alterações otológicas, hipertrofia adenotonsilar e alterações de vias aéreas.
A hipertrofia adenotonsilar é praticamente universal em virtude do depósito de glicosaminoglicanos, portanto a indicação de adenoamigdalectomia é bastante frequente nestes pacientes. Esse tipo de depósito pode ser visto também nas paredes da faringe e, em conjunto com a macroglossia e anomalias mandibulares (eventualmente vistas nos casos de MPS), há o risco de obstrução progressiva das vias aéreas superiores e apneia do sono. Além disso, infecções recorrentes do trato respiratório superior podem também ser causas de doenças tonsilares associadas ao quadro. Em termos de manejo da obstrução das vias aéreas, inicialmente a adenoamigdalectomia é realizada e, na maioria dos casos, é o único tratamento necessário. Eventualmente, em casos extremos, há necessidade de traqueostomia (2).
Associado à hipertrofia adenotonsilar, pode haver ainda a deposição de glicosaminoglicanos nas paredes da faringe e laringe, em especial nas cartilagens aritenóideas e nas membranas ariepiglóticas. Em casos extremos, pelo acúmulo de mucopolissacarídeos, há prolapso da parede laríngea, provocando estridor e severa obstrução das vias aéreas. Além disso, há possibilidade de depósito nas paredes traqueais, com consequente estreitamento de seu lúmen (2).
No presente estudo, iremos destacar as alterações otológicas. As alterações mais comuns são: otite média com efusão (OME), que pode levar a alterações auditivas do tipo condutivo e as alterações neurossensoriais (4).
O objetivo deste estudo é avaliar uma série de casos de pacientes com diagnóstico de mucopolissacaridose atendidos no Hospital Pequeno Príncipe, enfatizando suas alterações audiológicas e estabelecer um protocolo permanente de avaliação desses pacientes.
MÉTODOO presente trabalho caracteriza-se como estudo retrospectivo da avaliação audiológica de 18 prontuários de pacientes com diagnóstico de mucopolissacaridose atendidos no Hospital Pequeno Príncipe no período compreendido entre janeiro de 2005 e novembro de 2010.
A avaliação da perda audiológica foi realizada mediante análise dos dados obtidos através de audiometria tonal liminar, impedanciometria, PEATE (Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico) e EOA transientes (emissões otoacústicas transientes), sendo o grau de perda auditiva analisado de acordo com a classificação do International Bureau for Audiophonology (5).
A coleta de informações foi realizada mediante preenchimento de formulário a partir de dados dos prontuários de cada paciente (Anexo 1).
O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa de Seres Humanos do Hospital Pequeno Príncipe (registro nº 0822-10).
Dos pacientes - critérios de inclusão
Os critérios de inclusão dos pacientes no estudo seguem abaixo:
- Apresentar o diagnóstico de mucopolissacaridose;
- Apresentar avaliação audiológica e descrição de exame físico otorrinolaringológico no prontuário;
- Ausência de rasuras e/ou grafia ininteligível;
Seleção dos pacientes
A seleção dos pacientes para o estudo seguiu o seguinte plano:
- Aquisição junto ao SAME do Hospital Pequeno Príncipe, da lista dos pacientes atendidos com diagnóstico de mucopolissacaridose no período entre janeiro de 2005 e novembro de 2010;
- Adequação dos pacientes dentro dos critérios de inclusão.
Delineamento do estudo
Após seleção dos prontuários, os dados dos mesmos foram analisados mediante formulário específico (Anexo 1).
As alterações audiológicas descritas foram divididas em condutivas, neurossensoriais e mistas. O grau de perda auditiva foi analisado de acordo com a classificação do International Bureau for Audiophonology (5).
A terapêutica instituída para cada situação específica foi igualmente analisada.
RESULTADOSAo todo foram avaliados os prontuários de 18 pacientes com o diagnóstico de mucopolissacaridose atendidos no período de janeiro de 2005 a novembro de 2010.
Desse montante, foram selecionados 7 prontuários, de acordo com os critérios de inclusão descritos no método. Os mesmos foram enumerados de 1 a 7.
A idade média do grupo foi de 11 anos; 5 pacientes do sexo masculino e 2 do sexo feminino (Tabela 2).
Dois pacientes possuíam diagnóstico de MPS tipo I, três pacientes do tipo II e dois pacientes do tipo VI (Tabela 2).
Dos sete pacientes, cinco realizaram o exame de audiometria e impedanciometria ou audiometria e PEATE, enquanto dois realizaram apenas impedanciometria (Tabela 2).
Em relação ao tipo de perda auditiva, 42,8% (três pacientes) foram descritas como exclusivamente condutivas, 28,5% (dois pacientes) tipo mista, 14,3% (um paciente) exclusivamente neurossensorial e 14,3% (um paciente) o exame foi normal (Tabela 2).
O grupo, um paciente foi submetido apenas ao procedimento de adenoamigdalectomia, um paciente a somente à colocação de tubos de ventilação, dois paciente foram submetidos à adenoidectomia com colocação de tubos de ventilação, dois pacientes foram submetidos à adenoamigdalectomia e colocação de tubos de ventilação e um paciente não foi submetido a procedimento cirúrgico otorrinolaringológico (Tabela 2).
DISCUSSÃOAs manifestações otorrinolaringológicas da MPS podem ser consideradas dentro de três grupos: problemas otológicos, hipertrofia adenotonsilar e distúrbios em vias aéreas. Comprometimentos de menor grau, como por exemplo otite média com efusão são praticamente universais nesse grupo de pacientes (2).
Devido ao depósito de mucopolissacarídeos na rinofaringe, nas tubas auditivas e no ouvido médio, esses pacientes apresentam elevado risco de desenvolver otite média com efusão e episódios recorrentes de otite média aguda. Sempre que indicado, tratamentos sintomáticos devem ser postos em prática como colocação de tubos de ventilação e aparelhos auditivos quando indicados.
É desconhecido se o elemento neurossensorial possui base congênita ou é adquirido secundariamente ao depósito de glicosaminoglicanos parcialmente degradados no ducto coclear, stria vascularis, no nervo coclear ou ainda no sistema nervoso central. Esse tipo de perda neurossensorial é particularmente visto nos pacientes com MPS tipos I e II (4,7). Além disso, a presença de depósitos no ouvido médio pode explicar a incapacidade que alguns pacientes tem de recuperar a diferença entre as vias aérea e óssea na audiometria mesmo após a realização da timpanotomia (4). Infelizmente, a perda auditiva é frequentemente presente no momento do diagnóstico e, enquanto as perdas condutivas são factíveis de melhora, a amplificação é tipicamente necessária nos casos de perda neurossensorial permanente (4,7).
Em um estudo retrospectivo (n=9) com objetivo de avaliar as alterações otorrinolaringológicas presentes em crianças com diagnóstico confirmado de mucopolissacaridose demonstrou-se prevalência de 100% de otite média recorrente no grupo avaliado. Ademais, todos os pacientes da série foram submetidos, ao menos uma vez, à timpanotomia e 78% foram submetidos a múltiplas timpanotomias com inserção de tubos de ventilação. A perda auditiva foi demonstrada pela audiometria em 78% dos pacientes. Desse grupo, em 71% a perda auditiva era do tipo mista, 14% apenas neurossensorial e 14% apenas condutiva (4).
Em adição ao manejo dos sintomas e manifestações individuais, esforços tem sido direcionados no sentido de controlar os processo patológicos como um todo na tentativa de impedir ou ao menos postergar a progressão da doença. O transplante de medula óssea tem sido investigado desde a década de 80 e vem sendo frequentemente usado em crianças menores de 2 anos com MPS I ou naqueles pacientes com formas leves de MPS II, VI ou VII (8). Dados da literatura demonstraram redução na hepatoesplenomegalia, melhora no quadro de obstrução de vias aéreas, redução da hipertensão intracraniana e diminuição dos depósitos de glicosaminoglicanos no líquido cefalorraquidiano, fígado e pele de crianças submetidas ao transplante de medula óssea, provavelmente por restaurar a capacidade do organismo em degradar substratos acumulados ao nível celular (9). Além do mais, estudos comparativos tem sugerido que o transplante resultaria em melhora tanto na capacidade auditiva quanto na voz frente a grupos sem tratamento (10). Mais recentemente terapias de reposição enzimática vem sendo desenvolvidas e utilizadas no tratamento dos diferentes tipos de mucopo¬lissacaridose. Embora estudos demonstrem o efeito promissor da reposição, não há ainda ensaios clínicos randomizados demonstrando sua real eficácia (4).
CONCLUSÃOOs pacientes com mucopolissacaridose requerem cuidados permanentes e acompanhamento que englobe as mais diversas especialidades. Nesse contexto, o otorrinolaringologista pediátrico ocupa importante papel tanto na avaliação otológica e audiológica quanto no manejo das vias aéreas, já que quase a totalidade dos pacientes avaliados apresentavam algum tipo de perda auditiva e indicação de procedimentos otorrinolaringo¬lógicos. A suspeita clínica, o reconhecimento precoce das lesões bem como a reabilitação são essenciais para melhores resultados, minimização das sequelas e melhor qualidade de vida aos pacientes e aos familiares. O padrão definido em nosso serviço foi de ao menos uma consulta inicial quando houver suspeita e/ou diagnóstico da MPS e consultas sequenciais, no mínimo semestrais, ou mais frequentes conforme necessidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Yeung AH, Cowan MJ, Horn B, Rosbe KW. Airway Management in Children With Mucopolysaccharidoses. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2009, 135(1):73-79.
2. Simmons MA, Bruce IA, Penney S, Wraith E, Rothera MP. Otorhinolaryngological manifestations of the Mucopolysaccharidoses. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2005, 69:589-595.
3. Pinto LLC. Um estudo sobre a história natural da mucopolissacaridose tipo II (Síndrome de Hunter) em pacientes brasileiros. [dissertação] Porto Alegre (RS). UFRS, 2005.
4. Wold SM, Derkay CS, Darrow DH, Proud V. Role of the pediatric otolaryngologist in diagnosis and management of children with mucopolysaccharidoses. Intl J Pediatr Otorhinolaryngol. 2010, 74:27-31.
5. Meikle PJ, Hopwood JJ, Clague AE, Carey WF. Prevalence of lysosomal storage disorders. J Am Med Assoc. 1999, 281(3):249-254.
6. Shinhar SY, Zablocki H, Madgy DN. Airway management in mucopolysaccharide storage disorders. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2004, 130:233-237.
7. Friedmann I, Spellacy E, Crow J, Watts RW. Histopathological studies of the temporal bones in Hurler's disease (mucopolysaccharidosis IH). J Laryngol Otol. 1985, 99:29-41.
8. Walker RWM, Colovic V, Robinson DN, Dearlove OR. Postobstructive pulmonary oedema during anaesthesia in children with mucopolysaccharidoses. Paediatr Anaesth. 2002, 12:1-7.
9. Belani KG, Krivit W, Carpenter BL, Braunlin E, Buckley JJ, Liao JC, et al. Children with mucopolysaccharidoses: perioperative care, morbidity, mortality, and new findings. J Pediatr Surg. 1993, 28(3):408-410.
10. Papsin BC, Vellodi A, Bailey CM, Ratcliffe PC, Leighton SE. Otologic and laryngologic manifestations of mucopolysaccharidoses after bone marrow transplantation. Otolaryngol Head Neck Surg. 1998, 118(1):30-36.
1 Médica Otorrinolaringologista. Fellow em Otorrinolaringologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe.
2 Otorrinolaringologista Pediátrico. Coordenador do Fellowship em Otorrinolaringologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe.
3 Médica Otorrinolaringologista. Otorrinolaringologista Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe.
4 Professor Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da UFPR (Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe)
5 Neuropediatra do Hospital Pequeno Príncipe. Coordenadora do Ambulatório de Erro Inato do Metabolismo do Hospital Pequeno Príncipe.
Instituição: Hospital Pequeno Príncipe. Curitiba / PR - Brasil. Endereço para correspondência: Ariana Braga Gomes - Avenida Silva Jardim, 2014 - Apto. 304 - Curitiba / PR - Brasil - CEP: 80250-200 - Telefone: (+55 41) 3342-5581 - E-mail: arianabgomes@gmail.com
Artigo recebido em 16 de Janeiro de 2011. Artigo aprovado em 9 de Março de 2011.